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CAPÍTULO 2. DESAMPARO E ALTERIDADE

2.3 Mulheres em desamparo

Desamparo é o sétimo romance de Inês Pedrosa, publicado em 2016 no Brasil. O livro nos conta a saga de uma mulher – Jacinta Sousa – que, de frente com a morte, aos 89 anos, resgata a partir de suas recordações, ora tristes, ora felizes, seu passado conflituoso transcorrido entre o Brasil e Portugal. Pedrosa entrelaça distintas histórias de vida, e através dessas narrativas que se cruzam, reflete sobre o desamparo e a busca por um lugar na sociedade contemporânea.

Jacinta, a “mulher sem pátria”, aos três anos de idade é retirada dos braços de sua mãe e levada por seu pai de Portugal para o Brasil. Regressa à sua pátria depois de meio século para encontrar a mãe: “Larguei a modesta casinha alugada em Campos, onde vivia perto da

minha Rita, para ir viver na modesta casinha de minha mãe, em Arrifes, a aldeia onde nasci. Um autêntico regresso ao útero.” (PEDROSA, 2016, p. 68).

Assim também faz Raul, seu filho, em um movimento reverso. Um ano após a partida de Jacinta para além-mar, seu filho, brasileiro, arquiteto desempregado, a acompanha buscando recuperar um passado ainda desconhecido: “Portugal é agora o meu colo; a herança suave e formosa que a minha mãe me ofertará quando morrer” (PEDROSA, 2016, p. 52).

O romance inicia-se com a queda de Jacinta, a matriarca da família Sousa. Na pequena aldeia de Arrifes, em uma tarde de sol escaldante, às quatorze horas, uma senhora desmaia no pátio de sua casa. Longe da vista dos vizinhos, que descansam após o almoço, apenas uma gata malhada lambe a sua face, tentando despertá-la: “Há uma mulher caída, a uns oito quilômetros da pacífica animação de Lagar, num mísero pátio de uma das casas mais pobres da aldeia de Arrifes. (PEDROSA, 2016, p. 13). É levada para o hospital mais próximo e, em seu leito, entre delírios e devaneios à espera da morte, começa a rememorar acontecimentos transcorridos entre o Brasil e Portugal.

Jacinta sente-se desamparada. No momento de sua queda, chama por seu filho mais velho, que há anos a ignora: “Rafael, não me deixe mais aqui sozinha. Eu sei que você vem me salvar, meu filho. Você não telefonaria se não viesse, não é? Sinto o coração e os pulmões e o estômago e a pele mirrando debaixo desse sol cruel, não demore, por favor, meu filho...” (PEDROSA, 2016, p.19).

Em Portugal, ainda na primeira infância, é rejeitada pela mãe, assim como ao vir para o Brasil, cresce com um pai duro e ausente. No Rio de Janeiro, é criada pela mulher de seu avô, a galega dona Ánxela, que a maltrata, punindo-a rigorosamente. Jacinta cresce solitária, sem prazeres e permeada por uma sensação de abandono. Ela relembra a insensibilidade de seu pai ao dizer-lhe que fora rejeitada pela mãe logo após a partida para o Brasil:

O meu pai chamava-me de fraca porque eu vomitava com os balanços do navio que nos levava para o Brasil. Eu acordava a meio da noite chamando por minha mãe e ele me dizia que eu tinha mãe, que a minha preferia ficar num país miserável de gente inculta a vir comigo para uma terra rica e feliz. (PEDROSA, 2016, p. 21)

O desamparo é o sentimento que rege a vida de Jacinta. Desde criança, enxerga-se solitária e baseia sua vida no afeto do outro. Na presença da morte, no hospital, rememora seus desafetos, suas angústias, as traições de seus ex-maridos, a ausência de seus filhos, as

crises depressivas e as diversas tentativas de suicídio. Atormentada, por diversos momentos de sua vida, adoece psiquicamente. A personagem sofre com todos os sintomas que qualificava, até o século passado, uma mulher como histérica: adoecida psicologicamente, com surtos e internações.

Para se ver livre do ambiente sufocante em que vivia até a adolescência, casa-se com Álvaro: “Durante dez anos a existência decorreu com suavidade: uma vivenda ampla, com criados e criadas. Um Citroën preto, móveis em Jacarandá (…) Depois entrou em cena a comitiva das amantes e dos maus tratos, até a separação (PEDROSA, 2015, p. 123). Durante o casamento, Jacinta perde um filho de Álvaro, que nasce morto, e logo após é rejeitada por ele, sendo tratada como uma mulher incapaz de dar à luz. Apesar das tentativas de engravidar novamente, fracassa. O marido a humilha constantemente e o casamento chega ao fim.

O dever da maternidade e a feminilidade sempre foram considerados obrigações da mulher para com o seu cônjuge. Não ser capaz de dar à luz uma criança era um fato passível de repreensão. Michelle Perrot, em Minha história das mulheres, afirma:

Dependente sexualmente, está reduzida ao “dever conjugal” prescrito pelos confessores. E ao dever de maternidade, que completa sua feminilidade. Temida, vergonhosa, a esterilidade é sempre atribuída à mulher, esse vaso que recebe um sêmen que se supõe sempre fecundo. A esterilidade torna legítimo o ato de repudiá-las” (PERROT, 2019, p. 47).

Após algum tempo, Jacinta envolve-se com Ramiro, com quem tem três filhos: Rafael, Rita e Raul. O companheiro a trai constantemente, o que a deixa em profunda depressão. Por diversas vezes tenta o suicídio, como ela própria desabafa:

Ramiro me humilhava tanto, exibindo as amantes mesmo debaixo do meu nariz, chegando ao ponto de levar meus filhos pequenos para passear de carro com as queridas dele… Muita lavagem de estômago eu fiz, Já nem lembro quantas. Tomava comprimidos, ia parar no hospital, as crianças em pânico. Mãe não tem o direito de se matar, eu sei. Mas também não tive mãe, ninguém me deu lições de maternidade. Se isso nascesse com a gente, minha mãe não me teria rejeitado suas vezes (PEDROSA, 2016. p. 64)

Podemos notar, com esse trecho, o quanto a narradora sente-se solitária, desamparada pelos que a cercam. Ainda na primeira infância, é rejeitada por sua mãe. Em seu primeiro casamento, é abandonada após a perda do filho; na segunda relação, sofre com as traições de

seu companheiro. O desamparo de Jacinta claramente vem de uma relação não correspondida com o outro, resultante da ausência de ajuda (Hilflösigkeit).

Vimos, com Freud, que a base do sentimento do desamparo está na alteridade. Durante toda sua vida, desde a infância, o princípio de prazer é o principal objetivo do sujeito. Em busca da felicidade, ele entrega-se ao amor, dedicando o centro de sua vida a este afeto, porém, ao não ser correspondido, como imagina, é devorado por uma sensação de abandono. Em “O mal estar da civilização”, Freud reflete sobre como a não-correspondência do amor leva o indivíduo ao desamparo:

Evidentemente, estou falando da modalidade de vida que faz do amor o centro de tudo, que busca toda a satisfação em amar e ser amado. Uma atitude psíquica desse tipo chega de modo bastante natural a todos nós; uma das formas da qual o amor se manifesta – o amor sexual – nos proporcionou nossa mais intensa experiência de uma transbordante sensação de prazer, fornecendo-nos assim um modelo para nossa busca da felicidade de modo como a encontramos pela primeira vez? O lado fraco dessa técnica de viver é de fácil percepção, pois, do contrário, nenhum ser humano pensaria em abandonar esse caminho da felicidade por qualquer outro. É que nunca nos achamos tão indefesos contra o sofrimento como quando amamos, nunca tão desamparadamente infelizes como quando perdemos o nosso objeto amado ou o seu amor. Isso, porém, não liquida com a técnica de viver baseada no valor do amor como um meio de obter felicidade. Há muito mais a ser dito a respeito (FREUD, [1930] 1996, p. 54).

Jacinta, uma mulher que busca no amor do outro a sua fonte de prazer, sente-se constantemente infeliz. Idealiza em suas relações pessoais sua própria realização. Entretanto, ao perder o afeto do próximo (mãe, filho, marido) em quem colocou suas expectativas de felicidade, mergulha em um profundo desespero. A angústia de não ser correspondida em seus relacionamentos a faz sentir-se indefesa e vulnerável – desamparada.

Nesse contexto de vulnerabilidade e dependência de como o outro responderá aos anseios criados pelo sujeito, surge a angústia ligada à ausência do objeto. Freud afirma que o desamparo é “uma dor que não cessa, um acúmulo de necessidades que não obtém satisfação.” (BIRMAN, 2018, p. 53). Jacinta, em sua dor aflita, desespera-se e encontra nos remédios a solução para acalmar sua aflição quando os companheiros a humilham. Em Portugal, desespera-se ao não receber a atenção de seus filhos, Rafael e Rita, que não a procuram. O sofrimento se configura em uma experiência alteritária, já que o outro se faz inevitavelmente presente na cena; é a ele a quem o sujeito desamparado dirige seu grito de apelo. Jacinta só sente-se amparada ao ser correspondida por um outro.

O desamparo como experiência de dor e sofrimento está relacionada ao masoquismo, já que o apelo direcionado ao outro é uma forma de tormento e angústia. Birman reflete sobre a posição masoquista originária em O sujeito na contemporaneidade:

Entretanto, a experiência do sofrimento, tendo a interiorização como seu correlato, implica o desamparo do sujeito. É essa a condição de possibilidade da subjetivação e da simbolização, pois em ambas o apelo ao outro também se faz presente. Se o discurso freudiano atribuiu tanta importância ao masoquismo no fim do percurso teórico, ao ponto de esse ser uma forma básica de tormento que atravessaria as diferentes estruturas psicopatológicas (neurose, psicose e perversão), isso se deve ao fato de que o masoquismo seria a forma de subjetivação pela qual a dor é transformada em sofrimento. Vale dizer, seria pela posição masoquista originária, cadenciada pelo desamparo, que o sujeito faria um apelo ao outro para transformar a dor em sofrimento (BIRMAN, 2014, p. 143).

Observamos essa posição masoquista em Desamparo. Inês Pedrosa constrói uma personagem que busca, na entrega incondicional, se sentir amparada. Jacinta, no primeiro casamento, entrega-se a Álvaro como um meio de fuga da realidade em que vive. Com Ramiro, segundo companheiro, aceita humilhações constantes e, mesmo assim, procura sentir-se necessária, inclusive indo morar em sua nova casa quando ele já vive um outro casamento. Ela sujeita-se de forma submissa a seus companheiros, expondo-se à dor.

Em seu artigo, O Feminino e seus destinos, Silvia Alexia Nunes reflete acerca da posição masoquista da mulher. Segundo Nunes, “O masoquismo erógeno, ao qual Freud atribui um estatuto originário, caracteriza-se como um dos fundamentos da clínica centrada no registro econômico e na ideia de desamparo correlata a esse registro” (NUNES, 2002, p. 54). E prossegue:

Toda vez que o sujeito se encontra diante da força pulsional, a experiência de desamparo é reeditada, tornando imperiosa a necessidade de encontrar destinos possíveis, eróticos, sublimatórios para regular a força das pulsões. Para Freud, é a impossibilidade de o sujeito de aceitar sua condição de desamparo o motor da assunção de uma posição masoquista tanto para homens quanto para mulheres, ou seja, diante do desamparo, a busca desesperada de um outro a quem oferecer seu corpo e alma é uma das saídas possíveis para o sujeito. O sujeito, ao enganchar-se no outro, estabelece uma relação de servidão como forma de tentar evitar a dor do desamparo e afastar a angústia que lhe é correlata. (NUNES, 2002, p. 55).

Em O problema econômico do masoquismo, escrito em 1924 e publicado em Neurose, psicose e perversão, Freud reflete sobre o masoquismo para construir o conceito de

feminilidade. Para ele, o desejo masoquista ocorre em homens e mulheres. Freud deu ao masoquismo erógeno um estatuto originário, e através dele, tematizou sobre as duas dimensões da pulsão (vida e morte), que se contrapõem no indivíduo. Freud acentuou a dimensão alteritária da subjetividade e do desamparo, já que ele é dependente das significações de um outro. Como Nunes afirma no trecho acima, a não-aceitação do desamparo leva o sujeito a busca aflita pelo outro como uma saída possível para o seu sofrimento.

Jacinta vive à espera do amor, do reconhecimento do outro para se legitimar. A presença do outro torna-se essencial para se sentir completa e indispensável. Mesmo após encontrar uma posição na vida como modista de bailes cariocas e conseguir sobreviver financeiramente, sente-se abandonada. A solidão a atormenta. A personagem, na busca pelo amor do outro, é despossuída de seus predicativos. Como Safatle reflete:

Sujeitos confrontados com uma modalidade antipredicativa de reconhecimento e levados a se afetarem pela indiferença que circula no interior de zonas de indiscernibilidade são sujeitos continuamente despossuídos de suas determinações e, por isso, desamparados, abertos a um modo de afecção que não é simplesmente a expressão da presença do outro no interior do sistema consciente de interesses e vontades que determinariam a minha pessoa (SAFATLE, 2018, p. 25)

Sujeitando-se a todas as situações e despedaçada emocionalmente, Jacinta é atravessada pela melancolia. Vladimir Safatle afirma que quando o sujeito percebe que seu objeto de amor foi perdido, sente que nada é capaz de substituí-lo. O melancólico, a partir daí, mostra um total rebaixamento do sentimento de autoestima. Na melancolia, o próprio Eu se esvazia (o objeto perdido torna-se a perda do Eu). Freud, em Luto e melancolia, afirma:

A melancolia se caracteriza por um desânimo profundamente doloroso, uma suspensão do interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar inibição de toda atividade e um rebaixamento do sentimento de autoestima, que se expressa em autorecriminações e autoinsultos, chegando até a expectativa delirante de punição. (FREUD, 2010, p. 47)

Segundo Freud, com o abandono do objeto amado, o sujeito entra em um estado de melancolia e luto, onde prevalecerão sentimentos destrutivos como a queda da autoestima e exacerbada culpa. Encontramos esses sentimentos em outras personagens femininas de

Desamparo, mulheres que, assim como Jacinta, buscam no outro um consolo para sua existência melancólica.

Em Desamparo somos apresentados à Clarisse, outra narradora do romance. Ex- jornalista portuguesa, processada por difamação por envolver-se em uma denúncia de abuso sexual, vê-se perdida e desalentada ao ver sua carreira afundar. Após perder o processo na justiça, é obrigada a pagar uma grande soma de dinheiro. Sente falta de seu filho, um jovem rapaz que mora nos Estados Unidos com o pai e a madrasta: “A abnegada arrogância de pretender salvar uma criança de uma sequência de abusos levou-me a perder tudo o que eu tinha. Afinal, o que eu tinha era nada”. (PEDROSA, 2016, p. 150)

Clarisse possui um papel muito importante a partir do meio do romance, após a morte de Jacinta. Desamparada pelo desprezo pelo filho, que não a procura, e pela perda do emprego, sente-se deprimida após o processo que destruiu sua carreira. Encontra em Arrifes um trabalho como animadora em um centro social, buscando um novo modo de sobreviver à crise econômica que assolou Portugal entre 2010 e 2014. Clarisse conhece Raul no dia da morte de Jacinta, no momento em que ele está desesperado por não conseguir arcar com os custos do enterro da mãe. Encontra nele, o amor, e uma forma de saída para o seu desamparo.

Clarisse, assim como Jacinta, busca no amor do outro uma fonte de amparo. O primeiro capítulo que narra, intitulado “Clarisse e a paixão”, traz um relato sobre sua vida falha antes da chegada de Raul:

É verdade que nessa época eu flutuava à deriva; Vicente, o meu filho de dez anos, escolhera ir viver com o pai para os Estados Unidos; a minha melhor amiga tinha ido dormir com o fotógrafo que eu namorava; vinha do jornal e caía do sofá a ver televisão até adormecer, muitas vezes nem chegava a ir à cama: à escuridão de um quarto silencioso e ao conforto de uma cama larga onde navegava sozinha, em pânico, através de noites insones. Tinha trinta e cinco anos e sentia que a minha vida era um falhanço. As saudades do meu filho destruíam-me as entranhas; quase nem conseguia comer. (PEDROSA, 2016, p. 148)

Freud afirmou em O mal estar na civilização que existe uma modalidade de vida que “faz do amor o centro de tudo, que busca a satisfação em amar e ser amado”. A narradora deposita no amor toda a sua possibilidade de prazer, sua esperança. Clarisse afirma:

O romantismo tem sido tanto a minha perdição quanto a minha salvação, por isso não desisto de lhe prestar culto. Ora. A verdade é que não desisto porque

não saberia como. Cada um é como é, e eu, se deixasse de sonhar, morreria de melancolia (PEDROSA, 2016, p.149).

Ao encontrar Raul, direciona a ele sua tentativa de cura. Sente-se disposta e excitada novamente: “O meu coração bate como se descobrisse pela primeira vez sua existência.” (PEDROSA, 2016, p. 150). Juntos, fazem planos para o futuro. No momento em que o companheiro precisa de dinheiro para comprar sua parte da casa, que era de Jacinta, Clarisse arruma as malas e parte para os Estados Unidos.

Com o intuito de juntar uma soma considerável para o ajudar financeiramente na compra do imóvel, fica por lá trabalhando um ano, suportando conturbadas emoções. Sente falta de seu namorado, mas não revela a ele seu plano: “Aceitei a direção de uma rádio portuguesa na Califórnia para poder pagar a casa da mãe dele aos irmãos. Sabia que se lhe dissesse isso ele se oporia à minha partida; por isso, falei-lhe com entusiasmo da oportunidade de viajar, conhecer, criar.” (PEDROSA, 2016, p. 227)

Clarisse busca uma redenção no amor. Entretanto, ao contrário de Jacinta, encontra uma forma de canalizar suas pulsões para algo positivo. Nos Estados Unidos, emprega o desamparo que sente, por estar sozinha, em um outro país, longe do filho e do seu companheiro, para transformar sua vida. Ela encontra uma razão para viver.

Como se vê, Inês Pedrosa constrói, em seu romance, personagens femininas bastante distintas, entretanto, denuncia em suas páginas uma mesma situação vivenciada por cada uma delas: a dominação masculina. Desamparo retrata diversas situações de agressão contra a mulher, seja física ou psicológica.

Sempre reprimida pela cultura, interrompida pelo sexo oposto, a mulher foi por séculos tachada de frígida e vulnerável. É ensinado tanto às mulheres quanto aos homens, desde a mais tenra infância, que o papel dominante e, portanto, ativo na sociedade cabe a eles e uma das formas deles o exercerem é através da violência, seja física ou simbólica (esta, tão ou mais grave que a primeira, pois é muitas vezes invisível).

A violência simbólica contra as mulheres é o objeto de estudo de Pierre Bourdieu, sociólogo francês que examina a supremacia patriarcal em seu livro A dominação masculina – a condição feminina e a violência simbólica, publicada no Brasil em 1999. De acordo com Bourdieu, ela é suave, discreta, imperceptível a suas vítimas. Como é invisível, é de difícil detecção e exercida através de gestos, palavras e expressões, sem coação física.

Segundo Bourdieu, a força simbólica é reproduzida historicamente através das instituições, como a Igreja (através dos textos sagrados e liturgia), a Família, a Escola e o Estado, que perpetuam estruturas sociais e transmitem heranças culturais. Ela está no “inconsciente androcêntrico” de cada indivíduo e é internalizada através do habitus, que é um sistema de disposições incorporadas. Homens e mulheres a praticam no dia a dia, pois está em seus inconscientes, é passada de geração em geração através dos tempos:

A dominação masculina encontra assim reunidas todas as condições de seu pleno exercício. A primazia universalmente concedida aos homens se afirma na objetividade de estruturas sociais e de atividades produtivas e reprodutivas, baseadas em uma divisão sexual do trabalho de produção e de reprodução biológica e social, que confere aos homens a melhor parte, bem como nos esquemas imanentes a todo habitus: moldados por tais condições, portanto objetivamente concordes, eles funcionam como matrizes das percepções, dos pensamentos e das ações de todos os membros da sociedade, como transcendentais históricos que, sendo universalmente partilhados, impõem-se a cada agente como transcendentes. Por conseguinte, a representação androcêntrica da reprodução biológica e da reprodução social se vê investida da objetividade do senso comum, visto como senso prático, dóxico, sobre o sentido das práticas (BOURDIEU, 2018, p. 54).

Essas atitudes machistas incorporadas nas diversas instituições e perpetuadas inconscientemente são o reflexo dos valores de uma sociedade patriarcal onde a mulher é culpabilizada por todas as ações. Segundo o sociólogo, os dominantes impõem os seus valores aos dominados, que os internalizam e os reproduzem automaticamente nas esferas pública e privada, ocorrendo dessa forma um trabalho de eternização dos mecanismos históricos responsáveis pela violência simbólica, onde os valores patriarcais se ratificam e se perpetuam. Pierre Bourdieu ainda afirma sobre essa visão androcêntrica enraizada em nossa sociedade:

E as próprias mulheres aplicam a toda a realidade, e, particularmente, às relações de poder em que se veem envolvidas, esquemas de pensamento que

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