• Nenhum resultado encontrado

Narrativas do desamparo: um estudo sobre o romance de Inês Pedrosa

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Narrativas do desamparo: um estudo sobre o romance de Inês Pedrosa"

Copied!
82
0
0

Texto

(1)

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LITERATURA

GISELLE MORAES HACHE

NARRATIVAS DO DESAMPARO:

UM ESTUDO SOBRE O ROMANCE DE INÊS PEDROSA

NITERÓI 2020

(2)

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LITERATURA

GISELLE MORAES HACHE

NARRATIVAS DO DESAMPARO:

UM ESTUDO SOBRE O ROMANCE DE INÊS PEDROSA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura, Subárea de Literatura Portuguesa e Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, da Universidade Federal Fluminense – UFF, como requisito parcial à obtenção de título de Mestre em Estudos de Literatura, sob orientação da Prof. Doutora Maria Lúcia Wiltshire de Oliveira.

NITERÓI 2020

(3)

Ficha catalográfica automática - SDC/BIF Gerada com informações fornecidas pelo autor H117n Hache, Giselle Moraes

Narrativas do desamparo: : Um estudo sobre o romance de Inês Pedrosa / Giselle Moraes Hache ; Maria Lucia Wiltshire de Oliveira, orientador. Niterói, 2020.

80 p.

Dissertação (mestrado)-Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2020.

DOI: http://dx.doi.org/10.22409/PPGF.2020.m.11649869703 1. Romance português contemporâneo. 2. Inês Pedrosa. 3. Feminilidade. 4. Desamparo. 5. Produção intelectual. I. Oliveira, Maria Lucia Wiltshire de, orientador. II.

Universidade Federal Fluminense. Instituto de Física. III. Título.

(4)

-GISELLE MORAES HACHE

NARRATIVAS DO DESAMPARO:

UM ESTUDO SOBRE O ROMANCE DE INÊS PEDROSA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura, Subárea de Literatura Portuguesa e Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, da Universidade Federal Fluminense – UFF, como requisito parcial à obtenção de título de Mestre em Estudos de Literatura, sob orientação da Prof. Doutora Maria Lúcia Wiltshire de Oliveira.

BANCA EXAMINADORA

Prof.ª Dr. ª Maria Lúcia Wiltshire de Oliveira – UFF – Orientadora

Prof.ª Dr. ª Ângela Beatriz Carvalho de Faria – UFRJ

Prof.ª Dr. ª Cláudia Maria de Souza Amorim – UERJ

Niterói 2020

(5)

À Magaly Brandão Dias Moraes In memoriam

(6)

AGRADECIMENTOS

À Professora Maria Lúcia Wiltshire de Oliveira, por acreditar e confiar em mim desde o início. Pela enorme paciência, acolhimento, respeito, compreensão e afeto durante toda a minha trajetória do mestrado, assim como pelo encorajamento tão necessário nesse árduo caminho. Pelo exemplo de generosidade e partilha de conhecimento, o meu eterno agradecimento.

Às Professoras Ângela Beatriz Faria e Cláudia Maria de Souza Amorim, pela disponibilidade e pelas valiosas participações nas bancas de qualificação e defesa. Pelas inúmeras contribuições teóricas, que tanto ajudaram na concretização desse trabalho.

Às professoras do mestrado, Tatiana Pequeno e Eurídice Figueiredo, que muito me inspiraram em suas disciplinas durante o curso.

A toda a equipe da Secretaria de Pós-Graduação da UFF, pela grande assistência, tanto pessoal, como virtualmente.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação de Estudos de Literatura da UFF, pelo inestimável trabalho e exemplo de profissionalismo e dedicação.

A minha mãe, Valéria, por tanto me apoiar a seguir a carreira docente, mas, principalmente, por ser o meu maior suporte e fonte de toda compreensão. Por nunca sair do meu lado, pela paciência e pelo amor imensurável.

Ao Roberto, meu pai, pelo amor, carinho, compreensão e apoio durante a minha trajetória no mestrado.

Ao Adriano, companheiro de toda a graduação e mestrado, e grande parceiro nessa jornada, que dividiu comigo todas as angústias e conquistas do processo, e que nunca, em momento nenhum, me deixou desistir.

Aos queridos amigos que fiz na UFF, com quem compartilhei medos e alegrias e que levarei para sempre comigo.

(7)

A Deus, por iluminar meu caminho e me guiar em todos os minutos da minha vida. Por tornar tudo possível.

A todos os que estiveram ao meu lado nesse percurso, muito obrigada.

(8)

Perder-se também é caminho. Clarice Lispector

(9)

RESUMO

Esse trabalho se propõe a analisar o romance português contemporâneo Desamparo, da escritora Inês Pedrosa, publicado no Brasil em 2016 pela Editora Leya. A autora oferece ao público uma obra que traça um panorama da sociedade portuguesa entre os séculos XX e XXI e versa sobre múltiplos temas como: a solidão, a culpa, a angústia, a velhice, o abandono familiar e a violência contra a mulher. Trata-se de uma narrativa plural construída através de quatro vozes que se alternam ao longo dos trinta e cinco capítulos do percurso. Como objetivo principal, buscaremos analisar o romance a partir do conceito de desamparo de Freud e lido, principalmente, pelo psicanalista Joel Birman, na tentativa de compreender como e porque esse sentimento se apresenta nas diferentes vozes que compõem a narrativa. Logo, nós nos interrogaremos: como essas figuras se comportam diante da feminilidade intrínseca ao sujeito (já que ela está no originário do psiquismo em ambos os sexos) e da sensação de incompletude que assola o ser humano? Analisaremos a escrita do romance a partir dos narradores, buscando uma resposta para a angústia latente em seus principais personagens. Como referencial teórico utilizaremos os estudos de Sigmund Freud, Joel Birman e Gerard Genette.

(10)

ABSTRACT

This work aims to analyze the contemporary Portuguese novel Desamparo, written by Inês Pedrosa, published in Brazil in 2016 by Leya Press. The author offers the public a work that traces a panorama of Portuguese society between the 20th and 21st centuries and deals with multiple themes such as: loneliness, guilt, anguish, old age, family abandonment and violence against women. It is a plural narrative built through four voices that alternate throughout the thirty-five chapters of the discourse. As a main objective, we will seek to analyze the novel based on Freud's concept of helplessness and read, mainly, by the psychoanalyst Joel Birman, in an attempt to understand how and why this feeling appears in the different voices that compose the narrative. Therefore, we will ask ourselves: how do these figures behave in the face of the femininity intrinsic to the subject (since it is in the origin of the psyque in both sexes) and the feeling of incompleteness that plagues the human being? We will analyze the writing of the novel from the narrators, seeking an answer to the latent anguish in its main characters. As a theoretical framework we will use the studies of Sigmund Freud, Joel Birman and Gerard Genette.

(11)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...……...……... 10

CAPÍTULO 1. O QUE É DESAMPARO?...…... 16

1.1 Da teoria do sexo único à diferença sexual………. 16

1.2 Histeria e psicanálise……….……….. 20

1.3 Sexualidade infantil – complexo de Édipo e angústia da castração……… 24

1.4 Sexualidade feminina – destinos possíveis………. 28

1.5 Feminilidade e desamparo………... 32

CAPÍTULO 2. DESAMPARO E ALTERIDADE………. 37

2.1 A experiência do desamparo como angústia originária………... 37

2.2 Desamparo na esfera social ………. 40

2.3 Mulheres em desamparo……….. 42

2.4 Os narradores de Desamparo………... 54

CAPÍTULO 3. DESAMPARO – UMA RESPOSTA ……… 59

3.1 A busca pelo prazer……….. 59

3.2 O outro………. 62

3.3 A criação……….. 68

CONSIDERAÇÕES FINAIS……….. 74

(12)

INTRODUÇÃO

Morremos sempre sozinhos. Mesmo de mão dada com a pessoa que mais amamos, os nossos dedos tornam-se de repente objetos em arrefecimento progressivo, deixamos de estar ali. (PEDROSA, 2016, p.119) A finalidade desta dissertação é realizar uma leitura do romance Desamparo, escrito em 2015 pela escritora portuguesa contemporânea Inês Pedrosa, à luz dos conceitos psicanalíticos de feminilidade e desamparo, desenvolvidos por Freud e lidos por Birman. Para tal, percorreremos os múltiplos caminhos freudianos empreendidos no decorrer de três décadas de estudos sobre a sexualidade humana, para entendermos como se constrói a feminilidade e seus caminhos de subjetivação.

A temática e o corpus escolhidos são resultados diretos de minhas leituras na graduação em Letras/Literaturas de língua portuguesa e no mestrado em Estudos de Literatura, na subárea de literatura portuguesa, dentro da linha de pesquisa Literatura, Teoria e Crítica Literária, na Universidade Federal Fluminense, sob orientação da Profª. Dra. Maria Lúcia Wiltshire de Oliveira. A feminilidade e o desamparo surgiram para mim como sendas ainda obscuras a serem exploradas.

Nesse sentido, para entendermos melhor essas questões, nos aprofundaremos, através da leitura de Joel Birman, nas principais obras freudianas sobre o assunto para tentar desmistificar, através de sua ótica original, o universo feminino e suas subjetividades. Ao buscar decifrar com grande interesse como a feminilidade se constituía, ele formulou diferentes hipóteses sobre a sexualidade ao longo de três décadas de pesquisa.

Importante pensar que a modernidade se instituiu a partir da desconstrução da teoria do sexo único e a aceitação da teoria da diferença sexual. A Antiguidade pregava a existência de um único sexo (tendo o masculino como perfeito) e apenas no final do século XVIII começou a ser fundamentado um discurso biológico para as diferenças entre os sexos, a partir do qual homens e mulheres teriam, na sociedade, funções determinadas pelas suas qualidades morais – às mulheres caberia a maternidade e o espaço privado (emoção) e aos homens, a vida pública (razão).

O paradigma fálico originário marcou profundamente o pensamento ocidental, desde a antiguidade clássica, passando pelo cristianismo até a modernidade. Essa hierarquia patriarcal entre os sexos continuou mesmo após a Revolução Francesa e a incorporação da teoria da

(13)

diferença sexual. Sob essa construção, o homem estaria mais próximo da perfeição, logo, do divino.

A psicanálise se originou a partir desse referencial fálico, buscando questionar o feminino. No final do século XIX, Freud lançou um novo olhar sobre as mulheres histéricas, descortinando seus sintomas, vistas até então como degeneradas. Elas ganharam direito à fala: pela primeira vez foram ouvidas e expressavam em seu consultório suas insatisfações com o destino que lhes era previamente imposto: a imposição da maternidade como elemento sine qua non e a impossibilidade do erotismo, do desejo e do gozo (que não eram condizentes com as boas virtudes da família). Entretanto, ao mesmo tempo em que ele a positivou, removendo as pacientes de um lugar imoral na sociedade, ele a pensou a partir do falo e da vertente masculina de sexo único.

Freud também mergulhou nos estudos sobre a sexualidade infantil, investigando mais a fundo o complexo de Édipo e de castração nos meninos e nas meninas, já que a compreensão da primeira infância seria fundamental para o entendimento da sexualidade e das neuroses na vida adulta. Segundo ele, o menino apegar-se-ia à sua mãe (seu primeiro objeto na amamentação) e veria o pai como rival, assim como a menina estabeleceria inicialmente uma referência amorosa com mãe, transferindo em seguida para seu pai, transformando a mãe em sua concorrente.

O complexo da castração ocorreria também nos dois sexos: no menino, o medo de ter seu pênis cortado, e na menina, a aceitação de sua condição de castrada e a consequente inferioridade e inveja do falo. O discurso freudiano se fundamentou até então, tendo o referencial fálico como o responsável pela sexualidade masculina e feminina.

Somente ao fim de suas pesquisas, Freud buscou romper com esse paradigma, ao definir a feminilidade como a origem do psiquismo no sujeito (e não mais como uma derivação do masculino). Cabe salientar que Freud distinguiu feminino de feminilidade, caracterizando esta última como uma potência de devir, inerente a ambos os sexos.

A aceitação da feminilidade como origem da sexualidade revelaria a natural imperfeição do ser humano, portanto, seu afastamento do divino, da completude. Essa experiência seria a marca de que somos finitos, errantes, humanos. Advém dela a possibilidade de sublimação e novas formas de reinvenção e criação, dando à psicanálise outras formas de pensar sobre os destinos do feminino, agora marcado pela singularidade.

(14)

Por outro lado, o desamparo vem justamente da incapacidade de o sujeito aceitar a sua feminilidade – sua subjetividade finita, incompleta, imperfeita e inconclusa. Enquanto pela postura fálica o sujeito busca o domínio e a totalização, na feminilidade ele depara-se com o relativo, não tendo controle sobre as coisas que o cercam. A dissolução da onipotência narcísica traz à tona a angústia de explorar o território erógeno, como Joel Birman nos revela:

É o desamparo humano que está em pauta pela mediação da construção fálica. Trata-se pois para o sujeito de se defrontar com o imponderável e o indizível, na medida em que ele não pode dominar inteiramente o curso das coisas, do mundo e do outro pela postura arrogante do eu. É a assunção subjetiva disso tudo que se pretende com a experiência psicanalítica e que se condensa na aventura enigmática em direção à feminilidade (BIRMAN, 1999, p.13).

Ao nos debruçarmos sobre Desamparo, de Inês Pedrosa, nos deparamos de imediato com a temática da feminilidade. Percebemos que ela permeia os principais personagens do romance, sujeitos incompletos, despedaçados, que não aceitam sua condição falha. São figuras que não encaram sua inevitável finitude, que sofrem com a angústia e a dor da experiência do desamparo, que é correlata ao ser humano.

Desamparo conta com trinta e cinco capítulos. Estes, narrados alternadamente por Jacinta, Raul, Clarisse e por um narrador onisciente, ampliam o leque de abordagens da autora, que vão sucedendo-se e aprofundando-se. As tramas que inicialmente não eram principais, vão tomando forma e expandindo-se. Diversas outras figuras vão surgindo com o passar da trama, e com elas, brotam novas questões, como a violência contra a mulher, o abandono familiar, as dificuldades da velhice, a crise econômica, e os mais diversos conflitos nas relações interpessoais.

Desamparo possibilita que o leitor seja tocado pela angústia de figuras permeadas pela solidão, abandonadas pelos filhos, pelos amigos, pelos pais, pelos companheiros, pelo Estado. São personagens que vivem no limiar da dor, que buscam consolo e auxílio para livrarem-se do desamparo em que se veem mergulhados.

Na obra, a alternância de vozes ao longo dos capítulos é fundamental para a descontinuidade espacial e temporal. Em sua narrativa polifônica, os quatro narradores nos oferecem uma gama de histórias que se passam entre o Brasil e Portugal entre o meado do século passado e o início do século XXI, nos fornecendo um panorama da história recente dos dois países.

(15)

Inês Pedrosa versa sobre o movimento de emigração empreendido por alguns de seus personagens, como Jacinta e Raul. Jacinta, portuguesa, tendo passado mais de cinquenta anos de sua vida em solo brasileiro, retorna a Portugal e estabelece-se com sua mãe em Arrifes, aldeia fictícia criada por Pedrosa, localizada a oito quilômetros da cidade medieval Vila de Lagar. Raul, o segundo narrador do romance, por sua vez, nascido no Brasil, decide seguir os passos de sua mãe e emigra para além-mar, inicialmente fixando residência em Lisboa. Após a morte de sua mãe, muda-se para Arrifes.

O desamparo é retratado através de diversas personagens, a começar por Jacinta, abandonada na infância e juventude pelos pais, na vida adulta pelos companheiros e na velhice, pelos filhos, que a rejeitam. Ao cair no pátio de sua casa, chama por seu filho que a ignora, Rafael. Jacinta lamenta a solidão em que vive, apesar do apoio de Raul. O desamparo torna-se mais agudo com a chegada da velhice.

Clarisse, terceira narradora, é outra personagem solitária. Desprezada pelo filho, que não a procura e mostra-se distante ao ser visitado pela mãe na América do Norte, sofre com sua ausência. Deprimida por perder o emprego de jornalista após um processo que destruiu sua carreira, encontra um trabalho em Arrifes como animadora de um centro social. Busca no amor de Raul um novo sentido para a sua vida.

A partir de Jacinta, Raul e Clarisse vemos que a ausência do outro é percebida como fonte de constante angústia, uma vez que estes buscam em outrem uma saída para evitar a solidão. Silvia Alexim Nunes, em seu artigo O Feminino e seus destinos – maternidade, enigma e feminilidade, comenta:

Para Freud, é a impossibilidade do sujeito de aceitar sua condição de desamparo o motor da assunção de uma posição masoquista tanto para homens quanto para mulheres, ou seja, diante do desamparo, a busca desesperada de um outro a quem oferecer seu corpo e sua alma é uma das saídas possíveis para o sujeito. O sujeito ao enganchar-se no outro, estabelece uma relação de servidão como forma de tentar evitar a dor do desamparo e afastar a angústia que lhe é correlata. (NUNES in BIRMAN, 1999, p. 55).

Como vemos, Inês Pedrosa em Desamparo, a partir de uma temática diversificada e uma narrativa polifônica, leva o leitor a pensar sobre a dor, a velhice, o abandono, a culpa e a incansável busca do ser humano por um rumo que lhe faça sentido. Jacinta, Raul e Clarisse buscam no outro um sentido à existência, como forma de escapar à solidão. Este surge como um possível alento ao sofrimento, no entanto, um dos narradores revela: “Morremos sempre

(16)

sozinhos. Mesmo de mão dada com a pessoa que mais amamos, os nossos dedos tornam-se de repente objetos em arrefecimento progressivo, deixamos de estar ali” (PEDROSA, 2105, p.119).

A angústia, fruto da feminilidade e de sua condição imperfeita e incompleta, está expressa nos narradores, que precisam encarar a experiência do desamparo para sublimar. Apenas aceitando a finitude inerente ao ser humano, o sujeito é capaz de transpor a dor do desamparo, como sentenciou Freud.

Dessa forma, no primeiro capítulo deste trabalho, buscaremos responder o que é desamparo. Para isso, nos basearemos nas obras Gramáticas do Erotismo e Cartografias do Feminino, de Joel Birman, psiquiatra e psicoterapeuta brasileiro, que em seus estudos revisa Freud. Também analisaremos as principais formulações freudianas referentes ao feminino, procurando compreender como ele reconfigurou em trinta anos de investigações, a questão da diferença sexual, da histeria, da sexualidade e por fim, da feminilidade.

Serão explorados: Estudos sobre a histeria (1893-1895), Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), A dissolução do Complexo de Édipo (1924), Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos (1925), Sexualidade feminina (1931), Feminilidade (1932), Análise terminável e interminável (1937).

Já, no segundo capítulo, analisaremos a relação entre desamparo e alteridade. Buscaremos entender como e porque o desamparo se apresenta na esfera social e nas personagens Jacinta, Clarisse e Vanessa, assim como analisar como estes personagens reagem frente a ele.

Também, no capítulo 2, analisaremos as vozes da narrativa de Inês Pedrosa, a partir das ideias do teórico francês Gerárd Genette, presentes em suas obras O Discurso da Narrativa e Figuras III. Buscaremos entender o porquê da escolha da autora por um específico modo de contar, assim como as perspectivas adotadas pelos quatro narradores do romance (heterodiegético ou homodiegético).

Por fim, no terceiro capítulo, buscaremos uma resposta ao desamparo do narrador, dando atenção à figura do outro e à criação (escrita e pintura) como saída possível para a angústia do sujeito.

Em vista disso, tentaremos compreender como o desamparo se reflete nas múltiplas vozes criadas pela autora. Com o intuito de encontrar uma saída para esse sentimento de solidão, nos interrogamos: como essas figuras comportam-se frente à sensação de

(17)

incompletude e finitude que assola o ser humano? Como a falta do outro é sentida como desamparo?

Vera Lúcia Dutra, ao rever Freud no artigo O conceito de sublimação à luz de uma perspectiva da feminilidade, afirma: “A angústia, diante tanto da incompletude e da finitude quanto do desamparo, impulsiona o sujeito à criação. Seu aplacamento, ao contrário, está a serviço de uma alienação estéril” (DUTRA in BIRMAN, 1999, p. 106). Nesse sentido, nos perguntamos: que lugar o outro exerce na condição de desamparo dos personagens da obra de Inês Pedrosa? Assim como nos questionamos: seria a criação uma alternativa para a angústia dos narradores?

Como fortuna crítica encontrei poucas, porém, valiosas, contribuições sobre o romance Desamparo. Entre elas, críticas de Miguel Real, Nuno Garcia Lopes, José Riço Direitinho, Maria Helena Sansão Fontes, Fabrício Vieira, António Simões e Davi Pimenta, muitas delas referentes ao lançamento da obra em Portugal, em 2015. Também tive acesso às pesquisas de Ulysses Rocha Filho, que desenvolve, no Brasil, um estudo interessante sobre Inês Pedrosa, como sua tese de doutorado, na Universidade Federal de Goiás, em 2013: Recorrências temáticas na poética de Inês Pedrosa: erotismo, amizade, memória e morte.

Nesse sentido, senti que haveria espaço para realizar uma pesquisa de mestrado sobre o romance indo em direção a uma outra perspectiva, utilizando a psicanálise como apoio teórico para entender a temática principal do livro. A presente dissertação pretende debruçar-se sobre a obra Desamparo, de Inês Pedrosa, e trazer uma colaboração às pesquisas acadêmicas sobre a autora no Brasil. A pouca fortuna crítica relacionada ao romance reflete a necessidade de se construir um maior estudo sobre a narrativa em questão.

(18)

CAPÍTULO 1. O QUE É DESAMPARO?

A feminilidade pode se desenhar no horizonte, sem que o sujeito se enrosque nas armadilhas do falo. (BIRMAN, 1999, p.15)

1.1 Da teoria do sexo único à diferença sexual

O que é desamparo? Para adentrarmos pelas sendas da feminilidade e do desamparo presentes na condição humana cabe-nos compreender o percurso da sexualidade feminina, marcada durante séculos por um télos falocentrista. Para tanto, buscaremos entender como deu-se a passagem da teoria do sexo único à diferença entre os sexos, assim como acompanhar alguns trabalhos que Freud desenvolveu por cerca de trinta anos a respeito da histeria, da sexualidade e da feminilidade, que assinalaram as bases da psicanálise.

A discussão sobre a diferença sexual surge entre o final do século XVIII e o início do século XIX. Até então dominava o modelo do sexo único, delineado na Antiguidade por Aristóteles e aprofundado por Galeno. Segundo o monismo sexual, os sexos seriam estabelecidos de maneira hierárquica, com a primazia do sexo masculino, considerado o paradigma perfeito. Para Aristóteles, no ato de geração dos seres, a mulher seria responsável pela causa material, ao passo que ao homem caberia o poder da causa formal. A materialidade da mulher não seria o suficiente sem a forma masculina. Assim, o macho seria o princípio gerador, ativo; enquanto à fêmea caberia fornecer a matéria, através de sua passividade. A superioridade masculina residia no fato de que através da geração ele seria responsável pela transmissão da humanidade por portar o princípio divino. Dessa forma, o masculino seria definido pela perfeição.

Já Galeno complexificou a teoria de Aristóteles, através da criação da teoria dos humores. Para ele, no ato da geração, a predominância do humor quente produziria o sexo masculino, e a sua falta, o feminino. O equilíbrio entre os humores quente e frio produziria a morfologia dos aparelhos genitais do macho e da fêmea. Haveria uma equivalência entre os dois sexos, através da presença ou não do humor quente – assim se daria o modelo do sexo único. A dominância do humor quente seria responsável pela projeção da genitália masculina para o exterior, ao passo que a sua ausência na circulação humoral no corpo feminino

(19)

ocasionaria a invaginação. Nesse sentido, os polos masculino e feminino seriam marcados respectivamente pela atividade/passividade, exterior/interior, ação/recepção, luz/sombra, quente/frio, verdade/não verdade, perfeito/imperfeito (BIRMAN, 2016, p.37-38).

Nesse contexto, haveria um único sexo marcado pela primazia no masculino, carregado do humor quente, que seria o responsável pela projeção da genitália para o exterior. O feminino poderia ser transformado em masculino se surgisse uma dominância do humor quente, mas não o inverso, já que o perfeito nunca se converteria em imperfeito. Esse paradigma da perfeição masculina, formulado na Antiguidade, perdurou até o início do século XVII, quando, aos poucos, foi sendo desconstruído e substituído pela teoria da diferença sexual. Nessa época, também surgiram novos estudos e desenhos sobre a anatomia humana. Joel Birman, em Gramáticas do Erotismo – A feminilidade e suas formas de subjetivação em psicanálise, afirma:

A constituição de um discurso sobre a diferença sexual é um acontecimento bastante recente na história do Ocidente, não obstante a naturalização daquele discurso. Com efeito, apenas no final do século XVIII e no início do século XIX teria se forjado um discurso sistemático sobre esta diferença, pois até então os sexos eram concebidos de maneira hierárquica, sendo sempre regulados pelo modelo masculino. Este era figurado de maneira indiscutível como o sexo perfeito. Foi este último modelo que prevaleceu, como referência e paradigma, na tradição ocidental desde a Antiguidade. Deslocamo-nos, portanto, de um paradigma fundado no sexo único para outro no qual existiriam dois sexos, distintos e bem diferenciados (BIRMAN, 2016, p.33)

A Revolução Francesa, de acordo com Birman, enterrou definitivamente o modelo do sexo único, ao passo que reconheceu a nova teoria da diferença sexual – ela procurou atribuir as características de natureza biológica às inserções sociais de ambos os sexos. A moderna democracia reivindicava a igualdade de condições e o determinismo biológico seria responsável por delimitar as funções dos homens e das mulheres:

Contudo, é preciso agora circunscrever como a formulação da igualdade de direitos entre os sexos, proclamada pela Revolução Francesa, foi o coveiro definitivo do discurso do sexo único, sendo simultaneamente aquilo que legitimou o discurso da diferença sexual. Isso porque a questão que se colocou então, de maneira aguda, foi como seria possível sustentar a hierarquia entre o homem e a mulher, quando se formulava ao lado disso, a igualdade de direitos entre cidadãos? Como efeito, se aqueles eram iguais perante a lei, deveriam ter, consequentemente, acesso às mesmas posições sociais (BIRMAN, 2016, p. 47).

(20)

No século XIX, com o desenvolvimento da biologia, constituiu-se uma ontologia da diferença sexual. De acordo com esta, homens e mulheres passaram a ser determinados por marcas naturais essenciais, que estariam inscritas no organismo de cada um, sendo estas de natureza biológica. Uma essência particular marcada por particularidades anatômicas e fisiológicas passou a diferenciar os dois sexos. Assim, a antiga premissa de que a mulher poderia transformar-se em homem tornou-se obsoleta. Já no século XX, a genética surgiu como ciência e fatores como o registro cromossômico e somático passaram a ser incorporados no paradigma moderno da diferença sexual.

Nesse contexto, surgiu a problemática da maternidade: o ser feminino seria necessariamente construído a partir da figura da mulher como mãe. O seu destino biológico seria fundamentado pelo propósito da reprodução da espécie, o que atribuiria sua função na sociedade: caberia a ela o espaço privado. A família seria o espaço destinado à mulher por excelência e a ela seria incumbida a governabilidade do lar. Com isso, distribuíram-se entre os sexos suas funções sociais entre o espaço público (produção) e o privado (reprodução). A mulher estaria mais perto do polo da natureza (afeto e dom para gestação) enquanto o homem estaria no da civilização – emoção versus razão.

Nesse sentido, a igualdade de direitos perante a lei, pregada pela Revolução Francesa, não foi concretizada, já que as mulheres ainda não possuíam o mesmo acesso às posições sociais do que os homens, ficando relegadas a elas a prerrogativa da maternidade como a legítima finalidade reprodutiva e a transmissão de costumes. Elas não seriam mais consideradas inferiores ao sexo masculino, porém teriam uma função biológica pré-determinada, que as posicionava hierarquicamente. A mulher teria um papel na modernização social: a construção da civilização. Portanto, tudo o que fosse ao embate deste processo ocasionaria desordem, como a demanda sexual excessiva. Ela estaria sempre entre dois polos antagônicos – poderia causar ordem ou desordem; teria uma posição civilizatória ou anticivilizatória.

Já que a função da mulher seria de reprodução e a sua sexualidade seria apenas em função da maternidade, o prazer feminino era visto como uma ameaça ao processo civilizatório. O erotismo da mulher desejante era considerado um desvio social e passível de punição, já que ia contra a finalidade biológica natural de seu corpo. A devassidão e o gozo feminino eram vistos como pecado pelo cristianismo, como Joel Birman nos explica:

(21)

Entretanto é preciso recordar que essa oposição radical entre maternidade e desejo no ser da mulher, formulada no século XIX, foi meticulosamente tecida pela tradição do cristianismo. Nesse particular, a ética cristã transformou radicalmente o erotismo pela tradição do paganismo da Antiguidade. Com o cristianismo, o erotismo foi esvaziado de suas virtudes e concebido como pura negatividade. Com efeito o modelo de sexo único de Galeano e na teoria aristotélica da geração, era anunciada a efetividade do orgasmo feminino como condição de possibilidade da geração. Vale dizer, somente existiria a concepção caso o orgasmo da mulher estivesse presente na relação sexual. Entretanto, o cristianismo desarticulou os registros de prazer e da reprodução, considerando o primeiro como da ordem do pecado. Constituiu-se, assim, a diabolização do desejo feminino, que poderia desviar as mulheres da existência casta e do caminho virtuoso da maternidade. Enfim, na ética cristã a relação sexual só seria permitida e reconhecida com fins reprodutivos, devendo ser silenciada qualquer dimensão de gozo no corpo feminino. (BIRMAN, 2016, p. 65).

Ao contrário da Antiguidade, em que o prazer era prerrogativa da concepção, a ética cristã pregou o desejo da mulher como um meio de desvio social e moral. Ao se afastar da maternidade e se enveredar pelo caminho do erotismo, a mulher que não aceitasse o seu “destino natural” de agente virtuosa e civilizatória se apresentaria como degenerada. Sendo assim, para cumprir seu fim determinado socialmente, a mulher deveria obrigatoriamente ter seu gozo anulado, ao contrário do homem, a quem era permitido o prazer erótico concomitante à reprodução. Assim, para a efetivação das demandas sexuais masculinas, a prostituição foi regulada pelo Estado moderno. Controlada pela medicina social, a antiga prática encontrou lugares específicos estabelecidos no espaço urbano para não representar ameaça, ao mesmo tempo em que possibilitava aos homens “o lugar efetivo para a existência do erotismo” (BIRMAN, 2016, p. 72).

Na medida em que existia a prostituição, existiam claramente mulheres que não se adequavam ao modelo estabelecido socialmente. No século XIX, essas mulheres encontravam nas ruas um destino viável que não o da maternidade e através do qual poderiam sobreviver. Eram descritas como perigosas, desvirtuosas e imorais – rebelavam-se contra o sistema e não se sujeitavam ao que lhes predeterminavam. A medicina estudava estas figuras, que eram enquadradas de acordo com quatro desvios morais da feminilidade: a prostituição, o infanticídio, a ninfomania e a histeria. Birman explica:

Com efeito, a prostituição seria caracterizada pela assunção positiva do erotismo como forma de vida e a recusa da existência familiar e maternal.

(22)

Da mesma maneira, a ninfomania seria marcada pelo erotismo excessivo, que transbordaria numa espécie de desejo insaciável presente nas mulheres. A infanticida seria aquela, enfim, que mataria de bom grado os filhos recém-nascidos, para se livrar assim do peso da maternidade e manter-se sempre livre para suas aventuras eróticas. (BIRMAN, 2016, p. 77)

Segundo Birman, o que diferenciaria a mulher histérica das outras três em questão é o fato de que esta não passaria à ação, como faz a prostituta, a infanticida e a ninfomaníaca. A histérica também recusaria o destino que lhe foi imposto, todavia repreenderia suas vontades no registro do imaginário. Ela “adoeceria psiquicamente, presa que ficaria, portanto, ao seu conflito moral, imobilizada e mortificada por não exercer todos os seus anseios e desejos” (BIRMAN, 2016, p. 79). A mulher histérica não conseguiria, assim, passar da imaginação à ação. Ela gostaria de agir como a prostituta, por exemplo, porém devido a conflitos internos morais não sairia da fantasia – imobilizada, não se deslocaria dos desejos ao ato em si. Para essas mulheres consideradas degeneradas, no século XIX, uma forma de controle médico era a extração do clitóris, pois através desse procedimento, a mulher teria seus impulsos eróticos controlados e seriam realocadas no papel de mãe. Internações e exclusões do convívio social também eram destinos finais frequentes para a figura histérica, considerada portadora de uma patologia sexual.

Nesse contexto, a oposição entre erotismo e maternidade foi peça-chave para o surgimento da psicanálise. Tendo o feminino na sua origem, ela fundou-se como um discurso que visava interrogar a questão da mulher, seus anseios e suas angústias. Com o surgimento da diferença sexual, o feminino foi colocado em evidência e a figura da histérica tornou-se fundamental para a compreensão da feminilidade.

1.2 Histeria e psicanálise

A histeria está no cerne do discurso psicanalítico, que se instituiu interrogando o feminino a partir da diferença sexual. Na tentativa de desvendar a construção das subjetividades advindas do papel da mulher na modernidade (e suas recusas), a psicanálise se debruçou sobre a mulher histérica e buscou oferecer a ela outros destinos possíveis.

Na cultura greco-romana, a figura da histérica era atribuída exclusivamente à mulher. De acordo com a suposição de Hipócrates, achava-se que a histeria era provocada pelo deslocamento do útero de sua posição inicial, natural, e sua consequente inserção no

(23)

sistema nervoso, ocasionando a convulsão. Duas poderiam ser as causas da doença: o desejo de ser mãe ou a insatisfação de seus desejos sexuais. A mulher teria biologicamente um desejo inato de procriar, mas a impossibilidade de gestação a levaria a crises convulsivas. O desejo feminino estaria, portanto, ligado ao ato de gerar. A identidade feminina ligada à maternidade foi acentuada pela necessidade de procriação em certas épocas e sociedades, devido à alta taxa de mortalidade. Gerar uma criança era considerado obrigatório para a manutenção da vida, portanto, consequentemente era atribuído um poder social à mulher capaz de dar à luz. (BIRMAN, 2016, p.85).

Essa teoria vigorou até o início do século XVII, quando outra concepção surgiu afirmando que a histeria estava relacionada a uma alteração no sistema nervoso. Ocorreu então a dessexualização da histeria, já que ela não mais teria relação com a procriação e com o erotismo (útero), e sim com o sistema nervoso do sujeito. Sendo assim, ela poderia existir também entre homens. Considerada agora uma doença nervosa, a histeria passou a ser, aos poucos, desconstruída como desvio sexual. Ela apresentava-se similarmente como a epilepsia, devido aos ataques compulsivos, contrações do corpo e espasmos musculares, por exemplo.

Em seus estudos, Freud realizou uma nova leitura da histeria e foi o grande responsável pela sua positivação. Seu discurso, inédito e original, alocou a histeria dentro do psiquismo, que seria regido pela sexualidade. Nesse sentido, para ele, o psiquismo poderia dar conta das crises nervosas. Freud foi influenciado pelos médicos neurologistas Jean-Martin Charcot (1825-1893) e Hippolyte Bernheim (1837-1919), tendo sido discípulo de ambos. Para o primeiro, da escola francesa, a histeria seria a decorrência de uma lesão nervosa provocada por traumas mecânicos, ao passo que para o segundo, da escola suíça, ela seria uma perturbação psíquica produzida pela sugestão, podendo ser curada através da hipnose. Através dos dois, Freud começou a se valer a psicoterapia persuasiva, assim como da hipnótica. Entretanto, para Freud, a histeria não teria relação com lesões traumáticas, assim como acreditava que a sugestionabilidade proposta por Bernheim deveria se fundamentar em outra coisa.

Freud converteu a lesão nervosa em traço psíquico, que “seria uma verdadeira cicatriz mental que poderia dar conta da experiência histérica. Com isso, deslocou decisivamente o lugar da histeria, promovendo a passagem desta do campo somático para o psíquico” (BIRMAN, 2016, p. 135). Essas cicatrizes e marcas estariam relacionadas a vivências psíquicas traumáticas. Assim, o ataque histérico seria uma recordação desse trauma,

(24)

ao mesmo tempo que consistiria em um esforço de subtrair estas marcas do psíquico. Em Estudos sobre a histeria (1895), escrito em coautoria com o médico austríaco Josef Breuer, Freud enuncia:

Na neurose traumática não é o ferimento físico insignificante a causa efetiva da doença, mas o afeto de pavor, o trauma psíquico. De maneira análoga, para muitos, senão para a maioria dos sintomas histéricos, nossas investigações revelaram causas imediatas que devemos designar como traumas psíquicos. Toda vivência que suscita os penosos afetos de pavor, angústia, vergonha, dor psíquica, pode atuar como trauma psíquico; se isso de fato acontece depende, compreensivelmente, da sensibilidade da pessoa afetada (FREUD, [1895] 2016, p. 22).

Para Freud, recordar com afeto seria essencial para o desaparecimento dos sintomas histéricos. A reação não poderia ser suprimida, já que o sofrimento suportado em silêncio faria com que o afeto continuasse ligado à lembrança: “A linguagem também reconhece essa diferença nas consequências psíquicas e físicas e, de modo bastante característico, designa como ‘agravo’ precisamente o sofrimento suportado em silêncio” (FREUD, [1895] 2016, p. 26). Segundo ele, a hipnose seria de extrema valia para reavivar a memória do paciente: “Somente quando eles são interrogados na hipnose essas lembranças aparecem com a vividez intocada de acontecimentos frescos” (Ibidem, p. 28). Sendo assim, através da hipnose seriam reavivados traumas psíquicos (um grande trauma ou vários parciais), com o doente colocando o afeto em palavras, e a partir disso, o fenômeno patológico poderia vir a desaparecer.

Mais à frente, em seus estudos, Freud afirmou, também de forma revolucionária e impactante, que esses traumas psíquicos teriam relação direta com uma sedução precoce da criança, estando esta em uma situação de impotência (experiência originária de sedução). Assim, surgiu a concepção sexual da histeria, que seria portanto, unicamente de natureza psíquica e sexual. O erotismo apresentar-se-ia “no psiquismo do sujeito, marcando definitivamente a leitura deste na modernidade” (BIRMAN, 2016, p. 138). As marcas cicatriciais se manifestariam no imaginário do indivíduo desde as suas origens (sexualidade infantil). Sendo assim, a atividade libidinal e os registros de fixações pulsionais marcariam, através de reminiscências, o corpo erógeno do histérico. Essas intensidades, sempre eróticas, seriam reguladas pelo prazer e se apresentariam como excitações corpóreas. A questão

(25)

principal então passou a ser que destino oferecer a essas pulsões permeadas por intensidades presentes dentro do corpo.

Para que o sujeito conseguisse a cura seria necessário rememorar as experiências traumáticas e suas intensidades, como já vimos. Segundo Freud, deveria haver uma catarse para expurgar os afetos reprimidos: “A reação do lesado ao trauma só tem efeito inteiramente ‘catártico’ quando é adequada, como a vingança” (FREUD, [1895] 2016, p. 26). Com isso, uma nova dimensão na posição do sujeito se revelou no tratamento psicanalítico – o paciente passou de passivo a ativo e conquistou o direito de fala.

O paciente não estaria mais numa posição paralisante, e sim libertadora, de ação, de rememoração de seus traumas. A própria fala tornou-se essencial para a descarga emocional do indivíduo. Ele compartilharia o processo de cura com o terapeuta, alterando a dimensão de poder na psicanálise. “Com isso, as intensidades e excessos excitatórios do psiquismo e do corpo poderiam ter outros destinos possíveis, estruturantes para a subjetividade” (BIRMAN, 2016, p. 157).

Freud e Breuer insistiram em que suas pacientes histéricas não eram mulheres degeneradas, imorais, como era costume dizer até o final de século XIX. Em Estudos sobre a histeria, Breuer relata o caso de sua célebre paciente Anna O. - pseudônimo criado por ele para designar Bertha Pappenheim – na época de 1880, com então 21 anos. A judia austro-alemão foi diagnosticada com histeria e tratada pelo médico neurologista, através da hipnose e da catarse durante dois anos. Ela sofria gravemente de paralisias, contraturas musculares, perturbações de visão, depressão, tentativas de suicídio, entre outros sintomas. O interessante notar é que Breuer sublinhou a nobreza de caráter de Bertha, qualificando-a positivamente:

Ela própria sempre fora saudável, sem qualquer nervosismo durante seu período de desenvolvimento; de notável inteligência, intuição aguda e surpreendente capacidade de apreender as coisas; um intelecto vigoroso que teria assimilado sólido alimento espiritual e dele necessitava, mas não o recebeu após deixar a escola. Rico talento poético e dom da fantasia, controlados por um entendimento muito penetrante e crítico (…) Sua vontade era energética, tenaz e perseverante; às vezes beirava a obstinação que só renunciava a seu propósito por bondade, por amor aos outros.

Entre os traços essenciais de seu caráter estava a bondade compassiva (BREUER in FREUD, [1895] 2016, p. 40).

Com esse fragmento do caso de Anna O., podemos notar a importância que esse novo discurso psicanalítico teve ao referir-se às histéricas, não as tratando mais de forma

(26)

pejorativa, de modo a excluí-las. Essas mulheres passaram a ser vistas, não mais como possuidoras de um traço malévolo, mas sim através de suas virtudes éticas e intelectuais. Sobre os pareceres positivos a respeito das pacientes, Birman declara:

Porém, não se trata absolutamente de enunciados gratuitos na sua literariedade. Pelo contrário, tais afirmações se acompanham sempre de algum comentário positivo sobre a personagem principal da narrativa em questão. Seriam as virtudes dessas personagens, ressaltadas pela prosa freudiana, que dariam consistência às afirmações de que não se trataria de degeneradas. Seria, enfim, a positividade das virtudes morais dessas personagens que sustentariam tais enunciados criticos (Birman, 2016, p. 164).

Esse anúncio original foi um grande passo pois ao mesmo tempo em que retirou as mulheres de uma condição desviada/degenerada, também eliminou o dispositivo de que a histeria pudesse ser hereditária. Após esse estudo inicial sobre a doença, Freud formulou diferentes interpretações sobre os conceitos de histeria, diferença sexual e feminilidade. Seu discurso esteve marcado por ambiguidades e contradições, já que foi desenvolvido e amadurecido em um período de aproximadamente 30 anos, como nos conta Birman:

Com efeito, se, por um lado, aquele discurso deu de fato voz e direito à fala para as mulheres desde os seus primórdios, pela positivação da histeria no final do século XIX, realizou também, ao lado disso, uma leitura do psiquismo feminino pela qual este seria marcado pelas impossibilidades de sublimação e de restrições eloquentes na ordem do pensamento. Esta patente contradição está no fundamento de todas as outras, que se enunciam como efeitos em cascata dessa formulação inicial. (BIRMAN, 2016, p.18-19).

Como vimos, através da psicanálise, Freud foi inovador ao dar voz às mulheres que até então não conseguiam expressar suas angústias. As histéricas, pela primeira vez, foram ouvidas e ao final do século XIX, ocorreu uma positivação da histeria.

1.3 Sexualidade infantil – Complexo de Édipo e a angústia da castração

Em 1905, em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud anunciou os fundamentos da sexualidade infantil (funcionamento perverso-polimorfo), assim como explicitou como ocorria a pulsão sexual nos neuróticos. Para Freud, essas psiconeuroses se fundamentariam em forças pulsionais de cunho sexual, que estariam presentes desde a

(27)

infância no indivíduo na forma de libido. Segundo ele, a resistência à pulsão sexual e seu consequente recalcamento (em diversos graus) moldariam os sintomas histéricos:

A psicanálise elimina os sintomas dos histéricos partindo da premissa de que tais sintomas são um substituto – uma transcrição, por assim dizer – de uma série de processos, desejos e aspirações investidos de afeto, aos quais, mediante um processo psíquico especial (o recalcamento). Nega-se a descarga através de uma atividade psíquica passível de consciência. Assim, essas formações de pensamento que foram retiradas num estado de inconsciência aspiram a uma expressão apropriada a seu valor afetivo, a uma

descarga, e no caso da histeria, encontram-se mediante o processo de conversão em fenômenos somáticos – justamente os sintomas histéricos

(FREUD, [1905] 1996, v.7, p.99).

Nesse estudo, Freud também distinguiu pulsão de instinto, este considerado um comportamento animal, ao passo que a pulsão seria exclusivamente humana e possuiria um objeto e um alvo sexual. O objetivo da pulsão seria acabar com a tensão em sua fonte e, a partir disso, os prazeres se manifestariam.

Sobre a disposição perversa-polimorfa na criança (inerente à natureza humana e podendo apresentar diversas formas), Freud enunciou que, através da influência da sedução, ela poderia ser levada a inúmeras transgressões: “Em condições usuais, ela pode permanecer sexualmente normal, mas, guiada por um sedutor habilidoso, terá gosto em todas as perversões e as reterá em sua atividade sexual” (FREUD, [1905] 1996, v.7, p. 114). Birman afirma que “enquanto perverso-polimorfa, a sexualidade existiria desde sempre no sujeito, independendo do registro biológico do sexo, podendo acontecer na infância, na maturidade e na velhice, tornando-se pois relativamente autônoma dos processos hormonais” (BIRMAN, 1999, p. 30). Freud, ao contrário de Breuer, salientava que para a compreensão da etiologia sexual das neuroses era imprescindível a análise do comportamento do sujeito na sua primeira infância.

Assim, Freud, ao investigar a sexualidade infantil, no capítulo O Enigma da Esfinge, retomou o monismo sexual ao afirmar que o pênis seria o único órgão sexual reconhecido pelas crianças (o menino acreditaria que há uma genitália idêntica à sua em todos que o rodeiam). Já a menina, diferentemente, seria tomada pela inveja do pênis e pelo desejo de ser do sexo oposto. Ele, ainda em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, ao explorar as zonas dominantes no homem e na mulher, declarou que na menina a zona erógena localizar-se-ia no clitóris, sendo homóloga à zona genital masculina, porém, na maturidade,

(28)

ela transferiria a excitação do clitóris para a vagina, alterando assim a zona erógena dominante. O destino da sexualidade seria o prazer, entretanto a puberdade, que traria consigo o recalque, faria com que as mulheres ficassem propensas a desenvolverem neuroses, principalmente sintomas histéricos. “Esses determinantes, portanto, estão intimamente relacionados com a natureza da feminilidade”, assegura Freud (FREUD, [1905] 1996, v.7, p.133).

Já em 1924, em A dissolução do complexo de Édipo, Freud afirmou que o complexo em questão seria central na primeira infância (estágio fálico) e ocorreria em ambos os sexos. Segundo ele, surgiria um “desejo incestuoso” da menina pelo pai e do menino pela mãe, já que ela buscaria ser considerada o único e grande amor de seu progenitor, assim como o menino encararia a figura da mãe como posse unicamente sua. Também afirmou que “o desenvolvimento sexual de uma criança avança até determinada fase, na qual o órgão genital já assumiu o papel principal. Esse órgão genital é apenas o masculino, ou mais corretamente, o pênis; o genital feminino permaneceu irrevelado” (FREUD, [1924] 1996, v.19, p.103).

Na infância, quando o menino se voltaria para seu órgão sexual através da masturbação, seria reprimido pelos adultos, mais especificamente, pelas mulheres, que ameaçariam, através da punição, de cortá-lo, castrando-o. Todavia, ao aceitar a possibilidade de castração, a criança deparar-se-ia com seu ego, e seu interesse narcisístico pelo seu órgão genital prevaleceria. O menino com o medo da castração e a menina já com a sua precondição assumida (ele a temeria, já ela a aceitaria como fato consumado), voltariam as costas ao complexo de Édipo. Birman afirma: “A identificação do menino com a figura paterna se daria pelo terror de perder o pênis, órgão corporal altamente valorizado, de forma que em nome de não perdê-lo mesmo abriria mão de desejo dirigido à figura materna” (BIRMAN, 2016, p. 177).

Já o Édipo da menina resultaria em um sentimento de inferioridade por não possuir o pênis. Como recompensa, ela forjaria um desejo de receber um filho de seu pai, o que não se realizaria. Ela estaria dessa forma buscando o que lhe falta – na ausência do pênis, um bebê fruto de seu progenitor. O desejo de possuir o órgão masculino, assim como depois de gerar uma criança, permaneceriam no seu inconsciente, deixando marcas que ditariam suas futuras tendências sexuais.

Um ano depois, em 1925, Freud escreveu Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos, debruçando-se ainda sobre o complexo de Édipo e a

(29)

castração. Ele prosseguiu afirmando que a análise do “primeiro florescimento da vida sexual” na infância seria essencial para a compreensão da neurose. Expôs que o complexo era visto com mais facilidade e segurança no menino, já que ele apegar-se-ia ao mesmo objeto do período da amamentação e perceberia o pai como um grande rival, pois dele gostaria de livrar-se e assumir sua posição ao lado da mãe. Porém, por pânico da castração, devido a sua preocupação narcisística com o pênis, ele sucumbiria ao medo. Com o choque da possibilidade de castração, o complexo seria reprimido. Por outro lado, as meninas, segundo Freud:

(…) notam o pênis de um irmão ou companheiro de brinquedo, notavelmente visível e de grandes proporções, e imediatamente o identificam com o correspondente superior de seu próprio órgão pequeno e imperceptível; dessa ocasião em diante caem vítimas da inveja do pênis (…) Ela o viu, sabe que não o tem e quer tê-lo (FREUD, [1925] 1996, v. 19, p.150).

O menino tem medo de perder o órgão, a menina quer ter o que não possui. Isso geraria nela um sentimento de inferioridade, que chegaria a culpar a mãe pela insuficiência em seu corpo. Assim como fez em seu estudo anterior, Freud continuou salientado que a menina abandonaria o desejo de possuir um pênis e passaria a outro desejo: gerar uma criança com o objetivo de ter o pai como objeto amoroso. Ele afirmou:

Enquanto, nos meninos, o complexo de Édipo é destruído pelo complexo de castração, nas meninas ele se faz possível e é introduzido através do complexo de castração. Essa contradição se esclarece se refletirmos que o complexo de castração sempre opera no sentido implícito em seu conteúdo: ele inibe e limita a masculinidade e incentiva a feminilidade. (FREUD, [1925] 1996, v. 19, p.152).

Nesse sentido, a feminilidade seria, segundo Freud, incentivada pelo complexo de castração, pois a menina não teria motivo para temê-la. A masculinidade, por outro lado, sofreria seus efeitos negativos. Sendo assim, a diferença fundamental entre os dois residiria no fato de que na menina a castração já seria realizada, enquanto o menino temeria por ela – onde nela começaria o complexo, nele terminaria. Birman explica:

A especificidade do complexo de Édipo da mulher foi então enunciada com mais rigor. Com efeito, o complexo edipiano na menina começaria então onde o do menino terminaria, já que o complexo e a angústia de castração

(30)

seriam os determinantes disso. Assim, se a ameaça de castração no menino seria aquilo que o arrancaria definitivamente do regaço e da volúpia dirigida à figura materna e lhe conduziria ao mundo paterno, no caso da mulher, em contrapartida, onde supostamente a castração existiria, no real do corpo, a constatação desta lhe conduziria a uma busca do órgão faltante. Desta maneira, a mulher estaria sempre buscando isso que lhe faltaria, que da figura do pai à do homem, mediada pelo bebê, ordenaria seu percurso. O Édipo da mulher se iniciaria, pois, onde o do homem terminaria. “Torna-se mulher” seria, enfim, o emblema maior e o aforismo que definiria o percurso feminino ao longo do complexo de Édipo (BIRMAN. 2016, p. 180).

O discurso freudiano, até então, se fundamentou tendo como paradigma a sexualidade masculina. O universalismo da identidade do homem pode ser observado na medida em que ele utilizou centralmente a figura masculina para dissertar sobre o complexo de Édipo, com o foco contido nas reações do menino: “Porém, o que o discurso freudiano realizou foi sempre a narrativa masculina do complexo de Édipo, sendo a narrativa feminina deixada inicialmente de lado” (BIRMAN, 2016, P. 178).

De início, somente a partir da representação do masculino poderia chegar-se ao entendimento do ser da mulher – a condição feminina estaria associada a do sexo oposto. A feminilidade seria uma derivação, conquistada após a perda da masculinidade originária, ou seja, “Torna-se mulher” seria o trajeto percorrido pela menina. Para isso, ela deveria abandonar o prazer clitoriano (órgão fálico análogo ao pênis, porém menor), transferindo-o para a vagina, ocorrendo uma alteração no órgão de gozo. Essa subtração da condição masculina originária transformaria seu gozo de ativo a passivo. Notamos a presença de um paradoxal enunciado freudiano baseado no monismo fálico. Contudo Freud, mais a frente em seus estudos, aprofunda essa questão, dando uma nova dimensão ao enigma da feminilidade.

1.4 Sexualidade feminina – destinos possíveis

Freud escreveu, em 1931, a Sexualidade Feminina, no qual retomou o complexo de Castração e de Édipo. Ele afirmou que o desenvolvimento da sexualidade na menina seria mais complexo do que no sexo masculino, pois ela teria que abandonar o clitóris – como órgão de gozo (e até então seu principal órgão sexual) - pelo prazer vaginal. Também analisou a transferência de seu objeto original: a mãe pelo pai. Declarou que esses dois fatores ainda não eram claros para ele.

(31)

No artigo, Freud nos revelou três caminhos possíveis para a menina, após a descoberta e a aceitação de que seria castrada (ela reconheceria que a castração e a sua consequente inferioridade perante o homem, porém rebelar-se-ia contra isso). O primeiro seria a repulsa à sexualidade. Ela, inconformada com a ausência do pênis, rejeitaria a atividade fálica, o que a conduziria à inibição de toda a sua vida sexual. O segundo caminho (a fantasia de conseguir um falo e ser um homem) a levaria ao complexo de masculinidade, podendo em algum momento tornar-se homossexual. Por fim, o terceiro caminho a levaria à “atitude feminina normal final”, à feminilidade definitiva, através da qual, pelas sendas da maternidade (troca do gozo clitoriano pelo vaginal), substituiria o desejo inicial de possuir um falo pela ânsia de gerar um filho. Birman diz: “Pela maternidade a perfeição seria atingida como tal, por ter assim a mulher o falo pela mediação da figura da criança, sendo esta, pois, a solução normal para o discurso freudiano” (BIRMAN, 2016, p. 210). A masculinidade simbolizaria o originário, a perfeição (concepção encontrada na Antiguidade, como vimos) e a maternidade representariam a subjetivação esperada da mulher, o percurso normal a ser seguido para sua completude.

Sobre o momento em que esses eventos ocorrem, Freud explica: “Não é fácil determinar aqui o momento exato ou o curso típico dos eventos. Mesmo o momento em que a descoberta da castração é efetuada varia, e uma série de outros fatores parece ser inconstante ou depender do acaso” (FREUD, [1931] 1996, v.21, p. 142). Ou seja, as interferências que a menina sofreu durante o processo ou após seriam cruciais em seu desenvolvimento como mulher.

Em Feminilidade, último ensaio que Freud escreveu particularmente sobre o assunto, em 1932, ele declarou: “Os senhores, agora, já estão preparados para saber que também a psicologia é incapaz de solucionar o enigma da feminilidade” (FREUD, [1932] 1996, v.22, p. 77). Disse ainda que a psicanálise não objetivaria descrever o que é a mulher, mas sim, questionar como o ser da mulher seria formado. Freud, mais uma vez, retomou o complexo de Édipo, analisando a sexualidade infantil para tentar entender as bases enigmáticas ou obscuras femininas. Revelou que a poesia e a arte poderiam decifrar com mais sucesso a figura da mulher do que a psicanálise e a ciência.

Freud retomou as ideias do complexo de castração e a inveja do pênis, afirmando que “esta deixará marcas indeléveis em seu desenvolvimento e na formação de seu caráter, não sendo superada, sequer nos casos mais favoráveis, sem um extremo dispêndio de energia

(32)

psíquica (Ibidem, p. 84), assim como resgatou as três linhas de desenvolvimento possíveis para a menina após a aceitação da castração.

Freud voltou atrás e buscou solucionar a falha em seu discurso de que a mulher estaria impreterivelmente associada à passividade e o homem à atividade, como era comum supor desde a época greco-romana: “A distinção não é uma distinção psicológica; quando dizem ‘masculino’, os senhores geralmente querem significar ‘ativo’, e quando dizem ‘feminino’, geralmente querem dizer ‘passivo’” (FREUD, [1932] 1996, v.22, p.76). Freud, durante a conferência, afirmou que as dicotomias (mulher/passiva versus homem/ativo) eram errôneas:

Bem podem duvidar se auferiram daí alguma vantagem real, quando refletem que, em algumas classes de animais, as fêmeas são mais fortes e mais agressivas e o macho é ativo unicamente no ato da união sexual. Assim ocorre, por exemplo, nas aranhas. Mesmo as funções de criar e de cuidar do filhote, que temos na conta de papel feminino par excellence, não estão invariavelmente ligadas ao sexo feminino, nos animais. Em espécies bem superiores, verificamos que ambos os sexos dividem entre si o trabalho de cuidar do filhote, ou que o próprio macho, sozinho, dedica-se a essa tarefa. Até mesmo na esfera da vida sexual humana, os senhores logo verão como é inadequado fazer o comportamento masculino coincidir com a atividade e o feminino, com a passividade (FREUD, [1932] 1996, v.22, p.76-77).

Freud prosseguiu nos dando o exemplo da amamentação, em que a mãe seria ativa para com o seu filho no ato de dar-lhe o leite. Por fim, afirmou que essa noção equivocada estaria associada a convenções e fatores culturais, que induziriam as mulheres a uma condição passiva. Revelou que devido à supressão da agressividade das mulheres, elas desenvolveriam impulsos masoquistas, de submissão ao outro, considerados “verdadeiramente feminino”.

Neste mesmo ensaio, Freud buscou desassociar os conceitos de feminino e feminilidade. O primeiro estaria relacionado ao complexo de castração e ao paradigma fálico masculino, ao passo que o segundo termo já estaria na ordem do erotismo, podendo ser encontrado não só em mulheres, mas também em homens. Para Freud, o conceito da feminilidade, ainda misterioso e de difícil compreensão, encontrava-se inacabado.

Concluindo seus pensamentos, Freud escreveu em 1937, Análise terminável e interminável, no qual falou, de forma pessimista, sobre o estudo da técnica e a etapa do término do tratamento psicanalítico, que muitas vezes ficava incompleto. O que nos interessa, no entanto, é a retomada da ideia de feminilidade e o retorno ao tema recorrente da aceitação da castração: na mulher o desejo do pênis e no homem o conflito contra uma atitude passiva

(33)

ou feminina. O “repúdio da feminilidade” seria uma conduta que surgiria com o complexo de castração presente em ambos os sexos, porém, em posições distintas. Sobre essa renúncia, Freud disserta:

Nos homens, o esforço por ser masculino é completamente egossintônico desde o início; a atitude passiva, de uma vez que pressupõe uma aceitação da castração, é energicamente reprimida e amiúde sua presença só é indicada por supercompensações excessivas. Nas mulheres, também, o esforço por ser masculino é egossintônico em determinado período – a saber, na fase fálica, antes que o desenvolvimento para a feminilidade se tenha estabelecido. Depois, porém, ele sucumbe ao momentoso processo de repressão cujo desfecho, como tão frequentemente foi demonstrado, determina a sorte da feminilidade de uma mulher (FREUD, [1937] 1996, v.23, p. 163).

O conceito de feminilidade desenvolvido por Freud foi visto por muitos estudiosos como negativo, já que estaria relacionado ao complexo de castração, ou seja, seria uma subjetividade gerada pela figura referencial do falo (este sendo o motivador do erotismo). Entretanto, por outro lado, o discurso de Freud evidenciou que haveria outro registro psíquico na concepção da sexualidade. Essa seria a novidade do discurso freudiano – a feminilidade como originária. Joel Birman discorre:

O conceito foi formulado por Freud de forma negativa, é verdade, na medida em que a feminilidade seria a fronteira do denominado “rochedo da castração”, mas ela revelaria também o originário do psiquismo, algo anterior à ordenação da subjetividade fundada no falo, como já se indicou acima. Contudo, (…) suponho que seja possível encontrar naquele outro fio interpretativo possível da concepção de sexualidade presente no discurso freudiano. Dessa maneira, a feminilidade nos permitiria uma outra leitura sobre o estatuto do feminino em psicanálise. (BIRMAN, 2016, p. 223)

Sendo assim, outro ponto de partida surgiu para a decodificação do sujeito. Birman diz que “feminilidade estaria na origem do psiquismo. Esta seria agora o originário e não mais o psiquismo centrado no falo” (Ibidem, p. 226). Nessa nova inscrição da feminilidade, a sexualidade (feminina e masculina) não seria regulada pelo operador fálico – que seria uma falta. A feminilidade estaria agora na origem, na fundação da subjetividade, enquanto o referencial fálico se apresentaria como uma derivação. Haveria, portanto, uma recusa à perfeição (fundada no modelo masculino desde a Antiguidade) e a consequente aceitação da imperfeição humana e da finitude:

(34)

Portanto, as construções fálicas que alimentariam e ordenariam o imaginário narcisístico do sujeito seriam formas sistemáticas de evitação deste sujeito para o reconhecimento de sua finitude e imperfeição, modalidades, pois, de recusa de sua condição mortal. A sexualidade humana, agora concebida no último momento do discurso freudiano, passaria pelo reconhecimento da feminilidade originária, que relativizaria então toda e qualquer pretensão fálica de perfeição, fomentada, aliás, por ambos os sexos no imaginário (BIRMAN, 2016, p. 229).

Após um longo percurso psicanalítico, Freud abriu caminho para uma nova leitura das sexualidades femininas e masculina, agora ordenadas originalmente em torno da feminilidade, e não mais do operador fálico (retirado de sua primazia). Inovou ao dissociar mulher e feminilidade, que seria um devir, vivenciado pelos dois sexos. O impacto de seu discurso deve-se, além da ruptura com o falocentrismo, ao fato de reconhecer a imperfeição e a finitude do ser humano – sua marca de mortalidade. Assim, da feminilidade e da consequente assunção de sua incompletude e limitação, principiariam sujeitos fragmentados, como Birman reflete:

Nessa perspectiva, a ordenação fálica da sexualidade humana seria então uma defesa crucial contra o território originário da feminilidade, a contrapartida do orgulho humano de se articular e se apresentar como dominador arrogante de seu despedaçamento latente e iminente. (...)

O discurso freudiano sobre feminilidade estaria, enfim, nessa derivação teórica de alguma maneira, na sua ordenação conceitual sempre recomeçada da fragmentação e do despedaçamento tanto psíquico, quanto corpóreo, ramificações eloquentes da condição originária da feminilidade. (BIRMAN, 2016, p. 233-234).

Nesse sentido, a partir da angústia latente do sujeito perante a finitude, Joel Birman, em Cartografias do feminino, disserta sobre a feminilidade e o desamparo, colocando-os como ponto de chegada do discurso freudiano no que se refere à sexualidade.

1.5 Feminilidade e desamparo

Como vimos, em seus estudos finais, Freud buscou superar em seu discurso da sexualidade o paradigma fálico, colocando-o como uma ausência, e não mais como sua origem. Ao deparar-se com a feminilidade, o sujeito a repudiaria com horror, pois estaria de frente com a certeza de sua finitude, imperfeição e incompletude. Essa experiência psíquica

(35)

atingiria igualmente homens e mulheres, segundo ele. Sua existência insuficiente lhe traria uma enorme angústia – uma sensação de desamparo, como Birman explica:

Quero dizer com isso que a feminilidade condensa tragicamente na sua figura a problemática da sexualidade na psicanálise, antes de mais nada. Além disso, indico que a feminilidade é a forma crucial de ser do sujeito, pois sem a ancoragem nas miragens da completude fálica e da onipotência narcísica, a fragilidade e a incompletude humanas são as formas primordiais de ser do sujeito. Justamente por isso que o sujeito seria desejante. (…) De qualquer forma, o erotismo humano se funda no desamparo do sujeito e da feminilidade. Em decorrência disso tudo, devemos reconhecer que somos desamparados por vocação, pois é o nosso desamparo que nos remete permanentemente para o erotismo, num movimento infinitamente marcado pela circularidade. (BIRMAN, 1999, p. 54).

Dessa forma, contra o desamparo, o sujeito deveria aceitar que é desamparado e buscar tentativas de lidar com o indizível, o incalculável, já que ele “não pode dominar inteiramente o curso das coisas, do mundo e do outro pela postura arrogante do eu.” (BIRMAN, 1999, p. 13). Em face ao horror do rochedo da castração e da feminilidade, o ser humano assumiria diferentes posturas, com possibilidades de reinvenção e criação.

Assim, o discurso freudiano que se iniciou no final século XIX, com investigações sobre a histeria e sexualidade feminina, desencadeou uma interrogação sobre a feminilidade e seus caminhos possíveis. Birman tece:

Com efeito, a condição originária e inultrapassável do sujeito é a de estar desamparado em face do seu corpo e do seu mundo, não podendo contar pois com defesas seguras diante do perigo e da dor. Adviria daí o trauma e a angústia, reveladores desse desamparo originário.

A feminilidade e o desamparo são as duas faces da mesma moeda, pois, enquanto a primeira se enuncia na linguagem do erotismo, o segundo se formula na linguagem ética. A feminilidade é a revelação do que existe de erógeno no desamparo, a sua face positiva e criativa, isto é, o que este possibilita ao sujeito nos termos de sua possibilidade de se reinventar permanentemente. (BIRMAN, 1999, p. 52).

A feminilidade e o desamparo, que estariam no originário no sujeito, poderiam apresentar faces positivas e negativas. A primeira estaria ligada à criação de novos destinos para o sujeito, que pode sempre reinventar-se. Já a segunda se referiria “ao masoquismo, a inexistência erótica e a dor mortífera” (BIRMAN, 1999, p. 52). Ao mesmo tempo que o indivíduo poderia encontrar no desamparo meios de sublimar, também poderia emaranhar-se

Referências

Documentos relacionados

Com base no trabalho desenvolvido, o Laboratório Antidoping do Jockey Club Brasileiro (LAD/JCB) passou a ter acesso a um método validado para detecção da substância cafeína, à

Podem treinar tropas (fornecidas pelo cliente) ou levá-las para combate. Geralmente, organizam-se de forma ad-hoc, que respondem a solicitações de Estados; 2)

A placa EXPRECIUM-II possui duas entradas de linhas telefônicas, uma entrada para uma bateria externa de 12 Volt DC e uma saída paralela para uma impressora escrava da placa, para

Principais fontes de financiamento disponíveis: Autofinanciamento: (corresponde aos fundos Principais fontes de financiamento disponíveis: Autofinanciamento: (corresponde aos

5 “A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial” (KELSEN, Teoria pura do direito, p..

Este capítulo tem uma abordagem mais prática, serão descritos alguns pontos necessários à instalação dos componentes vistos em teoria, ou seja, neste ponto

Após a colheita, normalmente é necessário aguar- dar alguns dias, cerca de 10 a 15 dias dependendo da cultivar e das condições meteorológicas, para que a pele dos tubérculos continue

Para preparar a pimenta branca, as espigas são colhidas quando os frutos apresentam a coloração amarelada ou vermelha. As espigas são colocadas em sacos de plástico trançado sem