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Mas foi a Revolução Francesa de 1789 que, ao contrário da Revolução Americana, promoveu uma ruptura de além-fronteiras com os regimes centralizadores. O Iluminismo racionalista influenciou sobremaneira as idéias filosóficas e políticas do século XVII ao século XIX. Essas idéias se contrapunham às concepções e dogmas teológicos, os quais justificavam o poder temporal do rei. A desigualdade perante a lei, os privilégios da nobreza, o impedimento de participação do povo nos assuntos públicos, a servidão, os castigos corporais, a intolerância religiosa, a proibição da manifestação de pensamento, constituíam uma agenda opressora e violenta contrária ao humanismo daqueles séculos de luz.

Os direitos fundamentais eram negados à maioria dos indivíduos pelos monarcas, que exerciam o poder incontrolavelmente. O homem comum não tinha perspectiva de ascensão social; era uma condição imutável de existência. Por sua vez, o monarca não necessitava prestar contas ao povo, já que somente devia obediência a Deus. Dessa prática de poder decorrem os movimentos liberais do século XVIII, que buscavam transformar um Estado autocrático em regimes de maiores liberdades, sobretudo a econômica. O homem começa a tomar consciência de sua condição na história.

Os movimentos liberais de inspiração econômica influenciaram outras idéias, cujas dimensões atingiriam o regime político. São idéias políticas de maior abrangência, e que se concentraram no campo do direito, tendo como principal destinatário o indivíduo. Numa perspectiva liberal começaram a surgir as primeiras linhas dos direitos civis e políticos que impunham uma limitação ao Estado.

[...] é natural que o liberalismo tenha dado importância fundamental a determinados direitos humanos, tidos como civis e políticos, e que se

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COMPARATO, Fábio Konder. Op. cit., p. 103.

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caracterizam exatamente por estabelecerem garantias do cidadão comum contra os excessos do Estado concentrador de poderes e repressor do cidadão108.

A primeira manifestação da universalização dos direitos humanos foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, documento escrito que ensejou a Revolução Francesa e expandiu-se para outras partes do mundo. Liberdade, igualdade e fraternidade, consignadas em declarações escritas, legíveis e inteligíveis — era o lema do homem novo, que resiste à opressão. Iniciava-se o processo que transformaria o homem em cidadão: todos os homens nascem livre e iguais, com direitos naturais e imprescritíveis; direito de fazer tudo o que se quiser, desde que não prejudique os outros; liberdade de pensamento, de religião, de imprensa; a presunção de inocência e a respectiva possibilidade de um processo justo quando acusado, entre outros.

Tal declaração transmigrou para outros lugares, estabelecendo um caráter universal, justamente porque as declarações anteriores não produziram uma ruptura estrutural, mantendo privilégios para uma pequena camada da sociedade:

Constatou-se então com irrecusável veracidade que as declarações antecedentes de ingleses e americanos podiam talvez ganhar em concretude, mas perdiam em espaço de abrangência, porquanto se dirigiam a uma camada social privilegiada (os barões feudais), quando muito a um povo ou a uma sociedade que se libertava politicamente, conforme era o caso das antigas colônias americanas, ao passo que a Declaração francesa de 1789 tinha por destinatário o gênero humano109.

A característica mais eloqüente da Declaração francesa é a universalização dos direitos, pois ela apresenta estilo mais abstrato e generalizante. Nos debates da assembléia francesa os interlocutores pregavam a expansão dos direitos em todos os tempos e lugares. Certamente compreendiam o direito como algo estável e imutável. Por essa razão, davam- lhe um caráter expansionista. Entretanto, a Declaração francesa traduzia algo mais do que discursos apaixonados. Exibia alto grau de juridicidade, concretude, positividade e eficácia. Para José Afonso da Silva110, citando Jacques Robert, há três caracteres fundamentais na Declaração de 1778: 1) intelectualismo, pois se tratava de um documento filosófico-jurídico que anunciaria uma nova sociedade, portanto uma operação de ordem

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LIMA JR., Jayme Benvenuto. Os direitos humanos econômicos, sociais e culturais. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 19.

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BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 516.

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intelectual; 2) mundialismo, pois tem valor universal, para além dos Estados; e 3) individualismo, porque declara e reconhece direitos individuais e, ao mesmo tempo, cria direitos oponíveis ao Estado.

Os direitos declarados são universais, uma vez que não se limitam à aplicação no interior dos Estados, mas extrapolam as fronteiras destes e atingem todos os homens em qualquer lugar ou época. Daí seu caráter universal.

Verificou-se, então, que as Declarações escritas, embora estabelecessem solenemente direitos intangíveis e inalienáveis do homem, não tinham caráter normativo. O artigo 4 da Declaração francesa dispõe que a liberdade pode ser exercida tendo por limite o direito do outro. Em sua parte final, prescreve que “estes limites apenas podem ser determinados pela lei”. Conclui-se que a lei desenvolve papel decisivo nesse novo regime, fiel, aliás, ao pensamento de Rousseau, no que concerne à vontade geral.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho111, ao comentar o referido artigo 4, chama a atenção para duas razões que impõem a limitação do exercício da liberdade: a primeira é ser a lei a expressão de justiça, com os corolários de ser geral e abstrata, aplicando-se a todos os homens de forma igualitária; pela segunda, o artigo 6 da Declaração estabelece que “a lei deve ser a expressão da vontade geral” — num flagrante empréstimo da expressão de Rousseau —, mas isso não significa que a lei deve ser uma manifestação arbitrária do legislador: deve ser legítima, levando em consideração a participação popular. Abre-se uma perspectiva de juridicização das normas de direito.

A participação popular, inexistente até então, fora manifestada na convocação “dos Estados gerais de 1789”, sendo “a verdadeira era do nascimento de um povo. Ela chamou o povo inteiro ao exercício de seus direitos. Ele pôde ao menos escrever suas queixas, seus votos, eleger os eleitores”112. Eis aí um campo aberto para o exercício dos direitos políticos pelo povo. No início se supunha certo temor dos mais fracos diante dos mais fortes. Ledo engano. Mesmo na composição do Terceiro Estado elegia-se a nobreza para representar os

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FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 26.

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MICHELET, Jules. História da Revolução Francesa. Trad. Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 91.

interesses das classes subalternas. “Freqüentemente nomeavam-se nobres para deputados, no mais das vezes enobrecidos, homens do parlamento e outros, que tratavam de votar com a nobreza, contra os interesses do Terceiro que os havia nomeado”113.

Nas assembléias populares, entretanto, os representantes deveriam ser eleitos em voz alta, o que poderia constranger o povo a votar nos nobres. Porém, a surpresa. Jules Michelet relata: “Não se supunha que o povo miúdo, em tal modo de eleição, na presença dos nobres e dos notáveis, tivesse suficiente firmeza para enfrentá-los, suficiente segurança para pronunciar outros nomes que não aqueles que lhes seriam ditados”114.

As Assembléias Gerais dos Estados eram formadas por três estamentos: a nobreza, o clero e os que não possuíam os privilégios dessas duas ordens. Estes compunham o “Terceiro Estado”, pois aglomeravam um heterogêneo grupo social formado pela burguesia e por não proprietários, pequenos artesãos, empregados domésticos, operários e artesãos. Por obra de Sieyès, a Assembléia Geral, que teve início em 5 de maio de 1789, passou a denominar-se, em 15 de junho, Assembléia Nacional, já que os deputados do Terceiro Estado haviam conseguido duplicar o seu número em relação aos dois outros estamentos. Antes, porém, Mirabeau sugerira a denominação “assembléia dos representantes do povo francês”, que podia significar muito ou pouco: como plebs ou

populus. No sentido de populus se teria instaurado uma democracia nos moldes atenienses,

na qual a maioria do povo passaria a exercer a cidadania ativa, o que certamente contrariaria a nobreza e o clero e, ainda, a burguesia. Sieyès propôs, então, a fórmula de nação, na qual a soberania não pertencia à pessoa do monarca, mas a um ente abstrato, impessoal: a nação, termo introduzido no artigo 3 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: “O princípio de toda soberania reside essencialmente na Nação. Nenhuma corporação, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que dela não emane expressamente”. Decerto que essa fórmula resultou num sistema censitário, porém era o crepúsculo de uma nova era.

Sieyès retoma a discussão entre vontade geral e vontade de todos. Ao referir-se ao Terceiro Estado, estende-o ao “plenário dos Estatutos Gerais para dar a uma parte (o Terceiro Estado) a condição de fazer pelo todo (a nação) a constituição de um legítimo

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governo representativo”115. Para ele a soberania do povo se confunde com a soberania nacional. Contemporiza a idéia de representação, por meio da qual o povo exerce a soberania. Não a representação nos moldes do direito civil do antigo regime, mas de uma concepção inovadora dos direitos políticos do Estado Moderno, que deseja uma representação nacional em que os eleitos sejam independentes dos eleitores. Aqueles recebem seus poderes de uma Constituição. É a nação inteira “que deve exprimir-se pela voz dos governantes: de fato, é ela que é soberana e, enquanto tal, é, no Estado, o poder constituinte; possui mesmo sobre os corpos constituídos, graças ao órgão que o júri é, um poder de controle”116.

Rousseau, todavia, não concebe a idéia de representação, pois a essência da soberania coincide com a manifestação da vontade geral que se sobrepõe à vontade de todos, de maneira que a soberania se identifica com a vontade geral.

[...] A vontade de todos é fenômeno quantitativo: todos se manifestam. A vontade geral é a vontade de todos acrescida de uma qualidade: todos se guiam só pelo interesse geral. Essa qualidade evita ser a vontade comum degenerada por interesse particular, que a partiria. Diferente da simples vontade de todos (conceito quantitativo), a vontade gral é a vontade comum autêntica (conceito qualitativo). É a vontade superior à vontade comum. Da vontade de todos para a vontade geral, ocorre um salto qualitativo, pelo qual se chega à vontade comum em sua verdadeira e absoluta comunidade. Marca de Rousseau: contra o absolutismo da monarquia, o absolutismo da democracia117.

Entrementes, ambas as posições coincidem que a soberania está depositada no povo e disso decorre uma conseqüência determinante para a concepção do poder político. É que há uma mutação substancial na concepção de soberania.

Ocorre que não é mais o rei o detentor da soberania. Ela transcende o divino e o natural, alojando-se no povo ou na nação. É construída nesse momento histórico uma dimensão política em que o povo não aliena sua vontade a um déspota. Embora prevaleça certo privilégio para determinadas castas sociais, há um rompimento com o antigo regime, vislumbrando-se uma sociedade libertária. O homem, além de obter direitos individuais, recebe nova roupagem: ele é considerado um cidadão, protagonista de uma nova sociedade

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Id., Ibid.

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BARROS, Sérgio Resende de. Op. cit., p. 382.

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GOYARD-FABRE, Simone. Op. cit., p. 184.

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emergente, inovadora em direitos políticos. O que fica patenteado é que por meio da soberania se criou certo humanismo jurídico, no qual as leis impostas ao corpo social são orientadas pela vontade geral, legítima e legitimada. As leis não são mais a manifestação de caprichos, mas fruto de disputas do corpo social, que estabelece regras para o exercício do poder político. Os direitos políticos são, agora, espalhados por toda a sociedade. É verdade que existiam discriminações inaceitáveis, mas é inegável que há um número maior de pessoas participantes das coisas públicas — existe, em certa medida, um movimento inclusivo. Não significa isso, ainda, o exercício da democracia, mas é mais uma anunciação da nova era.

Os direitos proclamados pela Declaração firmaram-se como categoria ineliminável dos direitos políticos modernos. São reconhecidos solenemente e configuram o mais importante arcabouço jurídico da época, sendo, evolutivamente, objeto de garantias dos Estados contemporâneos. Constituem-se direitos nacionais e supranacionais, alavancando uma nova ordem internacional, dado seu caráter universal. Não restam dúvidas de que os direitos declarados em 1789 necessitam de uma potência que transcenda a mera expectativa ou a boa intenção. Nelson Saldanha assevera que as “Cartas não apareciam para modificar estruturas mas para estabilizar relações ou para garantir velhas franquias ameaçadas de rompimento”118.

Os direitos proclamados devem ser respeitados e observados pelos Estados. Essa condição será possível pela juridicização dos direitos proclamados, caso contrário não passarão de boas intenções, ineficazes e continuadoras do antigo regime. Trata-se de um marco importante na história dos direitos políticos, pois exigiu do Estado a criação de mecanismos aptos a comtemporizar as inovadoras relações do corpo político.

Em seqüência à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a França criou, em 1791, sua Constituição. Também esse instrumento, já utilizado nos Estados Unidos da América, permitiu a concretização dos direitos expressos nas Cartas. Tem-se, pois, uma dimensão de direito: sua juridicidade.

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