• Nenhum resultado encontrado

A face interna: o subjetivismo do envelhecer

1.2 A representação imagética da velhice: um trabalho de ourivesaria

1.2.2 A face interna: o subjetivismo do envelhecer

Jean-Paul Sartre afirmou que a velhice é um irrealizável, "uma situação composta de aspectos percebidos pelos outros e, como tal, reificados (um

être-pour-autri) que transcendem nossa consciência"58. Disse o filósofo: "nunca

poderei assumir a velhice enquanto exterioridade, nunca poderei assumi-la existencialmente, tal como ela é para o outro, fora de mim"59.

Por esse pensamento, entende-se que, para uma pessoa, assumir a velhice é despojar-se do olhar com que construiu o seu estar-no-mundo, e aceitar que, em momento indeterminado, passou a integrar um outro olhar, o olhar do outro. No instante em que isso acontece, surge para aquela pessoa a necessidade de administrar "o descompasso manifesto entre o real e o simulacro, entre a imagem retida com carinho e devoção no imaginário privado e a angústia especular resultante da degradação física impressa na efígie que o outro cruelmente revela"60.

57

FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil: à luz do novo Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 281.

58

SARTRE, Jean-Paul (obra não citada) apud BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo, Companhia das Letras, 1999, p. 79.

59

Ibidem, p. 79.

60

AGUSTINI, Fernando Coruja. Introdução ao direito do idoso. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2003, p. 38.

Esse preciso momento é terreno fértil para a literatura, enquanto arte que imita a vida, tendo sido retratado por muitos e grandes escritores:

E foi assim que eu me descobri velho, ao ver a minha imagem refletida no espelho dos olhos daquela moça... Os espelhos são objetos dotados de poderes estranhos. Borges confessou que eles lhe causavam horror. Edgar Allan Poe os cercou de cuidados precisos, e num tratado sobre decoração de casas que escreveu teve o cuidado especial em determinar o lugar em que deveriam ser colocados: nunca numa posição em que uma pessoa pudesse ver sua imagem refletida neles, sem que o desejasse. De um espelho temos de nos aproximar com os devidos cuidados, para evitar o susto. Pois o susto de se ver refletido no espelho, sem se estar para isso preparado, pode ter conseqüências imprevisíveis. [...] Segundo Borges, o terror dos espelhos deve-se ao seu poder de criar, no lado de dentro, um duplo do que existe do lado de fora. [...] O corpo humano se metamorfoseia ao sabor das imagens especulares.61

A verdade é que as primeiras mudanças são tão lentas que mal se notam, e a gente continua se vendo por dentro como sempre foi, mas por fora os outros reparam.62

Tampouco, passou despercebido à poesia. Em destaque, Carlos Drummond de Andrade e Cecília Meireles:

Meu corpo não é meu corpo, é ilusão de outro ser.

Sabe a arte de esconder-me e é de tal modo sagaz que a mim de mim ele oculta. Meu corpo, não meu agente, meu envelope selado, meu revólver de assustar, tornou-se meu carcereiro, me sabe mais que me sei. Meu corpo apaga a lembrança que eu tinha de minha mente. Inocula-me seu patos,

me ataca, fere e condena por crimes não cometidos. 63 Eu não tinha este rosto de hoje,

Assim calmo, assim triste, assim magro, Nem estes olhos tão vazios,

Nem o lábio amargo.

61

ALVES, Rubem. As cores do crepúsculo: a estética do envelhecer. Campinas: Papirus, 2001, p. 21-22.

62

GARCIA MÁRQUEZ, Gabriel. Memória de minhas putas tristes. Trad. Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 13.

63

ANDRADE, Carlos Drummond de. As contradições do corpo. In: O corpo. Rio de Janeiro: Record, 1987, p. 7-8.

Eu não tinha estas mãos sem força, Tão paradas, e frias e mortas; Eu não tinha este coração Que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança, Tão simples, tão certa, tão fácil: - Em que espelho ficou perdida a minha face?64

O tema também recebeu tratamento científico. Uma pesquisa realizada na Inglaterra, a partir da análise de histórias de vida de idosos de classes sociais variadas, constatou que a imagem que eles traçam de sua experiência pessoal é radicalmente oposta à do senso comum. Os idosos que não estão doentes ou emocionalmente deprimidos não se consideram velhos. "Não é o avanço da idade que marca as etapas mais significativas da vida; a velhice é, antes, um processo contínuo de reconstrução"65. A expressão 'I don't feel old' utilizada pelos entrevistados para traduzir sua vivência, e que deu título ao livro66, é um grito para o reconhecimento da singularidade de cada experiência humana.

Demais disso, o envelhecimento não é um trajeto absolutamente previsível. Se é certo que as cãs e rugas denunciam um série de outras mutações para além do invólucro, sinalizando para o declive natural do ciclo biológico humano, também o é dizer que cada pessoa envelhece a seu próprio tempo, haja vista cada existência humana ser única. Como todas as situações humanas, diz Beauvoir, a velhice "tem uma dimensão existencial: modifica a relação do indivíduo com o

64

MEIRELES, Cecília. Retrato. Para ler e pensar. Disponível na Internet: http://www. paralerepensar.com.br/c_meireles.htm#Retrato. Acesso em 28 out. 2005.

65

DEBERT, Guita Grin. A construção e a reconstrução da velhice: família, classe social e etnicidade. In: NERI, Anita Liberalesso; DEBERT, Guita Grin (Orgs.). Velhice e sociedade. Campinas: Papirus, 1999, p. 63.

66

THOMPSON et al. I don't feel old: the experience of later life. New York: Oxford University Press, 1991.

tempo, e, portanto, sua relação com o mundo e com a sua própria história"67. Noutros termos, equivale a dizer que não é o homem que está no tempo, é o tempo que está no homem68.

“Não há velhice e sim velhices. O envelhecimento deve ser considerado um processo tipicamente individual, existencial e subjetivo, cujas conseqüências ocorrem de forma diversa em cada sujeito”69. Está-se falando de heterogeneidade. O fator contemporâneo ou coetâneo, isto é, seja por identidade geracional, seja pela aproximação de idade, não significa que haja similitude na constituição física ou intelectual das pessoas, sobremaneira porque essa condição também varia de acordo com o seu modus vivendi.

E, para reconhecer a preciosidade de uma pedra, é sabido que o interior deve brilhar mais intensamente que a superfície, esta ligeiramente opaca. A luz vem do seu âmago, qual a pessoa que atingiu o apogeu da idade, acumulando um cabedal de conhecimentos, experiências e capacidades.