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CAPÍTULO 3. DESAMPARO – UMA RESPOSTA

3.2 O outro

Vimos no capítulo 2, que o termo desamparo (hilflösigkeit) significa “estar sem ajuda”. Segundo Freud, essa condição faz parte da experiência humana e surge já no recém- nascido, quando, devido à falta de capacidade biológica, ele precisa da proteção do outro para ter suas condições básicas de alimentação, saúde e higiene supridas, e assim, sobreviver ao mundo exterior. Para Freud, o aparelho psíquico inclui necessariamente o outro através das experiências de satisfação e dor:

O organismo humano, nos seus estágios precoces, é incapaz de provocar esta ação específica que só pode ser realizada com ajuda exterior e no momento em que a atuação de uma pessoa atenta se volta para o estado da criança. Esta última a alertou a partir da descarga que se produziu sobre a via da alteração interna (por exemplo, através do grito de uma criança). A via de

descarga adquire assim uma função secundária de extrema importância: aquela de compreensão mútua. O desamparo originário do ser humano torna- se assim a fonte primordial de todos os motivos morais (FREUD, [1895] 1994, v.1, p. 362-363).

O outro se faz presente desde os estágios mais precoces do indivíduo até sua vida adulta. Ele está diretamente ligado ao desamparo do indivíduo, já que ele fornece – ou não – a satisfação para os seus anseios. Márcia Arán disserta sobre a experiência de satisfação do ser humano:

Se concebermos então que no coração do eu existe o outro, o qual possibilita a experiência de satisfação e a transforma num estado de desejo, o desamparo originário estaria justamente no fato de que se é o outro que proporciona o objeto que satisfaz a pulsão, ele pode também não o proporcionar. (ARÁN, 2002, p. 129)

Sendo assim, o desamparo revela-se na medida em que o sujeito não tem seu desejo em relação ao outro atendido, quando ele sente-se sem ajuda, sem apoio e seu anseio não é satisfeito. A feminilidade traz com ela justamente essa sensação de impotência perante o outro. A angústia de não ser atendido pelo outro que viabiliza o reconhecimento da incompletude pelo sujeito.

Silvia Alexim Nunes em seu artigo O feminino e seus destinos, reflete sobre como a noção de feminilidade pode ajudar a compreender o espeço das novas formas sublimatórias:

Ao tratar a feminilidade como experiência constitutiva do sujeito, Freud deu ao feminino uma positividade que se encontrava minimizada na tradição ocidental moderna e em suas próprias elaborações. O feminino não é mais o outro do masculino, uma falta, um “a menos”, e sim uma força produtiva que pode ensejar diferentes caminhos e infinitas possibilidades sublimatórias para os indivíduos. Sabe-se que as diferenças têm sido pouco toleradas no império do masculino e do falicismo. Diante dessa constatação, a noção de feminilidade pode ajudar tanto a compreender as formas contemporâneas de subjetivação quanto a criar espaços para a diversidade, a alteridade, e a singularidade, tarefa da qual nós analistas não devemos nos furtar. (NUNES, 2002, p. 56-57)

A sublimação requer, necessariamente, uma relação de alteridade, na qual haverá um outro a quem o sujeito endereçará sua criação, e com quem ela será compartilhada. A pessoa que produz endereça sua criação a alguém (mesmo que anônima). Ela exige do sujeito, um reconhecimento e um enfrentamento com o desamparo (e com sua finitude, errância e incompletude) e, ao mesmo tempo, é necessário um reconhecimento e uma abertura ao outro.

O sofrimento é uma experiência alteritária, “o outro está sempre presente para o sujeito sofrente, a quem se dirige com seu apelo”, afirma Birman (2012, p. 141). A alteridade, assim, registra a interlocução no cerne da experiência do desamparo. Se o sujeito não possui um outro a quem endereçar seu desejo, ele se entrega ao desolamento, não conseguindo criar experiências de subjetivação.

Nesse sentido, analisando a sublimação e a alteridade no romance Desamparo, observamos que Jacinta e Clarisse buscam no outro o alicerce para suas vidas. Elas endereçam a uma outra pessoa toda a fonte de suas angústias, anseios e tristezas. Depositam, no amor e na parceria com o outro, suas esperanças em relação ao presente e ao futuro. Ambas procuram, no próximo, a ajuda para preencherem suas expectativas, entretanto, as duas personagens encontram caminhos distintos nessa jornada.

Vamos começar por Jacinta. Como vimos no capítulo anterior, Jacinta é, ao longo se sua vida, rejeitada pela mãe, desprezada pelos pais e pelos avós na infância e adolescência, e na vida adulta, abandonada por seus companheiros. Também sente-se ignorada por seus filhos que não a procuram. Encontramos, ao longo de toda a narrativa, trechos em que ela demonstra toda a angústia de não ser amorosamente correspondida.

Logo no capítulo dois, em que Jacinta está caída, ela devaneia: “Ele virá antes que o sol me mate. Eu sei que ele virá. Pois se me telefonou falando que viria. Falou: ‘Minha mãe, essa semana eu vou sem falta visitar a senhora’” (PEDROSA, 2016, p. 15). E mais a frente, no mesmo capítulo, diz: “Rafael, não me deixe mais aqui sozinha. Eu sei que você vem me salvar, meu filho (IBIDEM, 2016, p. 19).

Observamos nessa passagem como a personagem-narradora endereça ao filho seu clamor por ajuda. Como o recém-nascido que se sente desamparado, conforme vimos em Freud, Jacinta, já aos oitenta e nove anos, também se encontra em um estado de absoluta impotência. Na passagem, encontramos a senhora já acamada no leito de um hospital, porém, o clamor por ajuda é tanto físico, quanto simbólico. Ela preciso de ajuda, tanto para se curar, quanto para sobreviver.

Ainda no hospital, fora de si, também clama por Ramiro, seu segundo companheiro: “e se você viesse me buscar, Ramiro? (…) Vem me buscar Ramiro, leve-me para o céu” (PEDROSA, 2016, p. 20). Ela precisa de socorro para levantar-se, mas também precisa de ajuda para continuar vivendo. O outro é essencial durante toda a sua existência.

Uma passagem interessante é a que Jacinta transfere para Raul a expectativa do auxílio e do amor do outro: “Foge-me o ar e ninguém vem. Se eu morrer, Raul fica sozinho. Eu sei que sou um fardo na vida dele, mas sou também o único amor que ele tem” (PEDROSA, 2016, p. 31). Na visão de Jacinta, devido a sua experiência dolorosa de mundo, somente a partir de uma estreita relação com o outro, a solidão é vencida. Raul, para ela, só tem o amor materno, e ficará desamparado quando ela morrer. Já Raul fala sobre a carência afetiva de sua mãe:

Era muito beijoqueira, a minha mãe. Adorava beijos, também. Muitas vezes pensei como aguentaria ela, que tanto amou, viver sem os beijos de um homem quase metade da sua vida. Tinha cinquenta e oito anos quando veio para Portugal, não era assim tão velha. Mas que sei eu dos amores de dona Jacinta, na verdade? Apenas sei que veio para Portugal atrás do amor de mãe que nunca teve. E talvez quisesse esquecer o desamor dos homens que teve (PEDROSA, 2016, p. 181).

Essa necessidade do outro surge também quando, ao mudar-se do Brasil para Portugal, busca no colo da mãe Margarida, e no seio de sua “nova” pátria, um conforto para suas dores. Assim como Jacinta procura na mãe o consolo que sempre lhe faltou, ela busca, na terra lusitana, a promessa de uma identidade. Entretanto, lá, ainda se queixa e sofre com a falta de seus filhos e de Ramiro. A mudança de ares não apazígua suas angústias, pelo contrário, com a velhice, elas se intensificam.

Sendo assim, a narrativa mostra que Jacinta deixa-se levar pelas pulsões de morte durante boa parte de sua vida, como ao tentar cometer suicídio por diversas vezes: “Tomava comprimidos, ia parar no hospital, as crianças em pânico. Mãe não tem direito de se matar, eu sei. Mas eu também não tive mãe, ninguém me deu lições de maternidade” (PEDROSA, 2016, p.64). Arrastada pelas pulsões de morte, a personagem não consegue ultrapassar o desamparo, pelo contrário, nele, afunda-se. A depressão surge em diversos momentos, principalmente quando o outro não atende suas expectativas, despertando o desamparo.

Outra personagem que busca no outro uma fonte de amor e conforto é Clarisse. A personagem-narradora encontra em Raul motivos para viver e transformar sua vida. Clarisse, por diversos momentos do romance, afirma que somente através do amor é capaz de encontrar a alegria: “Se a ingenuidade me escangalhou o olhar e o coração, devo-lhe também sucessivas reparações; os seus dedos invisíveis impediram-me de cegar, e sobretudo, de perder o gosto pelo amor, sem o qual a alegria se torna impossível” (PEDROSA, 2016, p. 197). Também

revela: “Fiz dele uma espécie de horizonte, para não desesperar com os enjoos da viagem (…) A verdade é que não desisto porque não saberia como. Cada um é como é, e eu, se deixasse de sonhar, morreria de melancolia.” (PEDROSA, 2016, p. 149). Clarisse deposita em Raul toda a sua esperança em dias melhores.

Raul, por sua vez, também encontra na namorada o suporte que tanto precisa. Ele desabafa: “Não sei o que faria sem ela; provavelmente ficaria no meu buraco e não faria nada. Deixaria de pintar. Desistiria. Chega um tempo em que cansamos de resistir” (PEDROSA, 2016, p. 245). Raul sofre após a morte de Jacinta e Clarisse surge em um momento em que sua vida encontra-se revirada. Sem um trabalho que lhe desse dinheiro suficiente para pagar com os custos para a internação e para o enterro, Raul está desiludido com o rumo que sua vida tomou, seu fracasso como arquiteto e seus relacionamentos malsucedidos. Clarisse torna- se seu ombro amigo, sua companheira, ou como ele diz, seu anjo protetor: “A milhares de quilómetros, Clarisse continua sendo o meu anjo protetor: redigiu comigo a carta para o jornal de Termas do Rei (IBIDEM, p. 245). Raul acredita no amor, e na parceria com o outro, como sua redenção:

Sei que a autodepreciação só agrava os meus problemas e que ninguém acredita no amor de alguém que se julga indigno de ser amado. Penso que a minha amada ainda verá a minha exposição, e sinto-me orgulhoso. Não voltarei a deixá-la partir. Clarisse dispara o ritmo do meu coração; como se com ela eu fosse um Don Giovanni que obteve perdão, que volta do inferno, redimido. O amor é isso, redenção (PEDROSA, 2016, p. 285).

Raul expõe sobre a entrega incondicional de um ao outro na seguinte passagem:

A verdade é que eu amo Clarisse e não quero perdê-la. Entreguei-me a essa mulher. Domino-a, com o consentimento dela; nunca uma mulher se me entregara assim. Sinto que comigo ela é uma mulher inteira e que sou para ela algo que nunca encontrara. Com todas as outras sentiam-me um menino, com ela sinto-me um homem. Amante, pai, tudo – menos filho; aliás corto logo a conversa quando, por uma falta banal, ela me chama atenção. Clarisse ri e diz que eu sofro de excesso de mimo materno, por isso não aguento uma repreensão. Admito; mas todo o meu histórico se torna lateral diante do nosso encontro. Tudo o que vivi foi um preâmbulo da minha história, que Clarisse fez nascer. Nunca tive um amor adulto; esta nova sensação é extraordinária. Suponho que é tal “cumplicidade” que as pesquisas da internet dizem que a maioria dos homens procura numa mulher. É mais do que isso: amor integral (PEDROSA, 2016, p. 213-214).

Raul afirma: “Domino-a, com o consentimento dela.”, assim como também deixa claro que o mesmo ocorreu com ele. A necessidade do outro em suas vidas é vital. Através do outro, eles encontram uma saída (mesmo que temporária) para desamparo.

Por fim, cabe tecer alguns comentários sobre a personagem Vanessa que, assim como Jacinta, sempre desejou encontrar nos companheiros um alento para sua solidão. Mesmo suportando relações abusivas, em uma atitude masoquista, Vanessa se ilude ao depositar, no outro, sua esperança. Acredita que a violência doméstica é uma forma de ter o amor a atenção dos companheiros.

Freud reflete sobre o desejo do amor do outro como uma forma intensa de prazer:

Uma atitude psíquica desse tipo chega de modo bastante natural a todos nós; uma das formas através da qual o amor se manifesta – o amor sexual – nos proporcionou nossa mais intensa experiência de uma transbordante sensação de prazer, fornecendo-nos assim um modelo para nossa busca da felicidade. Há, porventura, algo mais natural do que persistirmos na busca da felicidade do modo como a encontramos pela primeira vez? O lado fraco dessa técnica de viver é de fácil percepção, pois, do contrário, nenhum ser humano pensaria em abandonar esse caminho da felicidade por qualquer outro (FREUD, [1930] 1996, p. 54)

Jacinta e Vanessa não encontram no outro um apoio, diferentemente do casal Raul e Clarisse que, através da parceria, consegue sair de uma posição de paralisia. Quando o sujeito está atravessado pela experiência da dor e não possui abertura para um outro a quem dirigir suas angústias, ele “fica entregue ao desolamento, não tendo qualquer possibilidade de realizar uma subjetivação possível para aquela experiência.” (BIRMAN, 2012, p. 144).

Jacinta entrega-se à dor em muitos momentos de sua vida. Acolhe um comportamento masoquista, ingere medicamentos para tentar pôr fim à sua vida, enfim, permite que o sofrimento e as pulsões de morte tomem conta de seu ser. Assim também ocorre com Vanessa que com atitudes semelhantes à de Jacinta, deixa-se levar pela melancolia. Temporariamente, consegue a sublimação através da dança, antes de ser eliminada pelo outro com quem convivia.

Por outro lado, Clarisse e Raul, que também por diversos momentos atravessaram períodos de tristeza, tormento e solidão, encontram um no outro uma forma de atenuar o sofrimento. “O sofrimento é uma experiência eminentemente alteritária, afirma Birman (2012, p.141). No casal, o apelo ao outro se fez presente, e correspondido, transformou a dor e o

desprazer em uma experiência de subjetivação. Eles, juntos, criam, constroem, ultrapassam a experiência do desamparo.

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