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A experiência do desamparo como angústia originária

CAPÍTULO 2. DESAMPARO E ALTERIDADE

2.1 A experiência do desamparo como angústia originária

No romance de Inês Pedrosa, os personagens da narrativa confrontam-se com o desamparo, um afeto que, por vezes, as liquida. Entretanto, são distintos os modos de homens e mulheres lidarem com ele. Para nos aprofundarmos no romance e em suas figuras, princialmente nas femininas, buscaremos entender um pouco mais a respeito desse sentimento, tão presente na nossa sociedade e que permeia toda a obra.

A questão do desamparo como experiência inicial da condição humana ocupou a atenção de Freud em muitos de seus estudos psicanalíticos, apesar de ele não ter elaborado um trabalho específico sobre o tema. Podemos encontrar o termo principalmente em Inibição, sintoma e ansiedade (1926) e Mal-estar da civilização (1930). Jaques André, psicanalista francês e professor da Universidade Paris VII, em seu artigo Entre angústia e desamparo, reflete sobre o termo alemão Hilflösigkeit em Freud e suas dificuldades de tradução para outras línguas:

O desamparo, em psicopatologia, encontra seu primeiro termo em Freud:

Hilflösigkeit. Uma vez que não pode ser entendido fora da referência a Hilfe,

a ajuda, a palavra alemã não é traduzível de maneira satisfatória em francês; em inglês é helplessness. Ficamos então reduzidos a uma aproximação à palavra por perífrase, algo como: être en manque d’aide (estar sem ajuda) (ANDRE, 2001, p. 101).

Segundo Freud, a condição do desamparo (Hilflösigkeit) é marca característica do recém-nascido e faz parte da experiência humana, já que diferentemente da maior parte dos animais, o indivíduo precisa da proteção de outrem para ter suas condições básicas supridas. Indispensavelmente, ele necessita da ajuda (Hilfe) e acompanhamento de um outro para suprir suas faltas iniciais (lösig), pois não apresenta uma capacidade biológica para sobreviver aos perigos do mundo exterior.

Cabe salientar que, para Freud, o inconsciente é conceituado não somente como o “escondido”, mas como o “outro”. Ele é constituído pelo desejo do outro; se constitui na sua relação intrínseca com ele, e é justamente nessa conexão que ele designa a situação originária do desamparo na condição humana – a “Hilflösigkeit” - estar sem ajuda.

O professor e psicanalista Zeferino Rocha, em seu ensaio Desamparo e a Metapsicologia – para situar o conceito de desamparo no contexto da metapsicologia freudiana, faz uma análise do termo original cunhado por Freud em alemão. Ele afirma:

Pois bem, é nesta relação primária com o Outro que Freud encontra o paradigma da situação originária do desamparo e a designa como uma experiência de Hilflösigkeit. A palavra Hilflösigkeit é muito significativa, uma vez que é composta do substantivo “Hilfe”, que quer dizer auxílio, ajuda, proteção, amparo, do sufixo adverbial modal “lösig”, que indica carência, ausência, falta de, e ainda pela terminação “keit”, que forma substantivos do gênero feminino, cujo correspondente em português é a terminação “dade”. A palavra Hilflösigkeit significa, portanto, uma experiência na qual o sujeito se encontra sem ajuda – hiflos – sem recursos, sem proteção, sem amparo. Uma situação, portanto, de desamparo.

A Hilflösigkeit freudiana refere-se, primeiramente, ao estado em que se encontra o recém-nascido, completamente impossibilitado de poder ajudar-se a si mesmo com seus próprios recursos. De fato, dificilmente, se poderia imaginar um estado de desamparo maior do que esse do recém-nascido, o qual, por causa de sua imaturidade motora e psíquica, é um “hilflos”, vale dizer, alguém totalmente incapaz de satisfazer sozinho as suas necessidades vitais de sobrevivência (ROCHA, 1999, p. 334 - 335).

Assim, devido ao fator biológico (que coloca o outro como vital para a sua sobrevivência na primeira infância), forma-se o desamparo na criança e a consequente necessidade de ser amado, que o acompanhará pelo resto de sua vida. E, ao ficar à mercê do desejo do outro, surge a angústia no indivíduo. Em Inibição, sintoma e ansiedade, publicado em 1926, Freud trabalha o conceito de Hilflösigkeit, designando-o como o princípio, o gérmen da angústia. Também afirma que o desamparo é um dos fatores da neurose:

O fator biológico é o longo período de tempo durante o qual o jovem da espécie humana está em condições de desamparo e dependência. Sua existência intra-uterina parece ser curta em comparação com a da maior parte dos animais, sendo lançado ao mundo num estado menos acabado. Como resultado, a influência do mundo externo real sobre ele é intensificada e uma diferenciação inicial entre o ego e o id é promovida. Além disso, os perigos do mundo externo têm maior importância para ele, de modo que o valor do objeto que pode somente protegê-lo contra eles e tomar o lugar da sua antiga vida intra-uterina e enormemente aumentado. O fator biológico,

então estabelece as primeiras situações de perigo e cria a necessidade de ser amado que acompanhará a criança durante o resto de sua vida (FREUD, [1926] 1996, p.97).

Nesse estudo, Freud articulou a angústia ao desamparo, pensando o trauma do nascimento do ser humano como um “Urangst”, uma angústia originária. Neste desamparo inicial – do nascimento – está a angústia, que se repetirá ao longo de toda a vida do sujeito, surgindo nos mais diversos momentos de separação. Ou seja, o desamparo é uma angústia presente na condição humana pois está na base de seu existir.

Encontramos o conceito “desamparo” também em O mal-estar na civilização, escrito em 1929 e publicado no ano seguinte em alemão com o título Das Unbehagen in der Kultur (A inquietação na civilização). Freud concebeu a obra em um contexto pós Primeira Guerra mundial, momento em que a nação recuperava-se de severos danos ocasionados pelo conflito, e também ano em que se iniciou a Grande Depressão, um período de grande recessão econômica ocasionada pela quebra da Bolsa de Nova Iorque que afetou e deixou rastros em grande parte do mundo.

Na obra, Freud faz um estudo sobre a civilização, a inibição das pulsões dos indivíduos e o consequente mal-estar ocasionado por esse tolhimento. Ele também reflete sobre a busca pela felicidade e os caminhos percorridos pelo sujeito em busca do prazer: “No processo de desenvolvimento do indivíduo, o programa do princípio do prazer, que consiste em encontrar a satisfação da felicidade, é mantido como objetivo principal” (FREUD, [1930] 1996, p. 88).

A temática principal que Freud aborda em O mal-estar da civilização é o antagonismo inevitável entre o instinto humano e as barreiras que a civilização impõe ao sujeito e às suas pulsões. Freud inicia seu livro falando sobre a busca do homem por prazer desde o nascimento (com o seio de sua mãe), passando pela descoberta das sensações com seus próprios órgãos corporais, até o fim de sua vida adulta. O indivíduo busca eliminar qualquer sensação de desprazer e que lhe traga algum tipo de desconforto ou ameaça. Assim, para Freud, dá-se início a diversos distúrbios patológicos. Freud também afirma que, em busca da felicidade, o homem busca nas religiões (delírios de massa), a ausência do sofrimento e desprazer, indo ao encontro de sentimentos confortantes, para a eles se agarrar.

Assim sendo, desde o início, o princípio do prazer rege o aparelho psíquico do sujeito. Entretanto, a privação da satisfação de um instinto desempenha papel fundamental na vida civilizada. Freud tece que a substituição do poder do indivíduo pelo da comunidade é o marco

central da sociedade, ou seja, a exigência de uma lei (justiça) implicando o sacrifício de seus instintos mais primários. A renúncia ao instinto, a “frustração cultural” rege os relacionamentos sociais e é a grande causa da hostilidade nas civilizações: “A civilização tem de usar esforços supremos a fim de estabelecer limites para os instintos agressivos do homem e manter suas manifestações sob controle por formações psíquicas reativas” (FREUD, [1930] 1996, p. 71). A sublimação do instinto do sujeito é característica do desenvolvimento cultural.

Nesse sentido, Freud questiona que meios a civilização utiliza para inibir a agressividade e os instintos humanos, afirmando que ela é introjetada e internalizada, dirigida no sentido do ego. Assim, surge o sentimento de culpa e uma consequente necessidade de punição. Ele afirma: “A civilização, portanto, consegue dominar o perigoso desejo de agressão do indivíduo, enfraquecendo-o, desarmando-o e estabelecendo no seu interior um agente para cuidar dele, como uma guarnição numa cidade grande.” (FREUD, [1930], 1996, p. 78) A partir disso, Freud reflete sobre o desamparo e a dependência do sujeito em relação a ouras pessoas, já que:

De uma vez que os próprios sentimentos de uma pessoa não a conduziram ao longo do caminho, ela deve ter um motivo para submeter-se a essa influência estranha. Esse motivo é facilmente descoberto no desamparo e na dependência dela em relação a outras pessoas, e pode ser designado como meda da perda do amor… (FREUD, [1930] 1996, p. 78)

Quando o homem se dá conta de sua dependência, singularidade e da finitude de sua existência, ele percebe-se perdido em um estado de absoluta solidão e dor, o que acentua a experiência do desamparo. A impotência perante sua capacidade de dominar todas as situações – inclusive a morte – faz com que o sujeito mergulhe na escuridão e se atrele ao desespero da impotência. O tempo traz a angústia do imprevisível e do inesperado. Em contrapartida, aceitando a condição inata do desamparo, o sujeito passa a buscar soluções para os seus dilemas, transformando o desamparo em desafio, não em uma fatalidade.

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