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1.2 O Sistema político argentino

1.2.1 A conjuntura política argentina

Iniciaremos um estudo sobre os sistemas políticos da Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, países que integram o Mercosul267, para examinar a complexidade dos sistemas políticos em um ambiente de transição/consolidação da democracia no continente.

A Argentina tem por tradição a existência de instituições republicanas e representativas. Como no restante da América Latina, tais instituições são frágeis em razão da pouca vivência democrática. Para Raúl Enrique Rojo, a democracia argentina é frágil pela influência do personalismo na vida política268. Tal personalismo apresenta duas facetas: de um lado, a diversidade popular, preocupada mais ou menos com interesses individuais; a outra, líderes carismáticos que não personificam os valores coletivos, mas desempenham papel mediador entre o mundo do poder e o povo.

Os setores populares têm como meta permanente manter a influência política num sistema político pouco aberto. Assim, buscam-se líderes populistas que trazem a promessa de romper a hegemonia das oligarquias. O sistema político argentino se presta mais à promoção social e econômica de pessoas e grupos, em especial dos militares, do que, propriamente, a uma responsabilidade perante a democracia.

Ao referir ao populismo, alude-se, principalmente, ao peronismo. Todavia, a Argentina teve dois movimentos importantes: o movimento del órden conservador (1853- 1916), que implementou uma república democrática e aceitavelmente liberal, aspirando a integrar politicamente os descendentes de imigrantes e a superar as guerras civis que haviam ocorrido na vida política colombiana no século XIX ;e o peronismo, que representou a consagração da igualdade (1945-1955). Ambos os movimentos foram conservadores e nasceram “con taras y malformaciones que marcarían profundamente a la sociedad argentina”269.

O peronismo criou uma cultura política marcante, que resiste até os dias atuais. Perón desprezava as estruturas jurídicas do Estado representativo e de seu partido, que passou a ser uma máquina a serviço de seus projetos pessoais.

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Não incluímos em nosso trabalho a Bolívia, o Chile e a Venezuela, que recentemente demonstrou interesse em integrar ao Mercosul.

Contudo, a Argentina teve uma evolução política marcada por governos constituídos de fato e em outros momentos de direito, marcados por fraudes, golpes, alianças incongruentes e líderes populistas como Hipólito Yrigoyen (União Cívica Radical), líder dos radicais.

Eleito presidente em 1918, Yrigoyen criou uma legislação que contemplou os novos problemas trabalhistas, com base em um Código do Trabalho.

Foi de sua iniciativa a criação da Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF), empresa pública destinada à exploração do petróleo argentino.

O sucessor de Yrigoyen foi seu correligionário Marcelo T. de Alvear, pelo qual nutria enorme simpatia. Contudo, pela postura autoritária de Yerigoyen, Alvear estimulou uma cisão no interior da UCR, formando um movimento conservador denominado “antipersonalismo”.

A Argentina, nesse período, viveu sob certa estabilidade política e econômica. O exército foi equipado com moderna tecnologia, o que trouxe enorme prestígio ao Ministro da Guerra, general Agustín P. Justo, que logo o utilizou politicamente.

Em 1928, Yrigoyen voltaria ao poder com 840.000 votos contra 440.00 dos antipersonalistas270.

Embora as preocupações com o desenvolvimento social se houvessem acentuado, o cenário político era predominante, uma vez que o presidente era idoso e se anunciavam, evidentemente, novas disputas eleitorais.

Os grupos conservadores também se mobilizavam para a sucessão agrupando-se em torno do Partido Democrático Nacional, que trazia elementos dos Partidos Autonomista

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TAVARES, José Antonio; ROJO, Raúl Enrique (orgs.). Instituições políticas comparadas dos países do

Mercosul. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getulio Vargas, 1998. p. 33.

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TAVARES, José Antonio; ROJO, Raúl Enrique (orgs.). Op. cit., p. 34.

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SANGUINETTI, Horacio. Curso de derecho político. Buenos Aires: Editorial Astrea de Alfredo y Ricardo Depalma, 2000. p. 362.

Nacional e Conservador. De tendência social-democrática, surgiu, em 1914, o Partido Democrático Progressista, tendo como líder Lisandro de la Torre, com grande influência na província de Santa Fé.

Uma campanha de descrédito, liderada principalmente pelo diário Crítica, de Natalio Botana, contra Yrigoyen, desgastou seu prestígio, principalmente com a morte de um deputado de oposição:

El radicalismo, que había puesto su tónica en la lucha por el libre sufragio, cometió algún pecadillo en esta materia. La Cámara de Diputados rechazó los diplomas de los líderes cuyanos opositores, Cantoni y Lencinas, y el último fue asesinado en 1929, ofreciendo así una víctima que el antyrigoyenismo pudo explorar en su favor271.

Nas eleições parciais de 1930, os socialistas independentes venceram na capital, os conservadores em Córdoba e os antipersonalistas em Entre Ríos.

Os adversários do presidente, percebendo o declínio de prestígio, decidiram recorrer à força e a uma conspiração liderada pelo General José Félix Uriburu. Entre os oficiais figuravam Descalzo, Perón, Sarobe e Sosa Molina; entre os civis, o maior entusiasta era Lugones, que se precipitou ao escrever uma proclamação revolucionária, mas foi logo desestimulado.

O presidente, embora ciente do movimento, negou-se a tomar qualquer atitude contra o complô e renunciou em 6 de setembro de 1930. Instalou-se então um governo provisório, pondo fim à primeira democracia argentina.

Em 10 de setembro a Corte Suprema de Justiça reconheceu o governo provisório instalado,

[...] anunciando simplemente que controlaría la observancia de la Constitución (que también invocaban quienes la había violado), tal como lo haría con un gobierno constitucional. Unos años más tarde, en 1933, la Corte aumentó las

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competencias del gobierno de facto autorizándolo a dictar decretos-leyes, es decir, a desempeñar funciones legislativas272.

Tudo isso deu origem aos governos de fato na Argentina. Quase um terço da vida institucional dessa república tem sido caracterizado por governos de fato. A Suprema Corte273 concedeu a tais governos o status de legítimos, o que fragiliza o papel da Constituição no País. Com essa proclamação, sucederam autoridades de fato à margem da Constituição. A instalação de governos de fato é uma marca do governo argentino. Em seguida, o Congresso foi dissolvido, alguns juízes afastados e Yrigoyen, preso.

Entretanto, no novo governo havia duas tendências: uma liderada pelo General Uruburu, empenhado em modificar a Constituição nos moldes do corporativismo europeu; outro pelo General Justo, apoiado por setores conservadores moderados, antipersonalistas e socialistas independentes, dispostos a manter as estruturas liberais. A força política de Uruburu desgastou-se logo depois das eleições em Buenos Aires, em que foi vencido pelos liberais, o que o levou a convocar eleições gerais, vencidas pela tendência liderada pelo General Augusto P. Justo, eleito presidente em fevereiro de 1932, tendo com vice Julio A. Roca.

Os anos seguintes foram caracterizados pelo reordenamento administrativo e financeiro. Criaram-se o Banco Central, o imposto sobre a renda e grandes obras públicas, sobretudo em matéria de sistema viário e de urbanismo. Verificou-se na Argentina uma crescente opção por regimes autoritários e nazi-fascistas, fenômenos que ocorriam em escala mundial. Porém, o Presidente Justo “frenó tales intentos, y presentó la opción entre el facismo o su propia democracia ficta. En el Senado, Lisandro de la Torre” candidato derrotado nas eleições contra Justo,

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VALDÉS, Ernesto Garzón. Op. cit., p. 62.

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Vejamos a íntegra da proclamação da Corte argentina: “Que ese Gobierno se encuentra en posesión de las fuerzas militares y policiales necesarias para asegurar la paz y el órden de la nación, y por conseguinte, para proteger la libertad, la vida y la propiedad de las personas, y há declarado, además, en actos públicos, que mantendrá la supremacía de la Constitución y las leyes fundamentales... Que el Gobierno provisional que acaba de constituirse en el país es, pues, un gobierno de facto, cuyo título no puede ser judicialmente discutido con éxito... Que ello non obstante, si normaliza la situación, en el desevolvimiento de la acción del Gobierno de facto, los funcionarios que lo integran desconocieram las garantías individuales..., la administración de justicia... las restablecerá en las mismas condiciones y con el mismo alcance que lo habría hecho con el Poder Ejecutivo de derecho”.

[...] realizó una labor opositora transcendental, y sobre todo a través de la investigación del comercio de carnes, produjo el último debate parlamentario memorable. Éste culminó con el asesinato, en pleno recinto del Senado, de su correligionario el senador Enzo Bordabehère, bajo vehemente sospecha de complicidad oficial274.

As tendências políticas se radicalizaram e muitos estudantes ingressaram na luta cívica ou na esquerda. Do lado dos radicais, um grupo denominado FORJA (Fuerza de

Orientación Radical de la Joven Argentina), vinculado à UCR, formado por Del Mazo,

Dellepiane, Jauretche, Scalabrini Ortiz, que era contrário à política econômica pró- Inglaterra275, imaginou que poderia obter o apoio do nazismo para combater o predomínio econômico inglês, mas acabaram por derivar para o peronismo.

No entanto, o fascismo teve mais seguidores e constituiu uma nova tendência, chamada nacionalismo, no qual o amor à Pátria era acompanhado pela fobia antibritânica; eram antiliberais, anti-semitas, aristocratizantes e cooperativistas. Nessa corrente militaram esquerdistas, cooperativistas e intelectuais. Como exemplo da incongruência política argentina, destaca-se a figura de Leopoldo Lugones, proveniente da esquerda. Fundador do Partido Socialista, manifestava profunda desilusão com os políticos, aos quais atribuía a culpa por todos os males. Aspirava a uma espécie de milícia que “salvaria a Pátria”, representada pelo exército; pouco antes de seu suicídio, aproximou-se dos fascistas.

As eleições presidenciais em seguida foram marcadas pela fraude, tanto que o líder conservador Emilio J. Hardoy, antes de morrer, pediu perdão ao povo276. Venceu a aliança “Concordancia”, formada por antipersonalistas e conservadores, tendo sido eleito presidente Roberto Ortiz e vice o conservador Ramón Castilho. Mesmo sendo um produto da fraude, Ortiz logrou êxito ao implementar políticas republicanas, tendo inclusive promovido intervenção na província de Buenos Aires, cujo governador, Manuel Fresco, era pró-fascismo. Porém, enfermo, veio a falecer, assumindo seu posto o vice Castilho, que

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SANGUINETTI, Horacio. Op. cit., p. 366.

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Ante a crise mundial, a Inglaterra, principal parceira comercial da Argentina, deu prioridade a suas colônias e ex-colônias. Pelo Pacto de Ottawa (1932), concedeu prioridades de comércio aos países do Império Britânico e limitou os argentinos à possibilidade de colocar carne naqueles mercados. Para restabelecer o vínculo comercial com a Inglaterra, firmou-se o Tratado Roca-Runciman, sobre o comércio de carnes, que assegurou aos britânicos relações de país semicolonial com a Argentina.

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dando ênfase à tônica de seu partido, foi derrubado pelo golpe de 4 de junho de 1943, quando assumiu o poder o General Edemiro Farrel.

No plano mundial, a Segunda Guerra já dava sinais da vitória dos aliados contra o eixo Alemanha-Itália-Japão, o que levou as autoridades argentinas — nem sempre com objetivos claros – a declarar guerra à Alemanha. Nesse período firmou-se no poder o Coronel Juan Domingos Perón, Ministro do Trabalho e da Previdência, que, aproveitando- se do clima político favorável interna e externamente, proporcionou melhorias às camadas mais pobres da população, principalmente aquelas que deixavam o campo e migravam para as cidades. Perón teve apoio dos “descamisados” e estruturou o sindicalismo vertical. Com esse apoio foi eleito presidente em 1946 e governou pela via antiliberalismo, perseguindo com rigor seus adversários. Foi um governo populista, que firmou um Pacto denominado Justicialista (nome do Partido de Perón), o qual consistia em uma aliança entre industriais e sindicatos com o objetivo de estabelecer uma política de equilíbrio entre salários e preços e evitar greves.

Em 1949 a Constituição foi reformada, permitindo que Perón fosse reeleito e governasse até setembro de 1955, quando renunciou. O governo “justicialista”277 de Perón entrou em conflito com a Igreja Católica, com os militares e com forças políticas de esquerda.

Com a participação dos Estados Unidos, Perón foi derrubado por um movimento autodenominado “Revolução Libertadora”, da qual um dos líderes era o General Pedro Aramburu. Constitui-se, novamente, um governo de fato.

As eleições de 1958 foram vencidas pelo Presidente Arturo Frondizi, eleito com 49% dos votos, com o apoio velado de Perón e dos peronistas. Derrubado em 1962, sucedeu-o o Presidente de fato José M. Guido, e no ano seguinte foi eleito o radical Arturo U. Illía. Em 1966 instalou-se um novo regime militar, chamado “Revolução Argentina”, encabeçado pelo General Juan Carlos Organía, que, sem ab-rogar a Constituição, criou leis paralelas fundamentais.

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Justicialista foi o nome dado ao Partido de Perón, cujas principais bandeiras consistiam em uma nação socialmente justa, economicamente livre e politicamente soberana.

Em 1971, o General Alejandro A. Lanusseg elaborou um plano eleitoral complexo denominado “Gran Acuerdo Nacional”278, que possibilitou a volta de Perón em 1973, sendo eleito presidente com 62% dos votos. O peronismo aglutinava forças políticas de diversos matizes ideológicos, sobretudo a esquerda campesina e antigos peronistas antiliberais.

Com a morte de Perón, em 1974, assumiu o poder sua esposa, Evita, eleita vice- presidente, mas seu governo foi derrubado por um golpe militar. Iniciava-se ali um período jamais experimentado pela Argentina. Em 25 de março de 1976, a Junta Militar chefiada pelo General Jorge Rafael Videla perseguiu e assassinou os opositores do regime. A Argentina viveu nesse período uma guerra suja.

Em 1981, o País entrou em conflito bélico com a Inglaterra por causa da invasão nas Ilhas Malvinas. O General Leopoldo Galtieri, então presidente, aproveitou-se desse conflito para unificar a Argentina. Mas esta foi derrotada na guerra, que ceifou milhares de vidas em conseqüência de uma atitude irresponsável por parte de seus governantes. No plano político, o regime militar argentino se tornou insustentável, sendo convocadas eleições diretas em 1983, vencidas pelo civil Raúl Alfonsín, da União Cívica Radical.

A transição/consolidação da democracia na Argentina foi mais ou menos semelhante à do Brasil, Uruguai, Chile e Paraguai, entre outros que passaram do regime autoritário para o democrático. Para compreender esse processo é preciso levar em conta as tradições políticas, o corporativismo, o antiliberalismo e as forças sociais como os militares, os sindicatos e a Igreja Católica.

A tentação de um regime autoritário é freqüente no continente latino-americano, como forma de resolver problemas seculares.

No entanto, a experiência democrática argentina acompanha a tendência de estabilidade política no continente latino-americano, tanto que o Presidente Carlos Menen, de tendência peronista, foi eleito em 1989 e reeleito em 1994, sob os auspícios de uma Constituição. Seu governo se caracterizou pelo alinhamento pró-neoliberalismo.

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Nas eleições presidenciais de 1999, a coalizão entre a União Cívica Radical e a Frente País Solidário, movimento de esquerda fundado em meados dos anos 90, elegeu o Presidente Fernando de la Rúa. Este não implementou mudanças consideráveis, conduzindo o País a uma crise de governabilidade aguda, principalmente em virtude das denúncias de corrupção envolvendo seu Vice-Presidente, Chacho Álvarez que renunciou ao cargo. De la Rúa nomeou o economista Domingo Cavallo, que durante 11 anos manteve o peso atrelado ao dólar até provocar um colapso na economia argentina em dezembro de 2001. Nas eleições legislativas que ocorrerem em 2001, De la Rúa previa sua derrota, o que acabou por acontecer. Reapareceu no cenário político Menen e foi eleito senador o ex- governador de Buenos Aires Eduardo Duhalde, ambos peronistas. O candidato governista e ex-presidente Raúl Alfonsin foi derrotado. Em 20 de dezembro de 2000, De la Rúa foi obrigado a renunciar e nas duas semanas seguintes à renúncia a Argentina teve nada menos que cinco presidentes.

Assumiu a presidência o Senador Duhalde, que conseguiu governar o País em meio a uma crise econômica sem precedentes na Argentina. Mas,, em meados de 2002, dois jovens piqueteiros (nome dado aos integrantes de grupos de desempregados) foram assassinados pela polícia. Mais de 30 mil pessoas se reuniram na Praça de Maio para repudiar a repressão policial e a morte dos jovens. Esse fato fez com que Duhalde antecipasse as eleições para abril de 2003. Em 25 de maio do mesmo ano Duhalde entregou o poder ao também peronista Néstor Kirchener.

As primeiras medidas de impacto do novo governo foram: política de direitos humanos, renovação do Supremo Tribunal de Justiça e endurecimento perante o Fundo Monetário Internacional. Até o momento a Argentina tem vivido sob certa estabilidade política.