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O reconhecimento dos direitos fundamentais é recente e representa uma evolução da humanidade. Eles não se esgotam nas gerações de direitos, mas continuam em desenvolvimento rumo aos direitos essencialmente humanos que se ampliam difusamente, como já afirmado. Foi na Idade Média que surgiram os antecedentes das declarações de direitos, em especial na Inglaterra, em decorrência de pactos que consistiam em convenções entre o monarca e os súditos, por meio dos quais eram celebravam acordos que, em certo sentido, davam proteção aos indivíduos. No entanto, não se comprometiam os privilégios estamentais. Citemos, como protogerações dos direitos, a Magna Carta de 1215, pela qual o Rei João Sem Terra teve seus poderes régios limitados por um parlamento, formado pelos barões. É verdade que não se tratava de um parlamento popular, mas foram introduzidas importantes contenções ao poder real, porque, na medida em que o poder é limitado, amplia-se o espaço da tutela ao indivíduo. Em decorrência, que não é automática, forjaram-se direitos, como o habeas corpus, que hoje são reconhecidos universalmente.

Determinadas limitações ao poder real podem ser aceitas como o início da construção dos pré-direitos individuais: o impedimento para a criação de tributos sem o consentimento da realeza (artigos 12 e 14), o direito a um processo justo, no qual o acusado possa se defender (“Nenhum homem livre poderá ser preso, ou detido, ou despossado, ou banido, ou exilado, ou seja como for constrangido, nem o rei jamais poderá retê-lo ou prendê-lo, sem o ter previamente submetido a um julgamento de seus pares e pela lei da terra” — artigo 39), e a instituição do tribunal do júri (artigos 20 e 21), abolindo

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as penas desproporcionais e arbitrárias. Enfim, limitou-se o poder real e se estabeleceu certa liberdade e igualdade. A respeito, mencione-se o artigo 60: “Todos os direitos e liberdades, cuja observância garantimos em nosso reino, na medida de nossa competência em relação aos nossos homens, serão igualmente observados por todos os clérigos e leigos do nosso reino, em relação àqueles que deles dependem”.

Estava ali depositado o embrião do desenvolvimento das liberdades individuais, que, paulatinamente, foi-se formando na Inglaterra. O aumento das garantias e a instituição do parlamento consolidaram a base inquebrantável do direito político britânico, tendo como referência a Magna Carta90, que se tornou um símbolo das liberdades públicas, consubstanciando-se no desenvolvimento constitucional inglês “e servindo de base a que juristas” (...) “extraíssem dela os fundamentos da ordem jurídica democrática do povo inglês”91.

Ainda na Inglaterra, no século XVII, a Revolução Inglesa desempenhou papel determinante, pois foi o

[...] primeiro grande movimento de critica conseqüente (seja na ruptura brusca e/ou ou na aceitação de um consenso) às “forças da tradição”, desatando os seus nós rumo à modernidade (...) com a solução monárquica constitucional, foi criada a condição primordial para o crescimento econômico de orientação capitalista – a estabilidade política sob nova direção de uma classe burguesa que toma para si o poder estatal, fortalecendo-o nas suas relações internas com outras classes sociais e nas suas relações externas com outras nações92.

As novas relações eram baseadas em pactos escritos de orientação contratualista, nos quais simultaneamente se garantiam direitos políticos e que limitavam o poder real. Na Europa da Idade Média eram freqüentes os pactos, forais ou cartas de franquia, que consistiam na proteção dos direitos individuais. Embora os costumes ainda imperassem decisivamente na ordenação social, os documentos escritos e as matérias neles contidas protegiam determinados direitos individuais. Por esse meio se assegurou a participação “dos súditos no governo local, inserindo-se, assim, os forais, um elemento propriamente

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BARROS, Sérgio Resende de. Op. cit., p. 354.

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SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 152.

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político, estranhos à maioria dos pactos. Por outro lado, seu fundamento é a outorga pelo senhor”93.

A partir daí outras cartas formalizaram pactos políticos a fim de limitar o poder soberano do rei, como a Petição de Direitos (Petition of Right), de 7 de junho de 1628, segundo a qual o monarca não poderia gastar dinheiro sem autorização do parlamento nem ordenar a prisão de alguém senão por julgamento justo entre seus pares. Em seu artigo 39, previa que “nenhum homem livre será detido nem preso, nem despojado de seus direitos nem de seus bens, nem declarado fora da lei, nem exilado, nem prejudicada a sua posição de qualquer forma; tampouco procederemos com força contra ele, nem mandaremos que outrem o faça, a não ser por um julgamento legal de seus pares e pela lei do país”.

Nesse artigo há três regras fundamentais que viriam a se desenvolver com maior profundidade no Estado Moderno: a primeira é a limitação dos poderes do rei na expressão “tampouco procederemos com força contra ele”, isto é, o rei não poderia impelir qualquer ação contra o súdito senão justificadamente — uma garantia de liberdade; a segunda, a expressão “julgamento legal de seus pares”, o que indica igualdade; e a terceira, “pela lei do país”, que é a legalidade. Tratava-se, na verdade, de garantir as liberdades individuais e públicas, embora disfarçado na forma de petição. Sem exagero, pode-se inferir que uma nova era se descortinava diante da humanidade – uma Era de Direitos.

Em 1679, durante o reinado dos Stuarts, o parlamento inglês procurou limitar o poder do rei para prender os opositores políticos. Os Stuarts foram os últimos reis católicos perante um parlamento marcadamente protestante; o confronto era inevitável. O parlamento, então, criou a Lei do Habeas Corpus “para melhor garantir a liberdade do súdito e para prevenção das prisões ultramar”. Na verdade o habeas corpus já existia na Inglaterra, mas era de pouca eficácia, pois se tratava de mandado judicial em caso de prisão arbitrária. No entanto, faltavam regras processuais adequadas, porque no direito inglês

[...] são as garantais processuais que criam os direitos e não o contrário. Tal como ocorria no direito romano, o direito inglês não concebe a existência de

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FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 4.

direitos sem uma ação judicial própria para a sua defesa. É da criação dessa ação em juízo que nascem os direitos subjetivos, e não o contrário94.

Outro documento importante na evolução dos direitos humanos é a Declaração de Direitos (Bill of Rights) de 1688, que firmou a supremacia parlamentar, exigindo do Rei Jaime II a abdicação do trono e designando Guilherme III e Maria II novos monarcas. Limitou, porém, seus poderes. Tem-se, pois, a monarquia constitucional, reconhecendo a vontade popular em detrimento da vontade divina na capitulação do poder. Cabe ressaltar, porem, que essas declarações excluíam, por um lado, os que não eram proprietários, mas, por outro, incluíam uma nova base social, formada por burgueses não aristocratas, como se verifica no artigo 11 do Bill of Rights, que menciona “jurados que tomam decisões referentes à ‘sorte das pessoas’ como devendo ser ‘livres proprietários de terras’”95. É evidente que se desvenda uma ampliação de direitos políticos, embora não atingindo ainda todos os súditos.

Para melhor entender essas declarações, busquemos em Hobbes e Locke algumas premissas.

Locke apresenta um contratualismo diferente de Hobbes. Para este, o Estado, representado pelo Leviatã, é o único corpo que pode oferecer segurança aos homens que vivem em “estado de natureza”, de permanente “guerra de todos contra todos”. O estabelecimento de um contrato social é a solução para a garantia da paz e segurança das pessoas. Por meio dele, os indivíduos transferem para o rei todos os poderes, a ele cabendo proporcionar essa segurança. Embora Hobbes seja apresentado como defensor do despotismo, apresentam-se-nos três importantes instrumentos de limitação do poder96: o humanismo jurídico, o individualismo e o igualitarismo.

Hobbes concebia o poder como edificação humana e não divina: “O mundo não é uma ordem cósmica, com naturezas e essências, mas um complexo de seres individuais”97. Assim, ele desnaturaliza a idéia do poder divino. O direito político, para ele, é antropológico; encontra no Estado um esquema

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COMPARATO, Fábio Konder. Op. cit., p. 85.

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[...] na lógica da arquitetura artificial que o homem é capaz de conceber e edificar; do mesmo modo, o Poder, num universo que está sendo desteologizado pela afirmação já triunfante das aptidões racionais do homem, se delineia como um poder temporal exclusivamente secular98.

Dessa forma, as concepções teológico-políticas perdem sua força ideológica na justificação do poder, dando a este uma feição mais humana. Hobbes entende que há necessidade de estabelecer regras de convivência, um pacto social de sujeição ao soberano, pois este pode garantir a paz. Hobbes postula suas idéias sob a forma de um pacto escrito ou de um contrato social.

Locke entende que o homem em “estado de natureza” vive uma situação de “relativa paz, concórdia e harmonia”, contrariamente ao pensamento de Hobbes. Consigna um contrato social com base em um pacto de consenso e os direitos individuais, principalmente o da propriedade privada, dão o condão para a realização desse pacto. Locke, também, parte de certa renúncia à liberdade individual, mas esta é entregue à autoridade pública. Essa autoridade tem a tarefa de punir os que ferirem os direitos pactuados. Para Locke, porém, a relativa tranqüilidade e harmonia não são condição suficiente para a vida em concórdia. É necessário existir uma garantia legal, portanto é conveniente e justo que os homens se associem e estabeleçam regras e instâncias para aplicar e punir aqueles que desafiarem o acordo feito. Essa é, para Locke, a justificativa para a existência de um poder político estatal, donde suas tarefas são as de:

Legislador, ele fixa as regras do exercício soberano (...); juiz, ele sanciona as infrações à lei e se empenha em fazer reinar a ordem de justiça decorrente desses mesmos direitos de natureza, apelando à força pública para tornar efetivas as sanções e reparar os prejuízos; governante, ele toma decisões relativas à guerra e à paz, bem como medidas administrativas que exigem a salvaguarda da coletividade, a segurança dos cidadãos e a proteção de suas livres atividades99.

Assim, para Locke, a sociedade civil é uma sociedade convencional. Para participar dessa liberdade o homem abre mão de sua liberdade ilimitada e a entrega a uma autoridade pública. As convenções são expressas em declarações que celebram uma relação de submissão. O “estado de natureza é o seu ponto de entrada no sistema racional. O estado de

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GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. Trad. Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 75.

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LOPES, José Reinaldo Lima. Op. cit., p. 192.

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GOYARD-FABRE, Simone. Op. cit., p. 76.

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natureza é aquele em que todos podem fazer cumprir a lei natural, e esta impõe que cada um cuide da sobrevivência de seu semelhante, enquanto não afetar sua própria sobrevivência”100.

Ainda Locke faz importante contribuição à democracia. Na Carta a respeito da

tolerância (Epistola de tolerantia), Locke prega a convivência pacífica entre as religiões e

defende o papel do Estado como garantidor da paz entre as diversidades. A lei da tolerância apregoa a coexistência harmoniosa entre grupos diferentes e estabelece regras importantes, como o direito à palavra, à liberdade e o direito de reunião e associação.

As idéias surgidas na Inglaterra e difundidas no continente trasmigraram para outras terras, principalmente nos Estados Unidos (recém-independentes) e na França.