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2.2 O viver a dor: um olhar antropológico-social

2.2.2 A figura materna

A relação mãe e filho é algo inegavelmente forte e íntimo desde o início. Segundo Maia-Vasconcelos (2003), as mães são a fonte dos seres. Elas dão origem à vida e escondem o filho para si durante nove meses, em um momento de posse extrema. Ainda com o filho no útero, a mãe sente-se como se ela e o filho fossem um único ser. A relação carnal entre mãe e filho é clara e a gravidez é um processo de fusão. Para a autora, o papel da maternidade é bem mais amplo que o da paternidade, porque a mãe produz uma criança, esta pertence a ela, está nela, são dois seres em um só. Porém a sensação de completude é quebrada no parto, com o corte do cordão umbilical. No decorrer da vida, muitas vezes por imposição cultural e social, a mãe passa pela dor desta separação.

A respeito do papel materno, Maia-Vasconcelos (2003) afirma que mãe é alguém que guarda na memória o passado de seus filhos, cada evento, cada movimento e cada desejo. Ela conhece o filho como a si própria, numa espécie de identidade através do outro. Segundo a autora, em um momento de trauma, esta relação tende a ser mais fortalecida ainda, o que pode gerar mudanças de comportamentos e sofrimentos. Em uma situação de sofrimento do filho, a mãe tende a se sentir culpada, em um misto se sentimentos como de amor, ódio, negação e superproteção. Maia Vasconcelos (2003) analisa a relação mãe e filho como uma espécie de espiral que rola no tempo. Assim, quanto mais frágil é o filho, mais a presença da mãe é necessária a seu lado.

Com uma visão mais sociológica, Tourinho (2013) afirma que é culturalmente difundido o ideal da mãe perfeita, construído por cada sociedade, em geral e por cada família,

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Este termo é usado por Bowlby (1997) para tratar da importância da atividade exploratória por parte do indivíduo, a fim de que este habilite seu conhecimento a respeito do ambiente e sobreviva nele.

em particular. Assim, ela salienta que a representação da figura da mãe no seio familiar se caracteriza por ações repetidas de um modelo socialmente apreendido.

Para a autora, o papel materno é idealizado através das gerações. As mulheres se identificam com padrões de comportamento de outras mulheres da família e de sua comunidade, modelados pelo discurso especializado. Assim, depositou-se no ideal da mãe perfeita a responsabilidade pela unidade familiar. A mãe ideal conjugaria perfeitamente sexo, estabilidade conjugal e responsabilidade com os filhos.

Tourinho (2013) cita que se no século passado a figura da mãe denotava uma função mais biológica que afetiva, atualmente, a maternidade é construída no social, apropriada como elemento determinante para o reconhecimento da mulher como indivíduo. A teoria freudiana considera o amor da mãe pelo filho um dos mais perfeitos para a mulher - porque ele se realiza sem a consumação carnal.

Em seu artigo a respeito da idealização e da realidade do papel materno, Tourinho (2013) enumera, com base em estudos históricos, as fases do comportamento da mulher e seu papel como mãe na sociedade ocidental. Segundo autora, até o século XVIII, principalmente entre a burguesia, a criança era vista como um estorvo e era quase sempre entregue às amas para que cuidassem, mesmo que em condições precárias. O número de mortes de crianças, nesta época, era enorme e isto passou a preocupar o estado. Assim, surgiram, de acordo com a teórica, os argumentos para convencer a mulher de seu papel maternal. Estes argumentos foram classificados por Tourinho (2013) como tipos de amor:

I. Amor instintivo: o conceito de amor materno foi assimilado como sendo a maternagem uma característica universal feminina, um dom, um sentimento instintivo e biológico, que todas as mulheres vivenciariam, independente da cultura ou da condição socioeconômica.

II. Amor imaculado: passou-se também a se associar a figura da mãe como colaboradora da religião, dada a figura da Virgem Maria como uma “boa mãe”, um novo aspecto místico é associado ao papel materno. A mãe é agora comparada a uma santa, passa- se a fazer analogias entre a boa mãe e a boa religiosa, de quem se exige sacrifício e reclusão.

III. Amor incondicional: Caracteriza-se pelo incondicional desejo de ser mãe, ou seja, para a realização plena de sua feminilidade, a mulher precisava cumprir a vocação materna. Assim, a família passa a se organizar em torno da criança, principalmente a mãe. Com a saída do pai para o trabalho fora, a mãe, que tinha, em tempos anteriores, apenas a função de gerar, assumiu também o papel de educadora e passou a ter uma função social. Era de responsabilidade da mulher a saúde, o bem-estar dos membros da família, além do

desenvolvimento emocional e do controle dos filhos. A mãe ideal encarregava-se de tudo, suas responsabilidades desempenhavam um papel determinante no futuro de seu filho, se ele se tornasse um criminoso ou apresentasse qualquer tipo de deficiência física ou emocional, já se sabia de quem era a culpa.

O sentimento de culpa está presente ainda hoje em relação à figura da mãe. Devido à pressão social acerca de seu papel como genitora, criadora e educadora dos filhos, a mãe experimenta este sentimento quando sente que exagerou na reação diante de algo que seu filho fez de errado, ou quando percebe que está com a atenção muito mais voltada para outro foco que para o filho. A culpa traz à mãe uma sensação de desconforto e, geralmente, promove uma reflexão, levando-a a agir de maneira diferente. Para algumas mulheres, a culpa não é uma experiência passageira, mas uma companhia constante e desagradável.

Neste trabalho, analisamos o sentimento de culpa incorporado pela mãe, após a perda de um filho. A mãe, muitas vezes, chega a se questionar por que deve sobreviver, já que o filho morreu antes dela. Esta culpa também aparece quando mãe imagina ações e cuidados que poderiam ter sido realizados para impedir a perda. Algumas mães se culpam ainda por sentirem prazer na vida, após da morte de um filho. Prova disso é que, como observamos, quando tratam da superação do processo de luto, procuram também frisar, no discurso, o não apagamento das lembranças da figura perdida.

IV. Amor romântico: advindo de um movimento centrado no casamento por amor, que transformou a esposa na companheira querida e eleita, conferindo status à mulher doméstica. Este tipo de amor criou o lar e recriou o papel da mãe, pois estes eram frutos da associação entre amor, casamento e maternidade. O amor surge como mecanismo de união do casal e estratégia para definição dos papeis a serem representados por homens e mulheres. Mesmo com a presença da experiência sexual masculina exterior, o papel da mãe e o casamento serviam de base de sustentação para a educação moral dos filhos.

Ao analisar os movimentos que influenciaram a construção do ideal materno, Tourinho (2013) reitera que é necessário que se faça uma reflexão a respeito desta utopia sobre a maternidade, pois muitas mulheres adoecem na tentativa de alcançá-lo, deixando de lado sua subjetividade e carregando socialmente o sentimento de culpa.

Em defesa de que o elo afetivo é construído mais de modo social que biológico, a psicóloga Maria Tereza Maldonado (2001) afirma que, a partir dos séculos XVIII e XIX, passou-se engrandecer a posição da mãe como aquela que ama e protege seu filho, cuidando dele por um tempo infindo. Desde então, a imagem cultural da maternidade vem cercada de idealismo e de clichês, tais como: "Mãe é padecer no paraíso", "Mãe ama incondicionalmente

o filho". Para a psicóloga, isso não é a regra, e há uma cobrança da sociedade e da família em relação à mulher, para que esta ame seu filho já a partir do primeiro momento que o vê. Prova disso é o tabu que ainda existe a respeito da rejeição, que algumas mães apresentam por seus filhos em casos de depressão pós-parto. A estudiosa afirma que

por mais intrigante, o amor de mãe pouco difere do amor de pai, irmão, padrasto, madrasta, marido ou mulher. Por mais que as supermães protestem e afirmem que o amor a seus filhos está acima de suas próprias vidas! Isso se deve a razões pouco conhecidas: o instinto materno é um mito e entre os seres humanos não há amor incondicional (...). No plano do amor construído a seus filhos, pai e mãe devem ficar no mesmo patamar. 27

Nossa pesquisa de campo mostrou-nos famílias que têm a figura da mãe como referência de afeto, força e provimento financeiro.

Na obra Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a

partir de uma comunidade, Elias e Scotson (2000) tratam da existência de estereótipos

negativos relacionados ao sexo feminino e da valorização da mulher como agente ativo na sociedade. Ao estudarem as relações sociais existentes entre diferentes grupos de um povoado industrial britânico, em meados do século XX, os autores observaram o papel central exercido

pela figura da “mãe” em algumas famílias. Porém, apesar do aparente papel de destaque na

coesão familiar, as mães acabam tendo um papel secundário em relação aos homens, tendo a missão de cuidar das crianças ou desempenhar funções domésticas.

Segundo os autores, estereótipos negativos da mulher, ligando-as a sentimentos de fragilidade e passividade, chegaram ao Brasil através da tradição ibérica. A partir do século XVIII, com uma sociedade brasileira totalmente patriarcal, ficou cristalizada a ideia de que a mulher deveria reprimir seus desejos e individualidade, aceitando a subalternidade em relação ao universo masculino, em especial ao marido, tendo como tarefa principal a submissão e a geração de filhos.

Elias e Scotson (2000) destacam ainda que, ao longo do século XX, o papel da mulher na sociedade mudou bastante, desconstruindo alguns estereótipos culturalmente implantados. Esta mudança ocorre a partir surgimento dos movimentos feministas, que auxiliaram a conquista de direitos civis, garantindo que as mulheres pudessem exercer outras funções além da maternidade e dos afazeres domésticos. Surge, assim, uma nova forma de organização familiar, com uma relação de direitos mais igualitária entre homens e mulheres.

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Fonte: Mulher chefe de família. In: Maria Tereza Maldonado. Disponível em: <http://www.mtmaldonado.com.br/artigos/mulher_chefe.php>. Acesso em: 28 nov. 2014.

Reforça-se, também, a figura da mulher como chefe de família, porém com o reconhecimento social desta condição.

Hoje, com os problemas sociais, tais como: a violência e a exposição às drogas, a maioria das mães preocupa-se com seus filhos, tornando, muitas vezes, superprotetoras. Este

“instinto materno” tem como objetivo eliminar ameaças que possam colocar em risco a

integridade dos filhos. Porém, devido a fatores socioeconômicos, algumas mães precisam estar o dia todo longe dos seus filhos, deixando-os aos cuidados das escolas, de terceiros ou mesmo sozinhos.

Pudemos perceber que o surgimento do elo afetivo entre mãe e filho, seja de forma instintiva ou fruto da sociabilidade humana, é fator preponderante na formação do caráter e nas relações sociais dos indivíduos. Logo, a quebra deste vínculo, provocada pela ausência permanente de um dos envolvidos, apresenta-se como sinônimo de tristeza e frustração.