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CAPÍTULO 1. O QUE É DESAMPARO?

1.5 Feminilidade e desamparo

Como vimos, em seus estudos finais, Freud buscou superar em seu discurso da sexualidade o paradigma fálico, colocando-o como uma ausência, e não mais como sua origem. Ao deparar-se com a feminilidade, o sujeito a repudiaria com horror, pois estaria de frente com a certeza de sua finitude, imperfeição e incompletude. Essa experiência psíquica

atingiria igualmente homens e mulheres, segundo ele. Sua existência insuficiente lhe traria uma enorme angústia – uma sensação de desamparo, como Birman explica:

Quero dizer com isso que a feminilidade condensa tragicamente na sua figura a problemática da sexualidade na psicanálise, antes de mais nada. Além disso, indico que a feminilidade é a forma crucial de ser do sujeito, pois sem a ancoragem nas miragens da completude fálica e da onipotência narcísica, a fragilidade e a incompletude humanas são as formas primordiais de ser do sujeito. Justamente por isso que o sujeito seria desejante. (…) De qualquer forma, o erotismo humano se funda no desamparo do sujeito e da feminilidade. Em decorrência disso tudo, devemos reconhecer que somos desamparados por vocação, pois é o nosso desamparo que nos remete permanentemente para o erotismo, num movimento infinitamente marcado pela circularidade. (BIRMAN, 1999, p. 54).

Dessa forma, contra o desamparo, o sujeito deveria aceitar que é desamparado e buscar tentativas de lidar com o indizível, o incalculável, já que ele “não pode dominar inteiramente o curso das coisas, do mundo e do outro pela postura arrogante do eu.” (BIRMAN, 1999, p. 13). Em face ao horror do rochedo da castração e da feminilidade, o ser humano assumiria diferentes posturas, com possibilidades de reinvenção e criação.

Assim, o discurso freudiano que se iniciou no final século XIX, com investigações sobre a histeria e sexualidade feminina, desencadeou uma interrogação sobre a feminilidade e seus caminhos possíveis. Birman tece:

Com efeito, a condição originária e inultrapassável do sujeito é a de estar desamparado em face do seu corpo e do seu mundo, não podendo contar pois com defesas seguras diante do perigo e da dor. Adviria daí o trauma e a angústia, reveladores desse desamparo originário.

A feminilidade e o desamparo são as duas faces da mesma moeda, pois, enquanto a primeira se enuncia na linguagem do erotismo, o segundo se formula na linguagem ética. A feminilidade é a revelação do que existe de erógeno no desamparo, a sua face positiva e criativa, isto é, o que este possibilita ao sujeito nos termos de sua possibilidade de se reinventar permanentemente. (BIRMAN, 1999, p. 52).

A feminilidade e o desamparo, que estariam no originário no sujeito, poderiam apresentar faces positivas e negativas. A primeira estaria ligada à criação de novos destinos para o sujeito, que pode sempre reinventar-se. Já a segunda se referiria “ao masoquismo, a inexistência erótica e a dor mortífera” (BIRMAN, 1999, p. 52). Ao mesmo tempo que o indivíduo poderia encontrar no desamparo meios de sublimar, também poderia emaranhar-se

na dor do masoquismo para defender-se da angústia resultante da feminilidade. Apresentar-se- iam, assim, as pulsões de vida (Eros), que levariam o sujeito a diversos cenários de criação, e as de morte (Thanatos), pulsões sem representação. As duas apareceriam como impulsos que direcionam o comportamento do indivíduo, sempre em diferentes graus e antagonicamente, formando uma tensão.

Nesse sentido, a partir do circuito das pulsões, a passagem do sujeito pela feminilidade possibilitaria diferentes sendas para a sublimação. Birman coloca a histeria, origem da psicanálise, como uma das vias possíveis de encará-la: “A histerização, porém, é igualmente um modo de padecer da dor da feminilidade e, por isso mesmo, uma maneira de construir novas formas de sublimação” (BIRMAN, 1999, p. 216). O masoquismo também é uma modalidade de relação do sujeito para com o desamparo:

Para o sujeito, a passagem pelo masoquismo erógeno é sua maneira de se desligar da impostura fálica e de poder viver a relação consigo mesmo e com o outro em outras bases erógenas. É a feminilidade que se enuncia aqui. É para isso que a experiência psicanalítica conduz o sujeito (BIRMAN, 1999, p. 14).

O masoquismo erógeno originário (desejo presente em homens e mulheres), associado à aceitação da feminilidade, recoloca em cena o conceito de pulsão (já que o indivíduo precisa lidar constantemente com as intensidades e os excessos pulsionais). Para Birman, “a feminilidade seria, enfim, um outro nome para denominar o masoquismo erógeno, maneira do sujeito lidar com as intensidades e com as forças pulsionais, sem se valer do referencial fálico” (BIRMAN, 2016, p. 240).

Birman afirma que a pulsão foi definida originalmente como uma força sempre presente que, “pela exigência de trabalho que provoca, impõe-se ao psiquismo pela sua vinculação ao corporal” (BIRMAN, 1999, p.37). Seu conceito apareceu originalmente em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de Freud:

O fato da existência de necessidades sexuais no homem e no animal expressa-se na biologia pelo pressuposto de uma “pulsão sexual”. Segue-se isso a analogia com a pulsão de nutrição: a fome. Falta à linguagem vulgar (no caso de pulsão sexual) uma designação equivalente à palavra “fome”; a ciência vale-se, para isso, de “libido” (FREUD, [1905] 1996, p.82).

As intensidades das pulsões foram sublinhadas no discurso freudiano sobre a teoria psicanalítica da sexualidade – para ele, existiria em questão uma problemática do excesso pulsional e também uma economia das excitações. Elas estariam sempre presentes, como uma força constante no sujeito, não se esgotando jamais. A pulsão se apossaria do sujeito, revelando-se inquietante. Ele se sentiria incapaz de controlá-la; “Portanto, a pulsão é algo que afeta o sujeito, estando então no registro do afeto e da afetação. Enquanto tal, a pulsão obriga o sujeito a entrar em movimento pelo sobressalto inquietante que produz, funcionando, pois, pela lógica da paixão” (BIRMAN, 1999, p. 40). Assim, o sujeito, em face ao desamparo, seria induzido à intensidade das pulsões, como afirma Regina Neri, no ensaio O encontro entre a psicanálise e o feminino:

Como experiência radical de castração, a feminilidade evoca o desamparo do sujeito, afetado pela intensidade traumática da força da pulsão que depende do outro para tornar possível a inscrição de um circuito pulsional que o constituirá com marcas singulares de angústia, erotização e sublimação. (NERI, 2002, p. 22).

Neri disserta que “a feminilidade indica um erotismo não mais regulado pela lógica fálica, deixando à mostra um eixo de subjetivação, erotização e sublimação que inaugura novas formas de inscrição do sujeito na cultura como singularidade e diferença” (NERI, 2002, p. 30). Nesse sentido, também Sílvia Alexim Nunes tece que “a experiência da feminilidade torna possíveis formas diferentes e singulares de subjetivação e inscrição na ordem do discurso, abrindo espaço para novas possibilidades de criação” (NUNES, 2002, p. 56). A sublimação seria, nesse sentido, uma forma de mecanismo do “eu” que levaria o sujeito, através das pulsões, a comportamentos sociais com valor positivo, como por exemplo, o boxe, a pintura, a dança e a escrita.

Sendo a sublimação um dos destinos da pulsão e uma forma de lidar com a angústia, ela deve se ocupar da imprevisibilidade que lhe é característica, através dos desacertos: “A pulsão dá ao homem as possibilidades da busca, do erro e da criação” afirma Vera Lúcia Dutra (2002, p.87). Assim, o caráter de errância e mobilidade tornam-se substanciais na travessia do desamparo. Segundo Birman, “seriam as intensidades que nos destinariam à errância no mundo”, já que não há critérios seguros na feminilidade (2016, p.237)

Indo contra a ideia de uma ordem simbólica universal masculina, o sujeito da feminilidade passaria a estar em permanente mobilidade pulsional buscando afirmar sua singularidade, em um movimento de sublimação, onde a pulsão de morte seria transformada em pulsão sexual. Dessa forma, vemos que o sujeito constituir-se-ia em relação à pulsão e às significações do outro, possibilitando uma dimensão alteritária, ou seja, não-autoritária. É para o outro que a pulsão se endereçaria e se constituiria como circuito, já que possibilitaria a ligação com o objeto de satisfação. Sobre a presença do outro como pressuposto da sublimação, Vera Lúcia Dutra, em O conceito de sublimação à luz de uma perspectiva da feminilidade, versa:

A sublimação envolve uma relação de alteridade, uma vez que implica um outro a quem a criação se endereçará para ser compartilhada e oferecida. (…) Para que a sublimação se realize como criação, é necessária uma mudança da posição ocupada pelo sujeito em relação ao objeto da pulsão que possibilite tanto uma abertura para o inassimilável existente no objeto quanto o reconhecimento de seu estatuto de alteridade. Essa mudança implica a libertação do sujeito com relação a ideia de controle e posse do objeto, assim como sua contrapartida, a submissão a ele. É o confronto com o desamparo que torna essa abertura possível, ao promover a perda da onipotência narcísica do desejo, e será por meio desse confronto que o sentimento de solidão se constituirá como reconhecimento do valor do outro (DUTRA, 2002, p. 105).

A consciência de finitude do sujeito com a aceitação da feminilidade, assim como de sua impotência e imperfeição, portanto, move o sujeito à angústia e à pulsão de morte (que coexiste com a pulsão de vida). A pulsão de morte pode levá-lo tanto ao desamparo quanto a novos horizontes de sublimação e criação. Logo, no momento em que admite seu afastamento do divino e do imortal, ele acolhe a passividade da condição humana original finita e imperfeita – ele aceita passar pela morte, o que o leva à múltiplas possibilidades de sublimação, e uma delas é a escrita.

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