• Nenhum resultado encontrado

Influenciadas pelas idéias racionalistas, as declarações norte-americanas de Virgínia (1776) e Filadélfia (1787) enfatizavam a preocupação com a estrutura de um Estado Democrático, propugnando a limitação do poder e o reconhecimento de direitos individuais fundamentais. Fábio Konder Comparato aponta três características socioculturais101: a não-reprodução da sociedade estamental européia, a defesa das liberdades individuais e a submissão dos poderes governamentais ao consentimento popular. Este último denuncia clara adesão aos direitos políticos democráticos, que iniciam sua trajetória e se sedimentam ao longo do século XX.

Em sentido moderno a Declaração do Bom Povo de Virgínia de 12 de janeiro de 1776 e, posteriormente, a Declaração de Independência, de 4 de julho de 1776, de autoria de Thomas Jefferson, consagravam os direitos dos homens inspiradas nos escritos de Locke, Rousseau e Montesquieu.

100

LOPES, José Reinaldo Lima. Op. cit., p. 194.

101

Havia na Declaração de Virgínia uma preocupação com os direitos políticos e com a estruturação do Estado no sentido de limitar o poder. Em síntese, os direitos políticos protegidos eram de igualdade e de liberdade. As liberdades eram dirigidas ao processo de eleições freqüentes para o preenchimento de cargos nos Poderes Executivos e Legislativo, à proibição de suspender uma lei ou sua execução, ao direito de defesa em caso de acusação e à liberdade de imprensa e religião. Em relação às limitações do Estado, tem-se: o governo deve existir em função de proteger o povo, proibir cargos públicos hereditários; os juízes são investidos como depositários e servos do povo; os Poderes Executivo e Legislativo são separados e distintos do Judiciário; ao Estado é vedado estabelecer fiança excessiva e castigos cruéis; proíbem-se mandados ou detenção sem especificação exata e prova do crime. Vê-se, assim, que a Declaração representava resistência aos regimes monárquicos que predominaram por séculos na Europa.

Os direitos políticos foram o foco dos primeiros enunciados: o artigo 1 assinala que todos os homens são igualmente livres e independentes por natureza e que nenhum pacto, ou seja, nenhuma decisão política, pode suprimir essa liberdade e independência; no artigo 2 se enuncia a origem do poder, ao estabelecer que todo poder pertence ao povo e por conseguinte dele deriva, anulando qualquer possibilidade de regime estamental; o artigo 3 expressa o controle popular em relação ao governo ruim, uma vez que autoriza a maioria a destituir um administrador inepto ou contrário aos fins estabelecidos, ou seja, garante felicidade e segurança ao povo; finalmente, o artigo 5 estabelece que os Poderes Legislativo e Executivo devem ser separados do Judiciário a fim de que os membros dos dois primeiros possam exercer suas funções transitoriamente e que, para ocupar esses cargos novamente, participem de eleições regulares e periódicas.

A Declaração de 1787 tinha por objeto a formação de uma Federação por meio da qual se estabeleceria uma unidade entre pelo menos nove das treze ex-colônias com a finalidade de

[...] rever os artigos de Confederação e propor ao Congresso e às diversas Assembléias Legislativas estaduais emendas e disposições que, uma vez aceitas

pelo Congresso, e confirmadas pelos Estados, segundo a Constituição Federal, tornar-se-ão adequadas às exigências do governo e à preservação da União102.

Contudo, ocorreu que alguns Estados somente concordariam em aderir ao pacto se fossem introduzidos direitos e garantias fundamentais para o homem. Inicialmente, a Constituição assegurou o

[...] habeas corpus, proibiu as sanções de leis que condenassem sem a devida forma processual (Bill of attainder) e a sanção de leis retroativas e instituiu o júri para os casos penais; mas sem que tivesse presidido a isso uma sistemática enumeração de direitos fundamentais103.

Segundo Cooley, alguns Estados se recusaram a aderir à Declaração alegando que não continha restrições ao poder Estatal. Então, foram acrescentadas oito emendas para “tolher o governo recém-criado de qualquer possibilidade de violar os direitos fundamentais do povo, que devia estar sujeito a sua autoridade”104. Todavia, essas regras de contenção eram aplicadas à União e não aos Estados. Colley informa que as restrições impostas ao governo, pela Constituição e por suas emendas, devem ser interpretadas somente como restrições perante o governo da União, exceto nos casos em que se faz expressa menção aos Estados. Pode-se inferir que de fato as Declarações americanas têm caráter mais umbilical, pois as regras repercutiram no interior dos Estados Unidos e prescreviam forte resistência em relação à Coroa inglesa. O temor era o de repetir no Estado recém-liberto as mesmas ações encontradas na Inglaterra e na Europa.

Mas nem por isso se pode reduzir a importância das Declarações americanas na construção dos direitos humanos. A Declaração da Filadélfia manteve a forma de Estado e as declarações de direitos do homem, alguns dos quais já previstos na Declaração de Virgínia, e acrescentou outros, formando um rol de vanguarda em termos de direitos fundamentais. Como resultado final tem-se, então, a Constituição dos Estados Unidos da América do Norte: “Observados na forma da lei, os Estados Unidos da América tinham

102

COOLEY, Thomas M. Princípios gerais de direito constitucional nos Estados Unidos da América. Trad. e anotações Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: Russell, 2002. p. 26.

103

Id., p. 28.

104

criado a mais ampla possibilidade democrática do planeta na época da sua independência”105.

A independência americana deflagrou a possibilidade de o indivíduo participar ativamente das decisões políticas dos Estados Unidos. A Constituição não fora o final de uma batalha pela independência, mas o marco inicial na construção de uma sociedade livre. A guerra pela liberdade ceifou mais de 200 mil vidas. A construção de um Estado livre e soberano dependia do homem comum americano. Qualquer cidadão poderia exercer o poder político participando e se legitimando por meio de eleições livre. Konder Comparato revela, ao referir-se à Declaração de Independência norte-americana:

[...] é o primeiro documento político que reconhece, a par da legitimidade da soberania popular, a existência de direitos inerentes a todo ser humano, independentemente das diferenças de sexo, raça, religião, cultura ou posição social106.

Mais uma vez temos a demonstração do enorme desprezo que os americanos tinham pelo regime europeu, pois neste a soberania pertencia ao monarca.

Um episódio interessante marca simbolicamente o regime que emergia nos Estados Unidos. No dia da posse do sétimo presidente americano, Andrew Jackson, de origem mais popular, franqueou-se a entrada de pessoas humildes na Casa Branca, “causando perplexidade entre os grupos tradicionais da cidade, que compararam a posse de Jackson à invasão de Roma pelos Bárbaros. A cerimônia era o símbolo da nova era democrática”107.

Não obstante esses movimentos e as declarações, tanto as inglesas como as norte- americanas, tenham sido o marco de ruptura com um sistema de privilégios estamentais, não foram produzidas mudanças estruturais profundas no mundo. Efetivamente essas declarações transcorriam em um ambiente interno, sem, contudo, atingir uma esfera universal.

105