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A falta de articulação entre o SUAS e as demais políticas públicas

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

IV. Estratégias de Enfrentamento

5.3 Fatores de risco para o trabalhador do CREAS

5.3.2 A falta de articulação entre o SUAS e as demais políticas públicas

O SUAS constitui o modelo de gestão da Assistência Social estabelecido com a missão de integrar as políticas e os programas do setor que, historicamente, sempre estiveram fragmentados, a fim de elevar a Assistência Social ao patamar de um direito de todo cidadão. Dessa forma, os serviços de proteção social especial, realizados pelos CREAS, procuram atuar em situações de risco que demandam intervenções em problemas específicos e/ou abrangentes, que requerem acompanhamento individual e maior flexibilidade nas soluções protetivas (BRASIL, 2004).

Essa política, enquanto um macrossistema, engloba na média complexidade – foco deste trabalho – serviços em nível local que oferecem atendimentos às famílias e indivíduos com seus direitos violados, mas cujos vínculos familiar e comunitário não foram rompidos. Assim, os casos denotam a importância do envolvimento da Saúde, Educação e demais órgãos que compõem o sistema de garantia de direitos, tais como: Conselho Tutelar, Ministério Público, Defensoria Pública e Vara da Infância e Juventude.

O trabalho social, nesse caso, depende de uma rede de serviços e setores que se articulam no sentido de organizar e definir a contribuição de cada um no atendimento integral às necessidades dos seus usuários.

A cooperação entre diferentes instâncias e setores da sociedade, as quais compartilham informações sobre o usuário nos diferentes contextos em que ele está ou já esteve inserido, são fundamentais para que os resultados apareçam. Por exemplo, a escola, no caso das crianças, pode reunir dados sobre sua participação e desenvolvimento, além de informar possíveis ocorrências na vida escolar do aluno que guarde relação com um possível direito violado. O atendimento em saúde, frequentemente acionado pelas famílias, sobretudo nos períodos iniciais de vida da criança, também pode contribuir com uma leitura mais próxima das condições físicas e emocionais do público de um modo geral.

Na perspectiva da Teoria Bioecológica, a relação entre o serviço do CREAS e as demais políticas públicas ocorre no âmbito do mesossistema - conjunção de processos que ocorrem entre dois ou mais ambientes nos quais a pessoa está inserida - e do exossistema – contextos que influenciam os vínculos e processos, mas que não possuem ordinariamente a pessoa em desenvolvimento.

O trabalho de Juliano (2005) surge como um exemplo de como a cooperação entre o meso e o exossistema pode potencializar o desenvolvimento psicológico. O autor investigou a influência da ecologia dos ambientes de atendimento no desenvolvimento de crianças e adolescentes abrigados, e como a atuação em rede das instituições ligadas ao acolhimento funcionaria para caracterizar-se como proteção para esses indivíduos. Seus resultados evidenciaram que, no meso e exossistema, as dificuldades de interação das instituições expressaram-se pela inexistência de um “fluxo” no sistema de abrigamento, pela dificuldade de comunicação interinstitucional, pelo número reduzido de profissionais e, ainda, pela baixa qualificação dos trabalhadores, fatores esses somados à ausência de uma política municipal.

Nesse ponto, questiona-se sobre a ausência desse tipo de relação no cotidiano dos profissionais da presente pesquisa. O olhar sobre a implementação e a organização do SUAS talvez esclareça um pouco tal situação.

A Assistência Social, enquanto política pública, desde o seu início foi construída no sentido de ocupar um lugar de protagonista nessa articulação, evidenciando a importância dos demais serviços para o atendimento integral do indivíduo e sua família em situação vulnerável. Contudo, o fato de se colocar como principal articuladora entre as políticas públicas acaba sendo interpretado como se fosse de sua inteira responsabilidade o atendimento de todas as demandas provocadas pela incompletude das instituições e ausência do Estado nos serviços essenciais à população. Dito de outra forma, quando as demais políticas falham, a Assistência Social entra em cena com a “obrigação” de atender as necessidades do usuário diante dos prejuízos acarretados pela falta dessas políticas.

Na prática, os relatos desta pesquisa revelam um quadro no qual a articulação entre as políticas públicas é uma iniciativa vivida como atribuição exclusiva do profissional do SUAS e com pouca repercussão entre os diversos atores que compõem a rede de proteção. Essa situação traz prejuízos ao profissional no desempenho de suas tarefas, os quais podem se configurar em riscos potenciais à sua saúde.

No local onde atua, o profissional pode se sentir solitário na tarefa de cuidar de seu objeto de trabalho, sobretudo, quando não recebe o apoio dos demais atores da rede de proteção à criança. O relato a seguir traduz o sentimento de um grande dispêndio de energia por parte do entrevistado na efetivação do seu trabalho.

[...] tem hora que a gente fica sem chão... O que eu vou fazer agora?[...] Solidão, vazio... O profissional se vê responsabilizado por

ter todas as forças para ‘segurar’ a família, porque você não

encontra os outros órgãos pra te apoiar. (P4)

A sensação de solidão e de responsabilidade individual sobre a situação das famílias assume uma condição de risco para o trabalhador, situação essa que, na ausência de uma rede de proteção articulada, pode produzir respostas fragmentadas que levam, muitas vezes, à vivência de sobrecarga ou de insatisfação tanto da equipe profissional quanto do cidadão usuário do serviço (FERREIRA, 2011).

Além do desgaste emocional por não conseguir distribuir competências e responsabilidades com outras áreas e setores, o profissional que atua nessas condições pode se ver desestimulado e desenvolver uma prática muito aquém de suas possibilidades, com repercussão negativa para o atendimento do usuário:

[...] um profissional desacreditado (sensação ruim) desestimulado... [...] pode naturalizar as questões e precarizar a qualidade do trabalho ao fazer

apenas o mínimo. [...] render-se ao status quo levando a uma prática insuficiente, inviável e antiética. (P4)

Como resultado, o profissional também passa a construir uma visão limitada sobre a família atendida:

[...] o risco de ofuscar o olhar sobre o usuário e deixar de perceber sua potencialidade e protagonismo. (P4)

O estudo de Alto (2010) caminha nessa direção, ao afirmar que a exposição contínua a essas demandas provoca no profissional, ao longo do tempo, o abandono de uma prática pautada na resiliência familiar, capaz de reconhecer nos membros da família atendida recursos a serem considerados no tratamento. As experiências negativas acumuladas no decorrer do processo se sobressaem e o profissional parece não ser capaz de identificar os recursos próprios da família que poderiam ser acionados para a superação do problema. O autor ressalta a importância do reconhecimento, por parte do profissional, de seu envolvimento emocional nesse tipo de trabalho.

Torna-se, assim, fundamental atender às vivências emocionais dos profissionais, assim como a possível acumulação de experiências negativas, como um elemento presente ao longo de todo o processo de intervenção, podendo o reconhecimento destes fatores possibilitar uma procura mais eficaz de respostas adequadas às situações. (ALTO, 2010, p. 54)

Por esse motivo, o pesquisador defende a supervisão e a discussão de casos como ferramentas importantes de apoio profissional, além da atenção psicológica personalizada a alguns técnicos. (ALTO, 2010).

Nesse sentido, a violência como grave problema social e de saúde pública exige um trabalho em rede, “baseado na solidariedade e na cooperação entre organizações que, por meio da articulação política, negociam e partilham recursos de acordo com os interesses e necessidades”. (BRASIL, 2010, p.77). O presente trabalho reúne algumas características que podem fazer frente ao risco apontado por profissionais que se queixam da solidão nessa condição, tendo em vista que só se realizam a partir de uma grande rede, ou seja,

[...] uma articulação política entre pares que, para se estabelecer, exige: reconhecer (que o outro existe e é importante); conhecer (o que o outro faz); colaborar (prestar ajuda quando necessário); cooperar (compartilhar saberes, ações e poderes) e associar-se (compartilhar objetivos e projetos). (BRASIL, 2010, p. 78)

Tal modo de organização e interação entre os diferentes serviços e setores dá ao trabalhador um lugar de coparticipação nesse cenário, o que lhe permite reconhecer sua responsabilidade e receber o apoio dos demais atores envolvidos.

Estas condições preliminares resultam, respectivamente, em autonomia, vontade, dinamismo, multiliderança, informação, descentralização e múltiplos níveis de operacionalização. (BRASIL, 2010, p. 78)

Os serviços oferecidos pelos CREAS têm como característica principal a oferta contínua e voltada ao acolhimento e satisfação das necessidades sociais das famílias atendidas, ou seja, a política pressupõe que o cidadão tenha a certeza sobre a continuidade do serviço, independente das mudanças políticas, e que, principalmente, saiba que pode contar com uma equipe qualificada para o atendimento de suas necessidades (FERREIRA, 2011).

Nessa organização, os técnicos são os principais operadores do serviço e, ao manterem contato direto com a população, personalizam a efetivação da política do SUAS. Além de testemunhas das fragilidades e demandas da pessoa em situação de vulnerabilidade, também recebem a cobrança, insatisfação e revolta do usuário diante da ineficiência ou ausência de recursos por parte do Estado.

Ainda que a intersetorialidade seja destaque nas agendas dos gestores e trabalhadores dessa política, sua efetivação parece distante, sobretudo se considerar o alerta de Bellini (2014, p.28):

No terreno empírico e teórico, percebe-se que usualmente entre os atores das políticas sociais concebe-se a intersetorialidade no eixo das ações tentando, porém, consolidar a sua materialidade no seu fim dessas ações. No entanto, atingir esse escopo no campo prático parece remoto e infactível. Notoriamente veem-se esforços e iniciativas pontuais de profissionais e de gestores para que essa articulação aconteça em todos os espaços e tempos, mas, cotidianamente, cruzam espaços rígidos, marcados historicamente pela separação dos territórios/setores e pela segmentação dos serviços, das concepções, das ações, dos interesses.

Diante desse quadro, é possível supor que a ação intersetorial não tenha efeitos apenas sobre o serviço prestado à população, no que diz respeito à compreensão e qualidade da intervenção realizada, mas, principalmente, pelo exposto em seu desdobramento, na própria atuação do profissional. Na ausência de uma ação articulada, o trabalhador se vê fragilizado e solitário na execução de suas tarefas.

Confirma, conforme a teoria bioecológica, que este processo de desenvolvimento é dependente da qualidade dos processos proximais nas instituições entre os vários sistemas em

foco (micro, meso, exo e macrossistema), interatuando sobre as características biopsicológicas das pessoas (dos profissionais e por consequência dos usuários).