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2.2 O viver a dor: um olhar antropológico-social

2.2.5 O fenômeno da morte

“Morte é a ausência definitiva” (VARELLA, 2004, p. 07). Com esta assertiva,

Dráuzio Varella, renomado médico brasileiro, especialista em oncologia, inicia sua obra Por

um fio. Segundo o autor, “imaginar a morte como um fardo prestes a desabar sobre nosso

destino é insuportável. Conviver com a impressão de que ela nos espreita é tão angustiante que agonizamos a rotina diária como se fôssemos imortais e, ainda criamos teorias fantásticas

Ariès (2013) realizou um estudo sobre vários aspectos da morte ao longo dos tempos. Segundo ele, na Antiguidade, a morte costumava acontecer em casa. Os doentes permaneciam junto de seus familiares e das crianças até a chegada da morte. Na Idade Média, com a presença de doenças infectocontagiosas incuráveis, a morte passou a ser um acontecimento frequente e cotidiano. As epidemias causavam várias mortes simultâneas, tornando a perda por morte como algo constante e quase banal. O autor afirma que, nesta época, a morte não causava tanta comoção nas pessoas.

Segundo Ariès (2003), até o começo do século XX, a função da morte e a atitude do homem diante dela era praticamente a mesma em toda a extensão da civilização ocidental. Segundo o autor, foi a partir da Primeira Guerra Mundial, em países como os Estados Unidos, que as atitudes tradicionais foram abandonadas e substituídas por um novo modelo do qual a morte foi expulsa. O teórico afirma que o interdito da morte está atrelado à modernidade, aos progressos da industrialização, à urbanização e à racionalidade. De acordo com os sociólogos e historiadores da morte, três fenômenos acompanham o tratamento da morte na modernidade:

I. A ocultação da morte, o seu banimento da sociedade. Tudo ocorre como se a morte não existisse.

II. A transferência para o hospital, onde a morte é escondida. III. A extinção do luto.

Com este movimento de ocultação, a morte passou a não ter sentido, já não se sabe mais o que é a morte, o que há é uma interdição da morte a fim de preservar a felicidade. Segundo Ariès (2003), costumes americanos e da Europa Ocidental tendem a transformar a morte, maquiando-a, mas sem fazê-la desaparecer. Misturam-se comércio e idealismo, fazendo-se dos enterros eventos de publicidade.

Ariès (2003) também trata da mudança de comportamento ocorrida, já a partir da segunda metade do século XIX, no que diz respeito ao local de morte do moribundo. A morte passa a não acontecer mais em casa, ao alcance dos olhos da família, mas no hospital. Assim a agonia da morte passa a incomodar as pessoas, resultando em um enorme distanciamento entre vivos e mortos. O autor acredita que isto talvez tenha influenciado a forma como as pessoas passaram a vivenciar o luto advindo da morte de um ente querido até os dias de hoje. Ele cita que o ritual pós-morte ficou então, limitado ao mínimo necessário e as manifestações aparentes do luto foram desparecendo. Desde então, no próprio círculo familiar ainda se hesita em desabafar para não impressionar as crianças. Ou seja, o luto passou a ser vivido de forma solitária.

Ariès (2003, p. 102) ainda completa que, em nossa época, a morte tornou-se

inominável. “Tudo se passa como se nem eu nem os que me são caros não fôssemos mais

mortais. Tecnicamente, admitimos que podemos morrer, fazemos seguros de vida para preservar os nossos da miséria. Mas, realmente, no fundo de nós mesmos, sentimo-nos não-

mortais”.

Geoffrey Gorer, em seu estudo denominado “Pornography of Death”, reflete sobre

a mudança da função social do luto. Discorrendo a respeito do fenômeno da rejeição e da supressão do luto, Gorer mostra que a morte tornara-se vergonhosa e interdita como o sexo na era vitoriana. Em seu livro Death, Grief and Mourning, Gorer relata que a morte se afastou e o enterro deixou de ser um espetáculo familiar. O autor cita que as crianças não acompanham mais os funerais, mantêm-se afastadas; não são informadas sobre o ocorrido e ouvem dizer que o pai partiu em viagem, que Jesus o levou. Hoje, é hábito dizer às crianças que um ente querido morto “virou uma estrelinha”.

Assim, a partir segunda metade do século XIX, a morte deixa de ser vista como bela e passa a ser indecente, suja e inconveniente como os atos biológicos do homem e as secreções do corpo. Passa a ser imoral torná-la pública, pois a limpeza tornou-se um valor burguês. Deste modo, a morte foi escondida no hospital. Os progressos da cirurgia e os tratamentos médicos prolongados fizeram com que o doente permanecesse no hospital, local que se caracterizará como o local da morte solitária.

Para Ariès (2003), o atual interdito da morte está fundado no puritanismo, em uma cultura urbanizada, na qual dominam a busca da felicidade ligada ao lucro, e a um crescimento econômico rápido.

Em uma de abordagem que se diferencia um pouco dos trabalhos de Ariès, que realiza um estudo histórico em busca da compreensão da atitude do homem diante da morte, Morin (1970) propõe uma reflexão acerca da relação homem-morte.

Em sua obra O homem e a morte (1970), Edgar Morin buscar investigar a complexa relação da adaptação ou inadaptação do homem com a morte. Segundo o autor, “o luto exprime socialmente a inadaptação à morte, mas, ao mesmo tempo, ele é este processo

social de adaptação que tende a fechar a ferida dos indivíduos sobreviventes”. (MORIN,

1970, p.75).

O autor afirma que o homem é a única espécie que acredita na sobrevivência após

a morte, e por isso, acompanha a morte com um ritual funerário. Segundo ele, “não existe

abandone sem ritos” (MORIN, 1970, p. 25). Isto ocorre porque temos a necessidade da

sobrevivência e do prolongamento da vida do morto.

Desde os primórdios, o ser humano tem consciência da morte como um fato, entretanto este reconhecimento vem acompanhado de um horror. O homem teme a morte porque com ela ele perde a sua individualidade, por isso, quanto mais próximo for o morto,

mais violenta será a dor. Morin (1970) chama este processo de “traumatismo da morte” (p.

25).

O autor apresenta, na obra supracitada, um triplo dado antropológico e dialético: traumatismo da morte, consciência da morte e crença na imortalidade, este conjunto se caracteriza, genericamente, como consciência humana da morte. Segundo o filósofo, “estes três elementos permanecem absolutamente associados no seio da consciência arcaica. A unidade deste triplo dado dialético não é somente a consciência realista da morte, é a

impressionante implicação da individualidade” (MORIN, 1970, p. 34).

Para Morin (1970), o traumatismo da morte caracteriza-se pela emoção, o sentimento de ruptura e o horror frente a um vazio, onde havia uma plenitude individual, portanto, é uma consciência traumática e realista frente ao fato da morte, cujo conteúdo é vazio, impensável e inexplorável. Morin (1970) afirma que este traumatismo separa a consciência da morte da aspiração à imortalidade. Ou seja, o traumatismo contrapõe o fato brutal da morte à afirmação de sobrevivência, tornando mais real a consciência da morte e o apelo à imortalidade.

Ao tratar deste aspecto triplo, o teórico afirma que “é notável constatar que nenhuma sociedade, inclusive a nossa, conheceu ainda a vitória absoluta, seja da imortalidade, seja da consciência desmitificada da morte, seja do horror da morte, seja da vitória contra o

horror da morte” (MORIN, 1970, p. 36).

Morin (1970) ainda destaca que a morte apresenta-se para o homem como algo

irreal, “incrível”. Daí surge o termo cegueira em relação à morte. O autor afirma que a consciência da morte não é algo inato, mas produto de uma consciência e de uma experiência do real. Segundo Morin (op. cit.), o renascimento do morto é uma crença universal que ainda está presente na humanidade contemporânea, isto se dá porque o homem tende a acreditar na própria imortalidade. Um exemplo contemporâneo desse comportamento é transferência de nomes de antepassados mortos aos recém-nascidos. Segundo o filósofo, as práticas das cerimônias funerárias têm como objetivo iniciar o morto para sua vida póstuma. Esta crença no renascimento remete-se para outra crença que é a manifestação do duplo, através do qual o indivíduo pensa assegurar sua vida após a morte.

O duplo é defendido por Morin (1970) como uma espécie de alterego, que a pessoa sente ao longo da sua vida, ou seja, não é uma cópia, mas uma realidade. Assim, o luto e os tratamentos funerários têm como objetivo garantir a sobrevivência do duplo. Nas sociedades arcaicas, o duplo está ali, enquanto a pessoa dorme, e se manifesta também através da sombra e do reflexo. Segundo o autor, os homens alimentaram ao longo do tempo certo medo do duplo e, por isso, rendem-lhe culto.

Para Morin (1970), o surgimento do espiritismo como doutrina é um exemplo de

crença no duplo, e sobre isto completa afirmando que “não é mais que a teoria e a prática experimental das relações com o duplo, com ou sem a interposição dos médiuns”. (MORIN,

1970, p. 152). O teórico assevera que a decadência do duplo tem como explicação a urbanização, que vai caracterizar o progresso da consciência de si. A partir daí surge a ideia de alma, o duplo interiorizado, uma identidade subjetiva e não mais exterior.

A salvação, adquirida através da imortalidade é analisada por Morin em várias culturas. De todas as religiões, a que focaremos para o presente trabalho é a cristã. Segundo o autor, esta é a última religião de salvação e será a que mais fortemente se manifestará contra a morte, através do apelo da imortalidade individual e do ódio da morte. O autor afirma: “Essa religião será unicamente determinada pela morte; Cristo resplandece em torno da morte, só

existe para e através da morte, carrega a morte, vive da morte” (MORIN, 1970, p. 194) Logo,

a morte está no cerne do cristianismo.

De acordo com Morin, está em marcha uma verdadeira luta contra a morte. Assim caminha o homem, entre o indefinido e o infinito. “Nada está realmente aberto, nada está

realmente fechado. Uma nova aventura é possível” (MORIN, 1970, p. 327).