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2.2 O viver a dor: um olhar antropológico-social

2.2.1 O contexto familiar atual

Como já dito, nosso trabalho analisa narrativas de vida que refletem as relações familiares, mais especificamente, a relação mãe e filho. Por isso, nesta seção, levantaremos alguns pontos que julgamos necessários a respeito do conceito de família e suas características.

Ao tratarem das práticas cotidianas, nas quais as histórias de vida estão inseridas, Pineau e Le Grand (2012) citam a presença de histórias de vida no universo familiar, as quais podem surgir, inclusive, a partir de uma procura pela memória familiar, quando o indivíduo busca em seu componente genealógico testemunhos, acontecimentos e fatos sociais do passado.

No conhecimento social partilhado, designa-se por família, o conjunto de pessoas que possuem grau de parentesco, laços de sangue entre si, que habitam na mesma casa, formando um lar. Uma família tradicional é normalmente formada pelo pai e a mãe, unidos por matrimônio ou união de fato, e por um ou mais filhos, o que compõe uma família nuclear ou elementar.

Entretanto, nos últimos anos, pudemos ver várias mudanças ocorridas nos planos socioeconômico e cultural, que interferiram na dinâmica da estrutura familiar, provocando alterações em seu padrão tradicional de organização. Hoje, podemos considerar a família um grupo social composto de indivíduos que se relacionam cotidianamente, e que apresentam relações de afeto.

A abordagem de Bourdieu (1987) a respeito do conceito de família está bastante ligada ao conceito de habitus, que consiste, segundo o autor, em um sistema de predisposições que conduz as ações sociais. Assim, a família, enquanto elemento constitutivo do habitus, é uma categoria social objetiva, estruturada pelos próprios agentes familiares; e subjetiva, estrutura que surge do individual para o social, na qual a ação dos agentes familiares segue determinações de estruturação externa. Para Bourdieu (1987), o habitus é o elemento unificador das várias estratégias familiares, biológicas e culturais. que podem variar com o tempo e com o espaço. Assim, é pelo habitus que os membros de uma família estabelecem seus processos de escolhas, objetivos, opções e decisões, de forma interdependente.

Ariès (1981) apresenta um histórico a respeito dos processos de formação e mudança da estrutura familiar e do papel da criança dentro desta estrutura, desde a Idade Média até a Idade Contemporânea. No que diz respeito à formação da família moderna, o autor afirma que esta, diferentemente de séculos anteriores, mostra a necessidade da intimidade e do conforto. Caracteriza-se unida pelo sentimento e pelo costume e organiza-se à parte, em um meio homogêneo, protegendo-se da multidão em habitações previstas para a privacidade.

Na família, os indivíduos obtêm subsídios afetivos e materiais necessários ao seu desenvolvimento e bem-estar. No diz respeito à formação e educação de seus membros, a família possui papel fundamental, pois é nela que os valores éticos, morais, solidários e culturais são absorvidos. A composição do universo familiar é única para cada família.

Osterne (1991, p. 178) compreende o conceito de família como “unidade de

[...] algum lugar que seja “o lar”, “a casa”, “o domicílio”, “o ponto focal” onde se possa desfrutar do sentido de pertencer, onde se possa experimentar a sensação de segurança afetiva e emocional, onde se possa ser alguém para o outro, apesar das condições adversas mesmo independente das relações de parentesco e consanguinidade. Algo que possa ser pensado como o local de retorno, o destino mais certo. Local para refazer-se das humilhações sofridas no mundo externo, expandir a agressividade reprimida, exercitar o autocontrole, repreender, vencer o outro, enfim, sentir-se parte integrante.

Para Kaloustian & Ferrari (1994), a família é o espaço indispensável para a garantia da sobrevivência e da proteção integral dos filhos e demais membros, independente da sua estrutura.

Ao analisar a família contemporânea, Oliveira (2009, p. 71) afirma que “as mudanças societárias afetam a dinâmica familiar como um todo e, particularmente, cada

família, conforme sua composição, história e condições socioeconômicas”. Mais adiante, a autora reitera: “a família sofre influências da sociedade, ao mesmo tempo em que exerce determinadas influências na sociedade.” (OLIVEIRA, 2009, p. 80)

Bilac (1995) faz uma análise sobre as transformações nas estruturas familiares contemporâneas do Brasil, observando que os ciclos das estratégias matrimoniais são construídos, dissolvidos e reconstruídos, segundo as diferentes condições de classe e os estilos de vida diferenciados dos grupos de famílias.

O autor afirma que, nas camadas populares, as estratégias sociais são efetuadas

pela “lógica da reciprocidade”. Ou seja, devido às ameaças de desemprego e falta de recursos, é latente a “estratégia da sobrevivência”. A figura paterna é fluida, pois vários membros

podem ser provedores da casa, tais como: mães ou filhos. Com isto, até mesmo as crianças são levadas a prover algum retorno financeiro para casa, o que as expõe a riscos externos. Segundo o autor, nestas famílias, há contínuos antagonismos como cidadania/exclusão, trabalho/ não trabalho, consumo/ não consumo. Aqui, a marginalidade e a discriminação são reproduzidas quotidianamente, por vários canais: cor, aparência e não acesso aos serviços básicos. Além disso, muitas vezes, a violência e o tráfico de drogas permeiam dentro e fora do ambiente familiar, envolvendo os próprios membros.

Já nas de camadas médias, as estratégias são efetuadas pela “lógica do individualismo”. Ou seja, estas famílias tendem mais ao isolamento físico, à diversificação no

consumo familiar e em uma busca contínua em torno da criação de patrimônio e de novas condições de mobilidade social, inclusive para as gerações posteriores. As crianças acostumam-se a ser o centro das atenções e o aumento dos divórcios e das separações estabelece padrões mais igualitários nas relações de gênero.

Podemos perceber como os fatores sociais podem influenciar, de forma crucial, na (des)organização da estrutura familiar moderna. O rompimento forçado de laços afetivos, ocorridos de forma abrupta, provoca nos membros da família uma alteração em suas vidas e, consequentemente, nas histórias que se conta delas.

Ao observarmos os elos que se estabelecem no seio familiar, recorremos a Bowlby (1997, p. 97) que a respeito dos vínculos entre os seres humanos afirma “a característica essencial da vinculação afetiva é que os dois parceiros tendem a manter-se

próximo um do outro”. Com esta evidência, o autor criou a teoria do comportamento de

ligação25, que diz respeito a qualquer forma de comportamento em que um indivíduo

mantenha a proximidade com outro, diferenciado e preferido, considerado mais forte ou mais sábio. Segundo o autor, a manifestação deste comportamento segue padrões tais como: idade, sexo, circunstâncias e experiências de vida, e possui características específicas, que são:

a) Especificidade: o comportamento de ligação é marcado pela preferência e dirigido a um ou a alguns indivíduos específicos;

b) Duração: uma ligação, geralmente, mantém-se por grande parte do ciclo vital do indivíduo;

c) Envolvimento emocional: a formação de um vínculo envolve emoções intensas. Sua manutenção é sinônimo de segurança, e sua perda significa sofrimento para o indivíduo;

d) Ontogenia: ligação forte com uma figura preferida, que dispensa maior parte dos cuidados ao indivíduo. Um exemplo é a ligação da mãe com o filho até 3 anos de idade.

e) Aprendizagem: se dá no processo de desenvolvimento da ligação, no reconhecimento da figura preferida, com ou sem a presença de recompensas ou punições.

f) Organização: trata da forma como se manifesta o comportamento de ligação, a partir de certas condições. É demonstrada através de diferentes comportamentos no ciclo de vida do indivíduo.

g) Função biológica: dentro de suas especificidades, o comportamento de ligação possui um valor de sobrevivência, ou seja, a proteção contra ameaças externas.

Bowlby (1997) assinala que estudos sobre o comportamento de ligação são feitos usualmente na ligação da criança com a mãe. Nesta relação, podem ser vistos padrões de

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comportamento, além da ligação: a exploração26 e o cuidado. É fato que a intensidade desta relação tende a diminuir na adolescência e na idade adulta, mas o vínculo afetivo persiste.

Por uma questão de delimitação do corpus e de objetivos de pesquisa, optamos por entrevistar mães. Mas isso não supõe que negamos a importância do discurso do luto e a dor como fator marcante na história de vida dos demais membros da família.

Nossa sociedade tem voltado bastante o olhar à estreita relação mãe e filho(s). Há inúmeros estudos no campo da psicologia que abordam este estreito vínculo afetivo. Por conta dos objetivos deste trabalho, sem pretensão à exaustão, julgamos conveniente também tratarmos do papel da figura materna na família e na sociedade em geral.