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1.2 O Sistema político argentino

1.2.4 A extensão dos direitos políticos

O constituinte de 1994, ao incorporar o Capítulo Segundo, denominado “nuevos

derechos y garantías”, ocupou-se em introduzir figuras inovadoras no Texto

Constitucional, como o direito de resistência à opressão perpetrada por governantes de fato, de formar partidos políticos, à iniciativa popular e à consulta popular entre os mais destacados.

A garantia expressa do exercício dos direitos políticos se traduz em duas conseqüências importantes: o direito ao sufrágio e a igualdade entre homens e mulheres para ascender a cargos públicos eletivos.

O direito ao sufrágio está vinculado à doutrina de governo do povo, que é a idéia da democracia indireta de representação política, mas com esteio no princípio da soberania popular (artigo 37). Assim, se a essência da democracia indireta é o povo se governar por meio de representantes, então a fórmula é operada por meio do sufrágio. O artigo 37 reconhece a participação do corpo eleitoral – conjunto de pessoas com direito de realizar atos políticos — não só na eleição de seus representantes, mas também na atividade governativa direta, por meio de plebiscito, referendo e iniciativa popular, satisfazendo as aspirações do homem contemporâneo que pretende governar e ser bem governado. Não se esgota, todavia, na dualidade eleitor/elegível: intervém diretamente na formulação de decisões e objetivos políticos do Estado.

Zarini sustenta que o sufrágio é uma função política e pública e não estatal, porque o indivíduo (homem ou mulher) exerce um direito eleitoral ativo em nome próprio, e não em nome do Estado, mesmo quando leva em conta interesses comuns289. Isso significa que o direito de sufragar é privativo e se manifesta pelo voto individual, em face de outras vontades individuais ou preferências. Quando se alcança certa maioria, em tese, constrói-se a vontade da coletividade. É dizer que o direito de votar é antes o exercício do direito de manifestação de pensamento e de expressão, portanto individual; a conseqüência é a construção de uma vontade coletiva.

No mesmo artigo 37 são prescritos os requisitos do sufrágio: universal, secreto, obrigatório e igual.

Universal porque reconhece a todos os cidadãos o direito de sufragar, observando certas limitações como idade e nacionalidade, mas tende a ser o mais amplo possível. O sufrágio universal possibilita a legitimidade do governo,, dada pela maioria dos cidadãos, característica dos Estados constitucionais contemporâneos.

289

O sufrágio deve ser secreto, pois impede a identificação da vontade do sufragante. É uma garantia para a liberdade de pensamento e expressão e constitui pilar fundamental para assegurar a autêntica manifestação da vontade popular, sem o temor de controle. Os argentinos o denominam “cuarto oscuro”, que é uma garantia da inviolabilidade do voto.

O sufrágio é obrigatório, segundo dispõe a Constituição nacional argentina. Na esteira da concepção acima descrita, Zarine justifica a obrigatoriedade como cumprimento de uma verdadeira função pública, por seu significado de interesse geral290. A atuação do poder eleitoral, quantitativamente, oferece uma presunção de legitimidade e garante a participação popular como valor imprescindível ao sistema democrático do tipo representativo. A tese de maior participação, maior legitimidade democrática, acentua-se na presença política como algo justo e valioso. Ao

[...] contrario, los sistemas (un democráticos) poco participativos, pierden legitimidad. Naturalmente, esto produce ciertas consecuencias éticas para el electorado, en el sentido de que lo obliga a comportarse con mayor enpeño y cuidado: a mayor poder, mayor responsabilidad291.

A igualdade é outra característica do sufrágio, pois considera equivalentes todos os eleitores, sem levar em consideração a idade, o sexo, a raça, a condição social e outros fatores que poderiam ser usados como critério de superioridade/inferioridade, valorizando os votos de uns em detrimentos de outros. Pelo sufrágio igual se reconhece o fundamento: “um homem, um voto”.

A Constituição argentina, porém, foi além. Estabeleceu a igualdade real entre homens e mulheres ao inserir, no artigo 37, “la igualdad real de oportunidades entre varones y mujeres para el acceso a cargos electivos y partidarios garantizará por acciones positivas en la regulación de los partidos políticos y en régimen electoral”. Explicitamente, atribui ao legislador ordinário a obrigação de formular ações positivas em favor das mulheres.

O artigo 16 da Constituição argentina consagra o princípio da igualdade:

290

ZARINI, Helio Juan. Op. cit., p. 159.

291

SAGÜÉS, Néstor Pedro. Elementos de derecho constitucional. 3. ed. Buenos Aires: Editorial Astrea, 2003. p. 411.

Artículo 16 – La nación Argentina no admite prerrogativas de sangre, ni de nacimiento: no hay en ella fueros personales ni título de nobleza. Todos sus habitantes son iguales ante a ley, y admisibles en los empleos sin otra condición que idoneidad. La igualdad es la base del impuesto y de las cargas públicas.

O artigo acima transcrito possui amplo grau de generalidade e abstração, como é da natureza dos princípios. O artigo 37 vem dar efetividade concreta ao comando principiológico, estabelecendo paridade entre homens e mulheres (“real de oportunidades entre varones y mujeres para el acceso a cargos electivos y partidarios”), obrigando o Congresso a legislar no sentido de garantir essa igualdade (“por acciones positivas en la regulación de los partidos políticos y en el régimen electoral”).

A redação do artigo 37 segue os delineamentos assinalados pela Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, aprovada pela Resolução n. 34/180 da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 18 de dezembro de 1979, e reconhecida pela Lei n. 23.179 do Congresso argentino. Em virtude do artigo 75, inciso 22, os tratados internacionais de direitos humanos são expressamente dotados de força de norma constitucional292. Assim, nesse tema, o artigo 37 harmoniza-se com o artigo 2º do Tratado Internacional de Proteção às Mulheres, em especial as letras “a”, “b” e “c”. Diz o artigo 2º:

Os Estados-partes condenam a discriminação contra a mulher em todas as suas formas, concordam em seguir, por todos os meios apropriados e sem dilações, uma política destinada a eliminar a discriminação contra a mulher, e com tal objetivo se comprometem a:

a) consagrar, se ainda não o tiverem feito, em suas Constituições nacionais ou em outra legislação apropriada, o princípio da igualdade do homem

292

“Artículo 75 – Corresponde al Congresso:

22. Aprobar o desechar tratados concluidos con las demás naciones y con las organizaciones internacionales y los concordatos con la Santa Sede. Los tratados y concordatos tienen jerarquía superior a las leyes. La Declaración Americana sobre Derechos y Deberes del Hombre; la Declaración Universal de Derechos Humanos; la Convención Americana sobre Derechos Humanos; el Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales; el Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos y su Protocolo Facultativo; la Convención Sobre la Prevención y la Sanción del Delito de Genocidio; la Convención Internacional sobre la Eliminación de Todas las Formas de Discriminación Racial; la Convención sobre la Eliminación de Todas las Formas de Discriminación Contra la Mujer (grifos nosso); la Convención Contra la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes; la Convención Sobre los Derechos del Niño; en la condiciones de su vigencia, tienen jerarquía constitucional, no derogan artículo alguno de la primera parte de esta Constitución y deben entenderse complementarios de los derechos y garantías por ella reconocidos. Sólo poderán ser denunciados, en su caso, por el Poder Ejecutivo nacional, previa aprobación de las dos terceras partes de totalidade de los miembros de cada Cámara. Los demás tratados y convenciones sobre derechos humanos, luego de ser aprobados por el Congreso, requerirán el voto de la dos terceras partes de la totalidad de los miembros de cada Cámara para gozar de la jerarquía constitucional”.

e da mulher e assegurar por lei outros meios apropriados à realização prática desse princípio (grifo nosso);

b) adotar medidas adequadas, legislativas e de outro caráter, com as sanções cabíveis e que proíbam toda discriminação contra a mulher;

c) estabelecer a proteção jurídica dos direitos da mulher em uma base de igualdade com os do homem e garantir, por meio dos tribunais nacionais competentes e de outras instituições públicas, a proteção efetiva da mulher contra todo ato de discriminação.

Verifica-se que o constituinte de 1994 foi além da garantia formal da igualdade. Elegeu a igualdade real, impondo ao Estado a obrigação de tomar medidas adequadas em favor da mulher. A garantia da igualdade no exercício dos direitos políticos ganha importância singular, pois esses direitos, como já sublinhado, são direitos humanos. Miguel Ángel Ekmekdjian escreve que a igualdade real significa

[...] acción afirmativa, es decir, el otorgamiento de beneficios especiales a los grupos desaventajados (en este caso las mujeres) para remover los obstáculos sociales y económicos que, de hecho, limitan la igualdad de oportunidades, aunque formalmente no exista trato desigual. Por eso este texto constitucional se refiere a las “acciones positivas”, en las normas sobre partidos políticos e régimen electoral293.

É de observar uma opção axiológica do constituinte argentino: a letra “a” do artigo 2º do Tratado permite consagrar nas Constituições ou outras legislação apropriadas o princípio da igualdade do homem e da mulher. No plano normativo o “ou” tem função inclusiva:

Se a proposição deôntica primária e a proposição deôntica secundária são ambas válidas na proposição jurídica total, o conectivo ou é usado em sua função includente (...) A validade simultânea dá-se no plano das normas. No plano dos fatos, há excludência. Os fatos é que ora se incluem na primeira proposição, ora se inserem na segunda proposição normativa294.

Com esteio nesse enunciado, o constituinte argentino decidiu que as normas de proteção à mulher – e de resto dos direitos humanos — tivessem hierarquia constitucional, pois o “ou” da Convenção não vincula os Estados-partes a constitucionalizar as normas protetivas. Oferece, ademais, a opção de norma infraconstitucional, se bem que superior à legislação comum. Fez, então, o legislador constituinte argentino constitucionalizar as

293

EKMEKDJIAN, Miguel Ángel. Op. cit., p. 458.

294

VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Max Limonad, 1997. p. 134.

normas de direitos humanos internacionais, incluindo o Tratado-Convenção ora em comento. Quer dizer: o “ou” incluiu o tratado no grau de norma constitucional e excluiu a possibilidade de infralegislar o tema.

No plano dos direitos políticos, o Tratado prevê em seu artigo 7º:

Artigo 7º Os Estados-partes tomarão todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação conta a mulher na vida política e pública do país e, em particular, garantirão, em igualdade de condições com os homens, o direito a: a) votar em todas as eleições e referendos públicos e ser elegível para todos os órgãos cujos membros sejam objeto de eleições públicas;

b) participar na formulação de políticas governamentais e na execução destas, e ocupar cargos públicos e exercer todas as funções públicas em todos os planos governamentais.

Dessa forma, a Constituição argentina, ao referir-se à garantia das ações positivas, visando a igualdade real, acoplou-se, normativamente ao Tratado, dando condições legislativas às políticas de quotas, as quais foram normatizadas no Código Eleitoral, alterado pela Lei n. 24.444 em seu artigo 60, que dispõe:

Las listas se presenten deberán tener mujeres en un mínimo de un 30% de los candidatos de los cargos a elegir y en proporciones con posibilidad de resultar electas. No será oficializada ninguna lista que no cumpla estos requisitos295.

Vê-se que os direitos políticos na Constituição argentina alcançaram um grau de igualdade real entre homens e mulheres. É indubitavelmente um avanço na legislação igualitarista.

295

Helio Juan Zarini conclui: “1) el constituyente de 1994 aplicó aquí los principios expresados y la igualdad sentada por el art. 16 de la Constitución, en lo que refiere al sexo; 2) constitucionalizó el ‘cupo femenino’ del 30% que ya había establecido la ley 24.012, ‘cupo’ que ratificó el Congreso nacional por ley posterior 24.444, a la que nos referimos seguidamente; 3) la norma constitucional extiende también ese porcentaje de mujeres para el acceso a cargos partidarios; 4) la ley puede limitar, temporalmente, el ‘cupo femenino’ para ‘cargos electivos y partidarios’; 5) el art. 37 y su disposición transitoria, autorizan una ley de ‘cupo femenino’ que pareciera afectar, en principio, a quienes aparentemente pretende beneficiar, puesto que otorga un privilegio a las mujeres asegurándoles, al menos, el 30% de cargos electivos y partidarios, y 6) finalmente, la interpretación expuesta, por aplicación de los principios de igualdad, este último como condición exigible para el acceso a los cargos públicos (art. 16, Const. Nacional), y en virtud del texto del art. 37 y su disposición transitoria permiten afirmar, en resumen, que será discriminatoria y, en consecuencia, insconstitucional toda norma y medida que pretenda efectuar una distinción entre las personas atendiendo a su sexo” (ZARINI, Helio Juan. Op. cit.).

Na democracia contemporânea a pluralidade e o reconhecimento das diversidades são a marca mais acentuada. As desigualdades levam ao conflito, que pode criar uma coletividade bruta, violenta, onde os mais fortes submetem os mais fracos. Os conflitos individuais não são tão danosos como os conflitos entre grupos. Estes podem gerar violências enormes e desagregar uma coletividade, tornando insuportável a convivência. A história mostra que grupos desorganizados praticam atos de barbárie contra outros, tanto no interior de uma sociedade como na tentativa de subjugar outras sociedades. Dentro de uma sociedade também existem grupos com interesses antagônicos e conflitantes. Até a Idade Média, mormente, os grupos mais fortes perseguiam os opositores. Foi na Revolução Francesa que os conflitos entre grupos foram racionalizados e institucionalizados, ao reconhecer a livre associação política, cuja liberdade de expressão é exercida coletivamente. Os indivíduos se unem com outros para formar grupos com diversos vínculos: associações, instituições, sindicatos, partidos políticos etc. Este último o é que nos interessa, em razão do regime democrático representativo.