• Nenhum resultado encontrado

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

IV. Estratégias de Enfrentamento

5.5 Estratégias de enfrentamento

5.5.5 A experiência como amparo no trabalho

A experiência, segundo Bondia (2002) é aquilo que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Requer do sujeito – território onde têm lugar os acontecimentos – a capacidade de parar para pensar, para olhar, para escutar e demorar-se nos detalhes; características pouco comuns em nossa época, o que faz da experiência, por tanto, uma atividade cada vez mais rara no mundo atual de grande velocidade e falta de tempo e excesso de trabalho. Neste sentido, a experiência não pode ser confundida com trabalho, já que esta modalidade de relação com as pessoas e a natureza, tem sido marcada pela ausência de espaço para a reflexão e uma pretensa distinção entre teoria e prática, que faz do trabalho, segundo o autor, um inimigo da experiência.

Se a experiência é o que nos acontece, o saber da experiência tem a ver com a elaboração do sentido que nos acontece. Assim, este saber não se refere à verdade do que são as coisas, mas do sentido do que nos acontece, ou seja, o acontecimento é comum, mas a experiência é para cada qual singular, “por isso, o saber da experiência é um saber particular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal.” (BONDIA, 2012, p 27).

Nas línguas germânicas e latinas, diz o autor, que a palavra experiência contém inseparavelmente a dimensão de travessia e perigo. Desse modo, o sujeito da experiência, fazendo referência a Heidegger12, não é aquele que permanece sempre em pé, erguido e seguro de si mesmo e que se apodera daquilo que quer, mas um sujeito que perde seus poderes precisamente porque aquilo de que faz experiência dele se apodera.

Seu contrário, o sujeito incapaz de experiência, seria um sujeito firme, forte, impávido, inatingível, erguido, anestesiado, apático, autodeterminado, definido por seu poder e por sua vontade. (BONDIA, 2012, p 25).

Desse modo, a experiência enquanto um processo de travessia e perigo, guarda semelhança com a resiliência, no sentido de depender de um sujeito que se deixe afetar e ser tocado pelas coisas, e que embora, convivendo com suas fragilidades e limites não se furta de buscar uma condição melhor de existência.

12 Martin Heidegger (1889-1976) foi um filósofo alemão da corrente existencialista, um dos maiores filósofos

Nesta perspectiva, o reconhecimento dos limites do sujeito no trabalho é apontado como um recurso capaz de minimizar o sofrimento decorrente das adversidades. O limite, no contexto em questão, é compreendido de duas formas: admitir a fragilidade da condição humana e a distinguir o ambiente profissional do pessoal.

Se no olhar comum, a fragilidade pode ser tratada como resultado da falta de habilidade e competência para o desenvolvimento do trabalho, neste estudo, ela aparece como um importante recurso de apoio ao profissional.

[...] temos um determinado poder que é finito, ninguém é super, nós somos gente, e ser gente significa fazer as coisas que estão ao nosso alcance, [...] o que é da minha governabilidade e o que não é. Então isso traz uma certa tranquilidade na hora de você encarar um fenômeno complexo, isso traz também uma certa tranquilidade pra dividir responsabilidade com as pessoas. [...] Você tem que ter clareza até onde você tem que ir, até onde você responsabiliza as pessoas e até onde você afasta. (P3)

Tal situação reforça a ideia de que o risco e a proteção não são categorias dicotômicas – elas dependem da atribuição de significado por parte do sujeito. (BARLACH, 2005).

Quanto ao estabelecimento dos limites entre a vida profissional e pessoal, a situação é assim descrita pelo participante 3:

[...] existe uma coisa que eu aprendi, porque eu moro em uma cidade vizinha e o trajeto da minha casa até o trabalho, ele dura de vinte e cinco a trinta e cinco minutos dependendo do trânsito, e esse é o momento que eu tenho para ir virando a chave. [...] Hoje eu consigo no momento em que eu estou trabalhando viver para o trabalho, no momento em que eu estou em casa viver para a família. E isso, de uma certa forma também, te reduz os níveis de estresse, te dá um pouco mais de tranquilidade em relação à vida. (P3)

Algumas estratégias aparecem, ainda, relacionadas à motivação para enfrentar os desafios, como a possibilidade de planejar novas abordagens para o atendimento às famílias e o tempo para articulação com a rede de serviços.

[...] pensar novas propostas de abordagem, construção de material. [...] importância do tempo disponível para as articulações com a rede, principalmente a básica. (P3)

O respeito como valor a ser cultivado nas relações interpessoais, além da busca pela interdisciplinaridade, supervisão e clareza no processo de trabalho, também são apontados como estratégias de enfrentamento da demanda de trabalho.

[...] eu parto do princípio que tem que ser uma equipe muito respeitosa, [...] a dinâmica do respeito tem que permear essas relações.[...] eu acho que ter uma equipe interdisciplinar favorece o trabalho, ter uma supervisão, um olhar que vem nos alimentar, questionar pra gente poder ampliar o nosso universo de intervenção favorece, fortalece, contribui com a qualidade da intervenção, e ter uma coordenação que te respalde...[...] e a definição clara dos processos de trabalho. (P3)

O trabalho neste lugar e com esta demanda parece potencializar os aspectos negativos da experiência do profissional, exigindo a busca por estratégias de enfrentamento. Se o ambiente oferece recursos de proteção isso, naturalmente, fortalece o indivíduo para a superação das adversidades, mas se ao contrário, a equipe se encontra desunida, desgastada, quer seja pelas relações interpessoais ou organização e processo de trabalho, isso repercutirá de maneira negativa para o profissional. Assim as condições do ambiente, tanto próximas quanto remotas, somados às características biopsicológicas, num dado momento histórico – cronossistema - terão impactos sobre o processo de resiliência e a qualidade da saúde do profissional. De modo semelhante os fatores de proteção do contexto tendem a potencializar a busca por recursos de apoio do profissional, por meio das estratégias de enfrentamento.

O profissional iniciante no trabalho com a violência parece não ser capaz de reconhecer os aspectos resilientes da vítima, e ficar extremamente mobilizado com a situação da violência em si. Por outro lado, aquele com mais tempo de trabalho com o tema, pode testemunhar histórias que revelam a capacidade de luta e superação de algumas pessoas nesta situação, que apesar da violência, conseguiram dar continuidade às suas vidas sem aparentar maiores prejuízos ao seu processo de desenvolvimento.

A possibilidade de verificar a resiliência da vítima serve de alento para o profissional que acompanhou o seu sofrimento, e principalmente faz crer na possibilidade de prognósticos melhores diante dos casos novos que recebe. A esperança da superação da vítima passa a ser um elemento fundamental na saúde emocional do profissional, o que dá à situação da violência outras possibilidades de desfecho menos traumático ou fatalista para a vítima. Acreditar nisso alivia o sofrimento do profissional e o motiva para continuar construindo este trabalho.

Assim, à guisa de conclusão, os participantes desta pesquisa, sempre que possível, recorrem às experiências como forma de acessar estratégias de permitem minimizar os efeitos adversos do trabalho, ou mesmo superá-los dentro dos limites permitidos pela situação.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo surgiu do interesse em compreender os impactos do trabalho com a violência doméstica no profissional que atua nessa área, considerando os aspectos de sofrimento e vulnerabilidade das famílias atendidas, da gestão do serviço e processo, e a organização do trabalho.

Esperava-se analisar os efeitos do exercício da referida função sentidos pelo profissional, além dos recursos que o mesmo dispensa para o enfrentamento dos desafios apresentados. No entanto, o tema foi ganhando maior complexidade à medida que a relação entre este pesquisador e seu objeto de estudo tornou-se mais intensa e reflexiva.

Os resultados desta pesquisa agregaram um novo olhar à experiência do dia a dia do trabalho do pesquisador, possibilitando-lhe ampliar a compreensão sobre a complexidade do tema em pauta. O objetivo se concentrou, então, na investigação das relações entre a saúde e o trabalho e suas repercussões nos profissionais que atuavam no contexto da Proteção Social Especial do CREAS de uma cidade da região metropolitana do Vale do Paraíba Paulista.

Nesse sentido, as questões formuladas para tal investigação almejavam encontrar respostas acerca dos desafios presentes na relação do profissional autor da presente pesquisa com seu trabalho, bem como os recursos disponíveis nos contextos imediato e remoto que se mostravam favoráveis à superação das adversidades e a promoção de sua saúde.

De modo concomitante, a configuração do trabalho no município pesquisado sofria, no período de estudo, um processo de transformação significativa, marcada pela passagem de um projeto - com atribuições específicas sobre o fenômeno da violência - para um serviço de caráter público atrelado ao sistema único da Política Nacional de Assistência Social.

Assim, este estudo foi ganhando consistência à medida que os resultados e discussões eram re-visitados e analisados pelo olhar do pesquisador também transformado pela experiência provocada na inserção nesse contexto.

Para Bronfenbrenner (1992), a produção do conhecimento em desenvolvimento humano, para ser válida, deve ser feita em ambiente naturalístico e envolver objeto e atividades da vida cotidiana da pessoa. A investigação, então, deve reconhecer que existem fatores ambientais que ultrapassam as propriedades objetivas e são de suma importância para a compreensão do processo e dos produtos do desenvolvimento humano. Destarte, o método fenomenológico escolhido para este estudo foi pensado para atender a esse intento, ao propor a descrição da experiência tal como ela se apresenta, ou, como o sujeito a interpreta e reconstrói (ANDRADE; HOLANDA, 2010).