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CAPÍTULO 2. DESAMPARO E ALTERIDADE

2.4 Os narradores de Desamparo

Veremos como Inês Pedrosa, a partir da escolha dos quatro narradores, constrói Desamparo. Por quê a escolha da autora por um determinado modo de contar? Qual é a perspectiva adotada pelo agente da narração? Que efeitos ela busca alcançar no leitor?

O papel do narrador vem variando conforme as transformações na literatura vão ocorrendo. Veremos com Gérard Genette como, através de determinados modos de contar, podemos analisar a narrativa contemporânea. Genette, em Discours du Récit (1972), identificou duas categorias - modo e voz – e sugeriu dentro de modo, um conceito de focalização. O modo refere-se aos pontos de vista e modalidades, regulando a quantidade de informação que o autor quer transmitir, através de determinado ponto de vista. Em Discours du Récit, Genette afirma:

É precisamente a esta capacidade, e às modalidades de seu exercício, que visa a nossa categoria de modo narrativo: a representação, ou mais exatamente a informação narrativa possui diferentes graus; o discurso pode fornecer ao leitor mais ou menos detalhes, e de modo mais ou menos direto, e parecer assim (…) se colocar a maior ou menor distância daquilo que conta; ele pode também escolher em regular a informação que fornece, não mais através desta espécie de filtragem uniforme, mas segundo as capacidades de conhecimento de tal ou qual parte tomada da história (personagem ou grupo de personagens), de que ele adotará ou fingirá adotar

o que se nomeia correntemente a visão ou o ponto de vista, aparentando tomar em relação à história esta ou aquela perspectiva. Distância e

perspectiva, desta forma, denominadas e definidas, são as duas modalidades

essenciais desta regulação da informação narrativa que é o modo. (GENETTE, 1972, p. 183-184).

Em relação à distância, Genette identifica o discurso de acontecimentos e o discurso de palavras. No primeiro discurso, a presença do narrador é maior do que as informações apresentadas, no qual predomina a diegesis, ao passo que, no segundo, a informação contada vem diretamente do narrador, sem ou com pouca mediação dele, referindo-se à reprodução do discurso ou do pensamento dos personagens da história. As falas dos personagens podem ser de três formas: discurso citado (estilo direto), discurso transposto (estilo indireto) e discurso narrado (apenas o conteúdo e não as falas específicas).

Já no que se refere à perspectiva, Genette utiliza o termo focalização, considerada sob três aspectos. No primeiro, o narrador informa mais do que sabe os personagens (discurso não focalizado). No segundo, o narrador diz somente o que sabe o personagem (focalização interna), podendo ser fixa, variável ou múltipla. Por fim, no terceiro, o narrador informa menos do que sabe o personagem (focalização externa). Para Genette, as mudanças no ponto de vista ocorrem devido às mudanças de focalização.

Por fim, dentro da categoria voz, Genette abarca as relações existentes entre a instância narrativa e o objeto narrado. Nestas, estão incluídas as relações temporais (anterioridade, posterioridade e simultaneidade do narrador com aquilo que está narrando), as relações de subordinação (dois discursos em níveis diferentes) e também o narrador.

Segundo Genette, não se distingue a pessoa do narrador em primeira e terceira, e sim, a presença ou ausência dele dentro da narrativa. Existem, assim, alguns tipos de narradores: o homodiegético (o narrador presente dentro da história que conta); o heterodiegético (o narrador que está ausente ou conta a história de um nível superior); e o autodiegético (narrador conta sua própria história). O narrador será sempre, desta forma, hetero ou homodiegético (ausente ou presente na narrativa).

Em Desamparo, temos uma história contada por quatro narradores diferentes, como vimos – o narrador, Jacinta, Raul e Clarisse. Ao longo de trinta e cinco capítulos, eles vão se revezando e fornecendo diferentes pontos de vistas sobre a história de Jacinta e de suas próprias vidas. A alternância de vozes cria, desta forma, diferentes perspectivas sobre as histórias.

Um dos narradores, o primeiro que aparece no romance, é heterodiegético. Ele conta com uma visão do todo, narra através de um nível superior da história em que ele não aparece. No primeiro capítulo, intitulado “Vista panorâmica”, como o próprio título já dá pistas, ele fornece ao leitor informações sobre a mulher que cai no pátio de sua casa na Aldeia de Arrifes – Jacinta. O narrador, como se num plano elevado, superior, informa:

Há uma mulher caída, a uns oito quilômetros da pacífica animação de Lagar, num mísero pátio de uma das casas mais pobres da aldeia de Arrifes. Como o calor mantém os habitantes recolhidos, a vizinha não veio varrer o alpendre e não chamou por ela. Uma gatita malhada lambe-lhe o rosto, tentando despertá-la. São duas horas da tarde, e a carrinha do Centro de Dia só regressará pelas seis. O miado da gata tem por única resposta a queda de um limão gigante do limoeiro que fica ao canto do pátio, antes das escadas que dão para o telheiro do tanque de lavar roupa. A mulher caiu perto da porta, longe das duas árvores do quintal, sobre a laje ardente, inundada de sol (PEDROSA, 2016, p. 14).

Este narrador sabe o que se passou na cena e busca dar ao leitor as informações. Ele não participa como personagem do universo narrativo. Apenas um narrador do romance conta com essa perspectiva heterodiegética. Os outros três – Jacinta, Raul e Clarisse – são narradores homodiegéticos, participando da narrativa e contando seus relatos através de seus próprios pontos de vista.

Os narradores homodiegéticos narram capítulos fragmentados, suas histórias são segmentos da realidade que está sendo narrada. A visão deles não é uma visão global, totalizante e onisciente, típica do narrador que está presente em todos lugares, que tudo sabe e tudo vê. No romance da Pedrosa, observamos uma fragmentação narrativa através desses narradores homodiegéticos, inseridos na história, e apenas possuidores de uma visão parcial, uma vez que não sabem de tudo. Quando narram, só conseguem enxergar a sua parcela de verdade, da realidade em que vivem. São discursos, por vezes, ambíguos.

Sabemos que interpretamos os fatos através dos nossos sentimentos, das nossas experiências de vida. Os capítulos contados pelos narradores homodiegéticos expressam as percepções dos próprios personagens diante de uma determinada realidade naquele momento. No segundo capítulo, “A queda de Jacinta”, a narradora homodiegética, deitada no leito de um hospital, fala: “Onde estou? Que quarto é este, cheio de camas e cortinas sem cor? Quem é esse rapagão me abraçando? Quem são estas velhas deitadas em camas, uma de cada lado?” (PEDROSA, 2016, p. 19). Já com a memória bastante corrompida, busca relembrar momentos

de sua vida, seus filhos, seu passado. Jacinta não sabe mais onde se encontra e sofre: “Quantos filhos tive? Alguém me diz? Não sei se me lembro. Tenho de me lembrar. Não vou ficar louca, não” (PEDROSA. 2016, p. 20).

Ao mesmo tempo, mistura em seu discurso, essa ausência de memória a fatos claros a sua vida no Brasil: “Eu tinha talento para a moda, ah se tinha. Cheguei a ter três costureiras trabalhando em casa, dia e noite, fazendo vestido de gala para as madames, tudo com pedras preciosas bordadas à mão. Fiz seis vestidos para o lendário baile do Theatro Municipal do Rio, no Carnaval de 1954.” (PEDROSA, 2016, p. 17).

Podemos ver um discurso confuso e ambíguo, que vai e retorna no tempo – um reflexo de sua mente aturdida naquele momento enfermo, de dor e esquecimento. Jacinta busca, a todo momento, puxar pela memória os fios de sua narrativa. Marcada pela sensação de abandono dos filhos, deixa transmitir relatos de angústia e tristeza, marcados pelo sentimento de desamparo que já analisamos através de Freud. O discurso de Jacinta traduz para o leitor o que se passa em sua mente: uma perturbação devido ao seu estado de saúde e sua idade avançada.

Já os capítulos narrados por Raul e Clarisse, também homodiegéticos, mostram discursos mais coerentes e claros, porém, assim como de Jacinta, profundamente marcados por memórias afetivas. Narradores que contam suas próprias histórias, e portanto, permeadas por sonhos, decepções, rancores. Raul afirma: “Nasci para perder: pessoas, poder, países – nada fica comigo.” (PEDROSA, 2016, p. 211). Seu discurso é sublinhado por culpa, incertezas, desesperança. Clarisse também mostra um discurso claro, em que conta seu passado e seu encontro com Raul, que lhe traz novamente a fé e confiança no amor: “Esta noite sinto-me de novo como uma miúda de dezasseis anos avistando a chegada da sua primeira paixão.” (PEDROSA, 2016, p. 150).

Desamparo termina com o narrador heterodiegético, da mesma forma que iniciou. Ele, ao longo do romance, conta episódios sobre a vida de Jacinta e sobre seus conhecidos de Arrifes, como Alice, Cesarina, Ema de Castro, Vanessa, Pedro Gama Lousada, Carla, Clarisse e Raul. Assim como o romance começa com o narrador heterodiegético, em “Vista Panorâmica”, ele também termina com ele, em um capítulo intitulado “Plano de Pormenor”. É como se o narrador, agora em um voo raso, baixo, observasse de perto a cena da queda de Alice, uma personagem do romance.

Desamparo começa com um plano aberto e termina com um plano fechado, como a seguir: “Sobre o aro de metal cor de laranja pousa uma abelha, zumbindo. O vidro da lente direita está rachado; uma mosca varejeira tateia a superfície transparente e irregular. A queda daquele objeto imprevisto movimenta a curiosidade dos insetos” (PEDROSA, 2016, p. 289). Como que em um zoom, o narrador tem uma visão muito aproximada da cena, dos insetos e do corpo que cai, diferente do primeiro capítulo, onde a cena é vista de longe: Manchas estáticas de verde, pomares interrompidos por casas brancas, amarelas, algumas – poucas – com pórticos de ferro lavrado, escadarias franqueadas por leões ou jarrões de pedra (PEDROSA, 2016, p. 11). Dois planos, duas perspectivas.

A narrativa que inicia com a história de Jacinta, ao longo dos capítulos vai ganhando corpo através das memórias dos outros narradores, que vão e voltam no tempo, como uma espiral. Pedrosa conduz a narrativa de forma que, através destas diferentes óticas e de uma desarticulação no tempo, possa haver múltiplas abordagens.

Assim como o enredo começa com a queda de Jacinta, termina com a queda de Alice. Duas quedas, dois planos diferentes. Entretanto, essa última queda, ao contrário da primeira, pode significar o recomeço, um “erguer-se novamente”. Inês Pedrosa afirma que seu romance reflete a esperança por dias melhores. Em entrevista ao Jornal Correio da Manhã, em 2015, reflete:

Mais do que os noticiários, os anúncios nos jornais que dão conta de insolvências, leilões e hastas públicas de casas é impressionante. É a história de desgraças de famílias inteiras. Comecei a juntar histórias dessas em 2012. Na altura estava a ler a Clarice Lispector e surgiu-me o título. “Desamparo”. Por causa dos versos: Agora eu conheço o grande susto de estar viva, tendo como único amparo exactamente o desamparo de estar viva.” O desamparo é um susto, mas também um choque e um desafio. Puxa-nos para nos salvarmos. Nada nos ampara e podemos cair, é certo. Mas também podemos dar a volta. Não se sabe. O que sabemos é que os modelos antigos já não nos servem. (PEDROSA, 2015).

Pedrosa, através de seus narradores e personagens, mostra ao leitor caminhos possíveis para enfrentar o desamparo: o da entrega e o da resistência (por um lado, o desamparo de Jacinta e Vanessa e, por outro, de Clarisse e Raul).

Como afirma Pedrosa, o desamparo é um desafio e cabe a nós decidirmos o rumo que queremos seguir. O outro e a criação são formas de escapar ao sentimento de angústia? Veremos no próximo capítulo as respostas para o desamparo do sujeito

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