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Sexualidade feminina – destinos possíveis

CAPÍTULO 1. O QUE É DESAMPARO?

1.4 Sexualidade feminina – destinos possíveis

Freud escreveu, em 1931, a Sexualidade Feminina, no qual retomou o complexo de Castração e de Édipo. Ele afirmou que o desenvolvimento da sexualidade na menina seria mais complexo do que no sexo masculino, pois ela teria que abandonar o clitóris – como órgão de gozo (e até então seu principal órgão sexual) - pelo prazer vaginal. Também analisou a transferência de seu objeto original: a mãe pelo pai. Declarou que esses dois fatores ainda não eram claros para ele.

No artigo, Freud nos revelou três caminhos possíveis para a menina, após a descoberta e a aceitação de que seria castrada (ela reconheceria que a castração e a sua consequente inferioridade perante o homem, porém rebelar-se-ia contra isso). O primeiro seria a repulsa à sexualidade. Ela, inconformada com a ausência do pênis, rejeitaria a atividade fálica, o que a conduziria à inibição de toda a sua vida sexual. O segundo caminho (a fantasia de conseguir um falo e ser um homem) a levaria ao complexo de masculinidade, podendo em algum momento tornar-se homossexual. Por fim, o terceiro caminho a levaria à “atitude feminina normal final”, à feminilidade definitiva, através da qual, pelas sendas da maternidade (troca do gozo clitoriano pelo vaginal), substituiria o desejo inicial de possuir um falo pela ânsia de gerar um filho. Birman diz: “Pela maternidade a perfeição seria atingida como tal, por ter assim a mulher o falo pela mediação da figura da criança, sendo esta, pois, a solução normal para o discurso freudiano” (BIRMAN, 2016, p. 210). A masculinidade simbolizaria o originário, a perfeição (concepção encontrada na Antiguidade, como vimos) e a maternidade representariam a subjetivação esperada da mulher, o percurso normal a ser seguido para sua completude.

Sobre o momento em que esses eventos ocorrem, Freud explica: “Não é fácil determinar aqui o momento exato ou o curso típico dos eventos. Mesmo o momento em que a descoberta da castração é efetuada varia, e uma série de outros fatores parece ser inconstante ou depender do acaso” (FREUD, [1931] 1996, v.21, p. 142). Ou seja, as interferências que a menina sofreu durante o processo ou após seriam cruciais em seu desenvolvimento como mulher.

Em Feminilidade, último ensaio que Freud escreveu particularmente sobre o assunto, em 1932, ele declarou: “Os senhores, agora, já estão preparados para saber que também a psicologia é incapaz de solucionar o enigma da feminilidade” (FREUD, [1932] 1996, v.22, p. 77). Disse ainda que a psicanálise não objetivaria descrever o que é a mulher, mas sim, questionar como o ser da mulher seria formado. Freud, mais uma vez, retomou o complexo de Édipo, analisando a sexualidade infantil para tentar entender as bases enigmáticas ou obscuras femininas. Revelou que a poesia e a arte poderiam decifrar com mais sucesso a figura da mulher do que a psicanálise e a ciência.

Freud retomou as ideias do complexo de castração e a inveja do pênis, afirmando que “esta deixará marcas indeléveis em seu desenvolvimento e na formação de seu caráter, não sendo superada, sequer nos casos mais favoráveis, sem um extremo dispêndio de energia

psíquica (Ibidem, p. 84), assim como resgatou as três linhas de desenvolvimento possíveis para a menina após a aceitação da castração.

Freud voltou atrás e buscou solucionar a falha em seu discurso de que a mulher estaria impreterivelmente associada à passividade e o homem à atividade, como era comum supor desde a época greco-romana: “A distinção não é uma distinção psicológica; quando dizem ‘masculino’, os senhores geralmente querem significar ‘ativo’, e quando dizem ‘feminino’, geralmente querem dizer ‘passivo’” (FREUD, [1932] 1996, v.22, p.76). Freud, durante a conferência, afirmou que as dicotomias (mulher/passiva versus homem/ativo) eram errôneas:

Bem podem duvidar se auferiram daí alguma vantagem real, quando refletem que, em algumas classes de animais, as fêmeas são mais fortes e mais agressivas e o macho é ativo unicamente no ato da união sexual. Assim ocorre, por exemplo, nas aranhas. Mesmo as funções de criar e de cuidar do filhote, que temos na conta de papel feminino par excellence, não estão invariavelmente ligadas ao sexo feminino, nos animais. Em espécies bem superiores, verificamos que ambos os sexos dividem entre si o trabalho de cuidar do filhote, ou que o próprio macho, sozinho, dedica-se a essa tarefa. Até mesmo na esfera da vida sexual humana, os senhores logo verão como é inadequado fazer o comportamento masculino coincidir com a atividade e o feminino, com a passividade (FREUD, [1932] 1996, v.22, p.76-77).

Freud prosseguiu nos dando o exemplo da amamentação, em que a mãe seria ativa para com o seu filho no ato de dar-lhe o leite. Por fim, afirmou que essa noção equivocada estaria associada a convenções e fatores culturais, que induziriam as mulheres a uma condição passiva. Revelou que devido à supressão da agressividade das mulheres, elas desenvolveriam impulsos masoquistas, de submissão ao outro, considerados “verdadeiramente feminino”.

Neste mesmo ensaio, Freud buscou desassociar os conceitos de feminino e feminilidade. O primeiro estaria relacionado ao complexo de castração e ao paradigma fálico masculino, ao passo que o segundo termo já estaria na ordem do erotismo, podendo ser encontrado não só em mulheres, mas também em homens. Para Freud, o conceito da feminilidade, ainda misterioso e de difícil compreensão, encontrava-se inacabado.

Concluindo seus pensamentos, Freud escreveu em 1937, Análise terminável e interminável, no qual falou, de forma pessimista, sobre o estudo da técnica e a etapa do término do tratamento psicanalítico, que muitas vezes ficava incompleto. O que nos interessa, no entanto, é a retomada da ideia de feminilidade e o retorno ao tema recorrente da aceitação da castração: na mulher o desejo do pênis e no homem o conflito contra uma atitude passiva

ou feminina. O “repúdio da feminilidade” seria uma conduta que surgiria com o complexo de castração presente em ambos os sexos, porém, em posições distintas. Sobre essa renúncia, Freud disserta:

Nos homens, o esforço por ser masculino é completamente egossintônico desde o início; a atitude passiva, de uma vez que pressupõe uma aceitação da castração, é energicamente reprimida e amiúde sua presença só é indicada por supercompensações excessivas. Nas mulheres, também, o esforço por ser masculino é egossintônico em determinado período – a saber, na fase fálica, antes que o desenvolvimento para a feminilidade se tenha estabelecido. Depois, porém, ele sucumbe ao momentoso processo de repressão cujo desfecho, como tão frequentemente foi demonstrado, determina a sorte da feminilidade de uma mulher (FREUD, [1937] 1996, v.23, p. 163).

O conceito de feminilidade desenvolvido por Freud foi visto por muitos estudiosos como negativo, já que estaria relacionado ao complexo de castração, ou seja, seria uma subjetividade gerada pela figura referencial do falo (este sendo o motivador do erotismo). Entretanto, por outro lado, o discurso de Freud evidenciou que haveria outro registro psíquico na concepção da sexualidade. Essa seria a novidade do discurso freudiano – a feminilidade como originária. Joel Birman discorre:

O conceito foi formulado por Freud de forma negativa, é verdade, na medida em que a feminilidade seria a fronteira do denominado “rochedo da castração”, mas ela revelaria também o originário do psiquismo, algo anterior à ordenação da subjetividade fundada no falo, como já se indicou acima. Contudo, (…) suponho que seja possível encontrar naquele outro fio interpretativo possível da concepção de sexualidade presente no discurso freudiano. Dessa maneira, a feminilidade nos permitiria uma outra leitura sobre o estatuto do feminino em psicanálise. (BIRMAN, 2016, p. 223)

Sendo assim, outro ponto de partida surgiu para a decodificação do sujeito. Birman diz que “feminilidade estaria na origem do psiquismo. Esta seria agora o originário e não mais o psiquismo centrado no falo” (Ibidem, p. 226). Nessa nova inscrição da feminilidade, a sexualidade (feminina e masculina) não seria regulada pelo operador fálico – que seria uma falta. A feminilidade estaria agora na origem, na fundação da subjetividade, enquanto o referencial fálico se apresentaria como uma derivação. Haveria, portanto, uma recusa à perfeição (fundada no modelo masculino desde a Antiguidade) e a consequente aceitação da imperfeição humana e da finitude:

Portanto, as construções fálicas que alimentariam e ordenariam o imaginário narcisístico do sujeito seriam formas sistemáticas de evitação deste sujeito para o reconhecimento de sua finitude e imperfeição, modalidades, pois, de recusa de sua condição mortal. A sexualidade humana, agora concebida no último momento do discurso freudiano, passaria pelo reconhecimento da feminilidade originária, que relativizaria então toda e qualquer pretensão fálica de perfeição, fomentada, aliás, por ambos os sexos no imaginário (BIRMAN, 2016, p. 229).

Após um longo percurso psicanalítico, Freud abriu caminho para uma nova leitura das sexualidades femininas e masculina, agora ordenadas originalmente em torno da feminilidade, e não mais do operador fálico (retirado de sua primazia). Inovou ao dissociar mulher e feminilidade, que seria um devir, vivenciado pelos dois sexos. O impacto de seu discurso deve-se, além da ruptura com o falocentrismo, ao fato de reconhecer a imperfeição e a finitude do ser humano – sua marca de mortalidade. Assim, da feminilidade e da consequente assunção de sua incompletude e limitação, principiariam sujeitos fragmentados, como Birman reflete:

Nessa perspectiva, a ordenação fálica da sexualidade humana seria então uma defesa crucial contra o território originário da feminilidade, a contrapartida do orgulho humano de se articular e se apresentar como dominador arrogante de seu despedaçamento latente e iminente. (...)

O discurso freudiano sobre feminilidade estaria, enfim, nessa derivação teórica de alguma maneira, na sua ordenação conceitual sempre recomeçada da fragmentação e do despedaçamento tanto psíquico, quanto corpóreo, ramificações eloquentes da condição originária da feminilidade. (BIRMAN, 2016, p. 233-234).

Nesse sentido, a partir da angústia latente do sujeito perante a finitude, Joel Birman, em Cartografias do feminino, disserta sobre a feminilidade e o desamparo, colocando-os como ponto de chegada do discurso freudiano no que se refere à sexualidade.

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