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A Filosofia da Linguagem: O “Segundo” Wittgenstein e Quine

CAPÍTULO I – DA FILOSOFIA PRIMEIRA AO NATURALISMO – IMPACTOS NA

3. A Filosofia da Linguagem: O “Segundo” Wittgenstein e Quine

Indiquei anteriormente que o projeto cartesiano redundou numa concepção absoluta de objetividade, insuficiente para derrotar o desafio cético. Para tanto, a filosofia deveria adentrar ao terreno ao qual o cético está habituado: o terreno da linguagem. Na explicação de Claudio Michelon Júnior, o calcanhar de Aquiles do cético está na “sua pretensão de que as coisas que diz façam sentido e, é necessário sublinhar – esta não é uma pretensão contingente para quem quer falar sobre algo – ao contrário, é uma pretensão necessária” (2004, p. 136).

Foi na metade do século XX, que a abordagem filosófica de Frege, Moore e Russell criou as raízes do positivismo lógico. A Segunda Guerra Mundial dispersou os filósofos mais talentosos do continente e muitos se estabeleceram em universidades da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, espalhando as suas opiniões e influenciando gerações de filósofos que estariam por vir. No entanto, a tradição analítica manteve um traço forte de críticas internas, e alguns dos seus pilares já estavam sob certa desconfiança dos membros do Círculo de Viena, como Otto Neurath e Karl Popper.

Duas figuras ganharam destaque: o segundo (ou mais maduro) Ludwig Wittgenstein158 e Willard Van Orman Quine desafiaram a “visão recebida” da filosofia da linguagem e

158 O conjunto da obra de Wittgenstein é divido, pelos intérpretes, em duas fases bem distintas, de tal forma que se pode falar de um “primeiro Wittgenstein” e de um “segundo Wittgenstein”. O “primeiro” corresponde ao Tractatus Logico-Philosophicus (1921) e o “segundo” às demais obras. Muitos filósofos da linguagem avaliam a obra de Wittgenstein, como se os seus pontos de vista anteriores fossem totalmente diferentes e incompatíveis, enquanto outros insistem que há uma forte continuidade de temas e métodos. Apesar de seus primeiros trabalhos terem sido amplamente mal compreendidos no momento, não pode haver dúvida de que algumas mudanças importantes ocorreram, e estas são dignas de nota aqui.

serviram como figuras transitórias para as visões contemporâneas, tanto na filosofia como no direito. Por meio deles, uma nova concepção de objetividade começou a ser delineada: uma objetividade que depende de nós mesmos, isto é, uma noção que é determinada pela experiência e cuja verdade depende, sobre tudo, da sua aceitação, o que não se dá por um processo racional deliberativo, mas pelo simples fato de partilharmos a mesma forma de vida.

Nas postumamente publicadas Investigações Filosóficas (1953), Wittgenstein rompeu com algumas das aspirações teóricas da filosofia analítica da primeira metade do século XX. Onde filósofos analíticos de linguagem tinha se esforçado para desenvolver sistemas lógicos, as Investigações sugerem que língua é, na verdade, um conjunto de “jogos de linguagem”, isto é, atividades sociais dirigidas, para as quais as palavras eram apenas ferramentas para fazer as coisas, ao invés de componentes fixos de uma estrutura lógica. Representação, denotação e retratação são alguns dos objetivos que podemos ter ao jogar um jogo de linguagem. Essa virada na filosofia de Wittgenstein inaugurou uma nova preocupação com as dimensões “pragmáticas” do uso da linguagem. Falar da importância pragmática de uma expressão é considerar como apreendê-la na manifestação ou o direcionamento de ações e, assim, voltar a atenção para o uso em vez de noções abstratas de forma lógica comum a formas anteriores de filosofia analítica. A visão de que “o significado é o uso159”, foi muitas vezes atribuída a ele, embora as interpretações deste ponto de vista tenham variado muito. Mas pode-se dizer com segurança que Wittgenstein rejeitou uma imagem da linguagem como uma espécie lógica e individual para retratar os fatos, inserida numa preocupação para com as suas dimensões pragmáticas. Não se pode olhar para a dimensão representativa da linguagem sozinha e esperar entender qual é seu significado.

Um segundo grande desenvolvimento no trabalho posterior ao Tractatus de Wittgenstein foi seu tratamento de regras e cumprimento das regras. Afirmações sobre significado tem certo domínio sobre nossas ações, mas não do mesmo tipo que uma “lei da natureza”. Afirmações sobre o significado refletem normas de uso e Wittgenstein argumentou que isso fez com que a própria ideia de uma “linguagem privada” fosse considerada absurda160. Por isso, não seria possível ter uma linguagem cujos significados

159É esse “significado-em-uso”, ou seja, essa prática de reconhecimento do uso correto das palavras, que serve de base para a teoria do segundo Wittgenstein, do mesmo modo que a prática social ou a regra de reconhecimento o fora para Hart.

160 Se um idioma fosse privado, então a única maneira de estabelecer significados seria por alguma forma de ostensão privada, isto é, aprendendo ao ouvir a palavra a ser aplicada em determinada circunstância. Por

fossem acessíveis apenas ao falante desta língua. Grande parte da filosofia moderna foi construída sob um modelo cartesiano que fundamentava a linguagem pública com base em eventos privados, o que implicava que muito do alcance inicial da linguagem também fosse privado. O problema, para Wittgenstein, é que seguir uma regra para o uso de uma expressão, apelar para algo privado não será suficiente para conhecer uma linguagem. Assim, uma linguagem inteligível para apenas uma pessoa seria impossível, porque seria impossível para o falante estabelecer os significados de seus sinais putativos. Para aliviar essa dificuldade, Wittgenstein voltou sua atenção para o reino dos fenômenos públicos, e sugeriu que aqueles que fizessem os mesmos movimentos com as regras compartilhassem uma “forma de vida”, que mais têm levado a ser uma de cultura ou a soma total das práticas sociais em que se participa. A geração subsequente de seria profundamente influenciada por este argumento, incluindo no âmbito do direito, como se nota na obra O Conceito de Direito, de H.L.A. Hart. A ideia de aceitação e compartilhamento de uma “forma de vida” se torna essencial para seu conceito de objetividade do direito, posto que, ele próprio, é parte da nossa perspectiva.

Willard Van Orman Quine também formulou críticas incisivas ao positivismo lógico precedente. Inaugurou a discussão de tópicos da filosofia analítica e elaborou desafios aos novos paradigmas da ontologia e da epistemologia nos anos 1970. Para Quine, o que “falhou” no projeto epistemológico para a ciência até então, foi a tentativa de aplicar uma concepção geral de análise filosófica puramente formal, prosseguindo-se tal método analítico também em outras áreas do conhecimento, inclusive no direito.

A componente central do arsenal filosófico do Círculo de Viena, a distinção analítico- sintético, foi fortemente criticada por Quine em seu artigo “Dois dogmas do Empirismo”, de 1951. Sem um domínio de verdades analíticas (verdades que são a priori e em virtude do significado), torna-se claro que o domínio da reflexão filosófica permanece. Se todas as afirmações são, em princípio, passíveis de revisão à luz das evidências empíricas, então, pergunta Quine, por que não explicá-las por meio das ciências empíricas? A filosofia

exemplo, ocorre ostensão quando me concentro em minha experiência privada, dizendo: “vou chamar esta sensação de ‘dor’”. Mas, para estabelecer o significado de um sinal, alguma coisa deve imprimir no falante uma forma de utilizar corretamente o sinal no futuro, ou então a ostensão putativa não terá nenhum valor. Assumindo que começamos com um evento privado, o que poderia estar acontecendo com os usos subsequentes ao longo do tempo? Não podemos simplesmente dizer que ele sente o mesmo para nós como sentiu antes, ou golpear-nos da mesma forma, para esses tipos de impressões comuns, mesmo quando cometemos erros e, portanto, não podemos constituir correção. Pode-se dizer que só tem que se lembrar de como aquele o sinal foi usado no passado, mas isso ainda nos deixa querendo saber o que ele foi. O que é uma lembrança nesse caso? Até que digamos como um episódio privado poderia estabelecer um padrão de uso correto, a memória é colocada de lado.

estaria fora do negócio, exceto, talvez, como o abstrato e reflexivo ramo da ciência empírica.

E se os juízos analíticos se foram, assim também a análise conceitual: uma vez que qualquer a defesa da análise conceitual é vulnerável às demandas a posteriori de construção teórica, a filosofia deve proceder em conjunto com a ciência empírica, e não como o árbitro de suas afirmações, mas como uma tentativa reflexiva em clareza sinóptica sobre o estado do conhecimento empírico. Embora esteja pisando no mesmo terreno do cético, Quine prefere abandonar o seu desafio. Seu objetivo não é colocar as grandes questões, como tradicionalmente compreendidas pela epistemologia e dar-lhes respostas diretas no estilo da filosofia tradicional, mas transpô-las para uma chave metodológica diferente. Esta “nova chave” é o que Quine chama Naturalismo161 (LEITER, 2007a, p. 176).

161 O naturalismo, assim como o pragmatismo, procura aplicar os métodos das ciências empíricas para explicar eventos naturais sem referência a causas sobrenaturais; ele deduz valores éticos da experiência humana, sem fundamentos teológicos. Suas raízes mais antigas remontam aos filósofos pré-socráticos, que evitavam explicações ocultistas na busca por causas materiais. Tais pensadores incluíam Tales, Demócrito, Leucipo, entre outros. Até mesmo Aristóteles, que tentou usar a ciência de seus dias para explicar a natureza por referencia a causas observacionais. O naturalismo envolveu uma grande gama de pensadores, incluindo Epicuro e Lucrécio, Spinoza e Voltaire, Galileu e Darwin. Também a filosofia moderna concentrada na epistemologia da ciência, em reconhecimento da importância da ciência em desvendar os segredos da natureza, de Bacon a Hobbes, de Locke a Hume, de Kant a Russell. Também foi tema dominante na filosofia norte-americana contemporânea. Dentre os naturalistas mais influentes tem-se John Dewey, George Santayana, na primeira metade do século XX e continuou na segunda metade do século passado com filósofos como Ernest Nagel, Sidney Hook, Hilary Putnam, Donald Davidson, Daniel Dennet, entre outros (KURTZ, SHOOK, 2009, pp. 07-08).

Não é raro encontrar na filosofia norte-americana obras que procurem aproximar o naturalismo do pragmatismo, dada a quantidade de elementos teóricos compartilhados por ambas as teorias, especialmente no que se refere aos seus principais questionamentos. Como bem descrito por Keneth Ching, “Simply put, pragmatism asks: “What practical difference does it make to us?” The incorporation of naturalism into pragmatism can be seen in that naturalism similarly requires that for phenomena to be considered a fact, it must “make a practical difference to us” by making a causal difference in the course of our experience”(CHING, 2012, pp. 65-66).

O naturalismo representa o reconhecimento, pela filosofia, do poder dos métodos da ciência. Tal ponto de vista não pressupõe uma solução dos “problemas de demarcação”. Tais problemas dizem respeito ao escopo e aos limites do conhecimento humano: existem razões de princípio para se pensar que o conhecimento seja uma aspiração razoável somente em conexão com alguns tipos de investigação? Qual a melhor forma de se tentar obter conhecimento? Podem nossos métodos ser melhorados? Em suma, tratam-se dos problemas sobre o que demarca a ciência genuína de pseudociência, uma vez que há casos claros e paradigmáticos das ciências de sucesso. Na verdade, a filosofia naturalista surge como “tentativa de compreender o crescimento do conhecimento científico” (KITCHER, 1992, p. 56).

Philip Kitcher atribui o ressurgimento naturalismo no século XXI ao estudo da epistemologia pós-Frege. Para Kitcher, a epistemologia pré-Frege estudava o conhecimento humano como parte da ordem natural, usando uma linguagem psicológica que parecia singular e repugnante para os ouvidos do início do século XX. Mas, depois de quase um século de eclipse, os naturalistas voltaram, fazendo campanha em favor da relevância da psicologia e da biologia para a epistemologia e negando (em contraste com a maioria de seus ancestrais pré- fregeanos) a possibilidade de um conhecimento a priori. O naturalismo tradicional, para Kitcher, é o herdeiro óbvio da epistemologia pré-Frege, porque preserva o ideal de um projeto “melhorativo”. Enquanto filósofos tendiam a ver o caráter normativo da epistemologia como um lugar-comum, a tendência intelectual mais geral da época era a de considerar as afirmações de normatividade como “antediluvianas”. Muitos intelectuais contemporâneos percebem que temas como “analítico”, “filosofia pura”, entraram em colapso.

Assim, quando Quine, como estamos prestes a ver, argumenta que a convenção e analiticidade não podem ter o papel que Carnap lhes atribuiu na construção do conhecimento, ele não está apenas discutindo, como ele afirma explicitamente, que não existem limites claros entre o a priori e o empírico ou entre o filosófico e o científico; ele está questionando a própria ideia de que não é tarefa da filosofia explicar o que é que torna possível o conhecimento. Ao mesmo tempo, Quine, em certo sentido, restaura algo da filosofia tradicional: não há um princípio geral que descarte as questões metafísicas. Por outro lado, ele ignora o tipo de tarefa filosófica que Kant havia colocado no centro do que torna possível o conhecimento. Estes pontos são os dois lados da mesma moeda fisicalista/fenomenalista: se não há nenhum critério geral para explicar o que torna uma afirmação objetiva, então devemos esperar que a legitimidade cognitiva ou teórica dos conceitos filosóficos tradicionais e preocupações seja decidida casualmente; não de uma forma filosófica peculiar, mas de forma que seja, em princípio, contínua com a ciência em geral. Como Quine viria a colocá-lo, não há “Filosofia Primeira”, no sentido estabelecido por Descartes. A filosofia ocorre in medias res, ou seja, no meio das coisas.

O trabalho de Quine é representativo das dificuldades de coordenação de uma concepção fisicalista e ao mesmo tempo fenomenalista do mundo162. Além de ser o seu estudo epistemológico ponto de partida para o projeto de naturalização de Brian Leiter, é interessante o seu estudo por que representativo de um período de transição entre uma nova e distinta compreensão epistemológica do mundo, representada no direito pelo desenvolvimento da teoria do direito a partir do positivismo metodológico de H.LA. Hart

Eles concluem que esta é a morte da filosofia, e que a sucessão passa diversas vezes pela história, sociologia, ou teoria literária (KITCHER, 1992, pp. 113-114). Contra a suposição de que tenha havido um retorno ao naturalismo ver Feldman (2012, pp. 271-296).

Apesar de simplória a definição do naturalismo, para David Papineau a maioria dos filósofos contemporâneos aceita o naturalismo caracterizado apenas da forma acima indicada: rejeitam entidades “sobrenaturais”, e permitem que a ciência seja um caminho possível (se não necessariamente o único) para verdades importantes sobre o “espírito humano”. Seria inútil, para Papineau, tentar decidir alguma forma oficial para entender o termo. Diferentes filósofos contemporâneos interpretam o “naturalismo” de forma divergente. Este desacordo sobre o uso do termo não é por acaso. Para melhor ou pior, o “naturalismo” é amplamente visto como um termo positivo em círculos filosóficos (PAPINEAU, 2009).

162Essa dificuldade é apontada também na avaliação de Roger Gibson: “Briefly stated, physicalism is the view that whatever traits of reality are worthy of the name can be described, if at all, in terms of objective physical-state predicates. A contrary view is phenomenalism, the doctrine that statements about physical objects can be completely analyzed into statements about actual and possible sense data and logico- mathematical auxiliaries. Quine qualifies as a physicalist according to the above characterization of that view, and he has never been a phenomenalist in the sense just explained. At one time in his career, however, Quine flirted with a lesser form of phenomenalism. In some of his essays of the late 1940s and early 1950s notably, “On What There Is” (1948), “Identity, Ostension, and Hypostasis” (1950), and “Two Dogmas of Empiricism” (1951). Quine manifested a certain tolerance for what might be called mitigated phenomenalism (GIBSON, 1986, p. 154).

até o projeto de naturalização da teoria do Direito desenvolvido por Brian Leiter, objeto da presente tese.

Em que pese a influência (e muitas vezes declarada) de Wittgenstein na teoria contemporânea do direito, há traços do pensamento quineano dispersos na obra de H.L.A. Hart e de Ronald Dworkin que merecem nossa atenção. Em Hart, a ideia de regularidade de comportamento enquanto “padrão de comportamento”, a importância dada aos pontos de vista interno-externo são alguns elementos de potencial identificação da linguagem do positivismo hartiano ao naturalismo de Quine. Em Dworkin, o holismo da rede de crenças de Quine está presente na ideia de romance em cadeia. Acredito que tais autores foram capazes de extrair os melhores elementos do naturalismo quineano para a teoria do direito, algo que causa grande desconforto em Leiter, como se verá no próximo capítulo.