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O abandono do desafio cético e o novo fisicalismo

CAPÍTULO I – DA FILOSOFIA PRIMEIRA AO NATURALISMO – IMPACTOS NA

4. A epistemologia naturalizada de Willard Van Orman Quine

4.3 O abandono do desafio cético e o novo fisicalismo

anteriores? A resposta pode variar: o tradutor não pode simplesmente atribuir à sua tradução crenças estranhas, sempre que conveniente; caso contrário, ele poderia tomar o enunciado nativo de “Gavagai!” como significando qualquer coisa que lhe agradasse. Para ele, deve haver um equilíbrio a ser alcançado entre a simplicidade e a naturalidade da tradução e da atribuição de uma crença inteligível. No entanto, não há nenhuma razão geral para esperar uma maneira excepcionalmente correta de estabelecer o equilíbrio, e ainda é difícil de ver o que traria tal equilíbrio correto, que não o julgamento intuitivo do tradutor, haja vista que a intuição, aqui, funciona como informação empírica sobre como o mundo funciona.

O que Quine quis dizer com isso? É preciso ter em mente que sua tarefa era descobrir a base objetiva da tradução – não explicar como entender um falante de uma língua (KEMP, 2006a, p. 58). Ele quis demonstrar que a indeterminação da referência e da tradução em geral é parte de uma teoria maior sobre os limites da tradução linguística. A tradução caminha lado a lado com nossos juízos de conveniência, de nossa observação dos estímulos de significado, o que não quer dizer que a tradução seja um empreendimento inviável ou, no mínimo, problemático. Caso contrário, nunca poderíamos saber se realmente estamos nos comunicando. O que o argumento realmente mostra, então, é que quaisquer supostas diferenças semânticas entre esquemas de tradução incompatíveis não são importantes, pois, desde que as traduções sejam confirmadas empiricamente, então não há nenhum sentido em que poderia estar errado (KEMP, 2006b, p. 30). Se a correspondência de significados de estímulo é o único teste objetivo para a tradução, então, um holismo epistemológico implica a indeterminação da tradução.

Ao denunciar a indeterminação da tradução, Quine pretende sustentar seu argumento de que relação fundamental entre a linguagem e o mundo não é referencial, mas uma relação causal entre estímulos sensoriais e a disposição para afirmar sentenças207. Este é o tipo de relação que é estável, público e diretamente transmissível.

4.3 O abandono do desafio cético e o novo fisicalismo

207Na explicação de Gary Kemp: “Here there is a causal relation between sensory stimulation and theory, primarily a neurological one. Naturalized epistemology is the study of that exceedingly complex relation. It is philosophical – in the sense that its concern is a highly abstract one about knowledge – but it is still science: It is part and parcel of empirical science itself ... The motivation is still philosophical, as motivation in natural science tends to be ... Unlike the old epistemologists, we seek no firmer basis for science than science itself; so we are free to use the very fruits of science in investigating its roots. It is a matter, as always in science, of tackling one problem with the help of our answers to others (KEMP, 2006a, p. 71).

Quine, juntamente com alguns outros filósofos do século XX208, que normalmente têm sido associados com os movimentos filosóficos do positivismo lógico, o empirismo lógico ou empirismo científico, sustentaram a tese da unidade da ciência. Esta tese é, por vezes, concebida como tendo duas partes: a tese do fisicalismo e a tese de extensionalidade. Carnap, que era um proeminente defensor da unidade da ciência, considerou que o fisicalismo é a tese em “que cada termo descritivo na linguagem da ciência (no sentido mais amplo, incluindo as ciências sociais) está conectado a termos que designam propriedades observáveis das coisas”. Este ligação é de tal natureza que uma sentença que aplique o termo em questão é intersubjetivamente confirmável por observações. Esta caracterização do fisicalismo pode ou não ser compatível com a versão quineana dessa mesma tese, dependendo de como se interpreta o termo “conexão” que aparece na caracterização de Carnap mencionada anteriormente. Afinal, seria a conexão holística, tal como pretende Quine, ou reducionista, como pretende Carnap?

De qualquer modo, aqui a ideia geral transmitida por Carnap é consistente com a visão de Quine. É essencial para ele que fosse possível formular uma linguagem única para a ciência, uma linguagem artificial em termos da qual as interconexões entre os diferentes ramos do conhecimento pudessem ser identificados e explicados e tornasse possível uma única resposta unívoca para o a questão ontológica, “O que há?” (KEMP, 2006b, p. 100). Esta ideia geral é de que a linguagem da física pode ser tornar a linguagem universal de toda a ciência, incluindo a das ciências sociais. Destaca-se o fato de que o fisicalismo, aplicado à psicologia, é a base lógica para o método do behaviorismo, e, além disso, o

behaviorismo visa a eliminação de toda a linguagem intencional da ciência da psicologia.

Assim, o behaviorismo é uma tentativa de fazer psicologia sem o uso de termos como “acreditar”, “desejar”, “querer”. Isso não quer dizer, é claro, que uma linguagem tão universal da ciência, repleta de vocabulário, está sempre à mão. Na realidade, a tese do

208 Um dos maiores exemplos desse movimento está contido no “Manifesto do Círculo de Viena” (1929), em que Otto Neurath marcou o início da “virada cientificista” na filosofia e rotulou a “concepção do mundo científico”. Neurath defendia que “a concepção do mundo científico serve a vida e a vida a recebe”. Aqui, o projeto do empirismo lógico recebe sua dimensão dada desde o Iluminismo, com as velhas ambições reformistas, construtivas e universalistas, mas com ideias e ideais da sociedade, da ciência e da racionalidade revisadas. Neurath continuou a sustentar a visão de que, como ferramentas de previsão, todas as ciências são “ajudas à vida criativa”, ao lado de seu ponto de vista a complexidade da vida, por exemplo, o plano terrestre do mundo empírico, que inclui o ser humano, privado e social. Ele não pode se surpreender, então, que neste novo projeto filosófico-social conjunto transformador, ele insistiria na “meta à frente é ciência

unificada”. Como a própria ciência, a ciência unificada atravessa qualquer divisão entre teoria e ação, o mundo de objetos físicos e o mundo dos objetivos sociais, passado e futuro, a realidade empírica e realização humana. É a unidade da ciência no ponto de ação.

fisicalismo é uma proposta para o desenvolvimento de tal linguagem em que tais termos sejam abandonados no futuro.

A outra parte da tese de unidade da ciência, a tese de extensionalidade, é a outra afirmação de que a língua universal da ciência, quando concluída, será puramente extensional. A linguagem puramente extensional, do tipo imaginado por Quine, seria aquela que contém apenas as construções gramaticais (ou modos de composição), onde em geral: (a) um termo singular pode ser suplantado por qualquer outro termo co-designativo (ou seja, um termo que se refere ao mesmo objeto), sem perturbar o valor de verdade da frase continente; (b) um termo geral pode ser suplantado por qualquer outro termo co-extensivo (ou seja, um termo verdadeiro para os mesmos objetos), sem perturbar o valor de verdade da frase continente; (c) uma sentença componente pode ser suplantada por outras frases do mesmo valor de verdade, sem perturbar o valor de verdade da frase continente.

A tese da unidade da ciência, então, tomada com as teses do fisicalismo e extensionalidade, implica que a linguagem intencional não tem um lugar numa abordagem ideal, puramente científica do mundo. O problema para ele, então, assim como para qualquer defensor da unidade da ciência, é mostrar que as expressões intencionais de psicologia e os idiomas das outras ciências podem ser eliminadas sem prejuízo para a nossa teoria geral do mundo. Mas, afinal, a que tipo de fisicalismo Quine está se referindo?

Mencionei anteriormente que Quine foi um fisicalista que flertou, ao longo de sua obra, com o fenomenalismo209 (GIBSON, 1986). Em breve síntese, o fisicalismo é a visão de

209 Esse flerte é representativo na seguinte afirmação de Quine “Dentre os vários esquemas conceituais mais apropriados a essas várias empresas, um deles – o fenomenalista – reivindica prioridade epistemológica. Encaradas do interior do esquema conceitual fenomenalistas, as ontologias dos objetos físicos e dos objetos matemáticos são mitos. A qualidade de mito, no entanto, é relativa; relativa, nesse caso, ao ponto de vista epistemológico. Esse ponto de vista é um entre vários, correspondendo a um entre vários de nossos interesses e propósitos” (QUINE, 1973, p. 235).

Roger Gibson estabelece a ordem cronológica dos textos em que Quine evidencia a sua transição entre o fenomenalismo e o fisicalismo: “Quine flirted with a lesser form of phenomenalism. In some of his essays of the late 1940’s and early 1950’s notably, ‘On What There Is’ (1948), ‘Identity, Ostension, and Hypostasis’ (1950), and ‘Two Dogmas of Empiricism’ (1951) Quine manifested a certain tolerance for what might be called mitigated phenomenalism. In those essays he characterized the importation of physical posits into our conceptual scheme as a matter of mere convenience. Their purpose was to systematize and simplify an already intelligible (even if perhaps chaotic) stream of immediate experience. At the same time he vehemently denied that all talk about physical objects could be reduced to talk about actual and possible sense data and logico-mathematical auxiliaries. Moreover, he suggested that the phenomenalistic conceptual scheme, as opposed to the physicalistic one, is the literal truth about the world; physical objects were, therefore, fictions. Quine in 1981 still believes that the importation of physical objects into our conceptual scheme is justified, ultimately, on the ground of their contributing systematic efficacy to our overall theory of the world. But he now rejects the part of his earlier view that accorded literal truth to the phenomenalistic conceptual scheme. The pivotal essay in this regard appears to be ‘On Mental Entities’ (1953). In that piece Quine declared unequivocally ‘that it is a mistake to seek an immediately evident reality, somehow more immediately evident than the realm of external objects’ (OME, 225; my emphasis). This remark compares favorably with a passage found in the clearly physicalistic section one of Word and Object, where Quine

que o qualquer que seja o traço da realidade que seja valioso pode ser descrito em termos de predicados de estados físicos objetivos. A visão oposta é o fenomenalismo, a teoria segundo a qual as afirmações sobre objetos físicos podem ser completamente analisados em termos de afirmações sobre o sobre os dados sensórios possíveis e lógico-matemáticos. Quine se qualifica como fisicalista de acordo com essa caracterização acima, mas nunca foi fenomenalista no sentido acima explicado210.

A percepção crucial do empirismo fisicalista de Quine é que qualquer evidência para a ciência tem ponto final nos sentidos. Essa percepção continua a ser válida, mas é uma visão que sucede à física, a fisiologia e a psicologia, e não a antecede. Os epistemólogos tradicionais queriam postular um reino de dados dos sentidos, situado de alguma maneira só no estímulo físico, por medo do problema da circularidade: ver a estimulação física, ao invés do dado dos sentidos como o ponto final da evidência científica seria fazer com que a ciência física repousasse sobre a própria evidência na ciência física. Mas, se com Neurath aceitamos essa circularidade, simplesmente reconhecendo que a ciência da ciência é uma ciência, então, para ele, nós devemos adotar essa mesma postura de aceitação da circularidade.

Como lidar com a circularidade? Para o autor, se a velha epistemologia aspirava conter as ciências naturais, a sua nova epistemologia está contida nas ciências naturais, como um capítulo da psicologia (QUINE, 1969, p. 83). Isso não significa que a velha epistemologia não tenha mais validade. Ao contrário, como disse anteriormente, a continência é

recíproca: a epistemologia nas ciências naturais e a ciência natural na epistemologia.

explained: ‘There is every reason to inquire into the sensory or stimulatory background of ordinary talk of physical things. The mistake comes only in seeking an implicit sub-basement of conceptualization, or of language’ (WO, 3; my emphasis). Moreover, the arguments that Quine put forth in section one of Word and Object in support of this claim merely flesh out the bones of the arguments adumbrated seven years earlier in ‘On Mental Entities’. After ‘On Mental Entities’ appeared in 1953, Quine published ‘The Scope and Language of Science’ (1954) and ‘Posits and Reality’ (1960). (This latter essay was actually ‘written about 1955 for the beginning of Word and Object, but eventually superseded’ [PR, 246]). These three essays are early unambiguous expressions of Quine's commitment to physicalism, or, conversely, of his rejection of mitigated phenomenalism (GIBSON, 1986, pp. 155-156).

210 Na explicação de Gibson (1986, p.161), Quine publicou dois ensaios, ‘Facts of the Matter’ (1977) e ‘Whither Physical Objects’ (1976), em que trata desse assunto. Em ‘Facts of the Matter’, Quine propõe quatro versões da tese do fisicalismo; são elas:

(P) Não há diferença no mundo sem uma diferença nas posições ou estados de corpos. (P) Não há mudança sem uma mudança nas posições ou estados de corpos.

(P) Não há diferença no mundo sem uma diferença no número, ou arranjo, ou trajetórias de átomos.

(P) Não há diferença em matéria de fato, sem uma diferença no cumprimento do estado físico predicados por regiões do espaço-tempo.

Cada uma destas formulações sucessivas da tese do fisicalismo se destina a ser uma melhoria, de uma forma ou de outra.

Para Quine, este apelo à ciência para sustentar o projeto do conhecimento, que se sustenta na própria ciência, é a melhor opção disponível após a exclusão de métodos filosóficos tradicionais por suas falhas mais graves, já que, para ele, “paramos de sonhar em deduzir a ciência de dados sensórios” (1969, p. 84). Para ele, temos que compreender a ciência como uma instituição ou processo no mundo, e nada melhor que a própria ciência para compreendermos qual é o seu objeto, como se vê do trecho de Epistemology Naturalized:

“A estimulação dos receptores sensórios constitui, em última análise, toda a evidência na qual cada um terá podido basear-se para chegar à sua imagem do mundo. Por que não ver simplesmente como essa construção realmente se processa? Por que não ficar com a psicologia?” (QUINE, 1969, p. 75).

No entanto, esta aplicação do fisicalismo à vida mental não deve ser considerada como uma doutrina reducionista. Não é um sonho utópico de sermos capazes de especificar todos os eventos mentais em termos fisiológicos ou microbiológicos. Não é uma afirmação de que tais correlações sequer existam. Os agrupamentos de eventos em termos behavioristas não precisam estar sistematizados em grupos biológicos. O que isso diz sobre a vida da mente é que não há diferença mental sem uma diferença física. A maioria de nós hoje em dia concorda com este princípio que deixamos de sentir a sua magnitude. É uma maneira de dizer que os objetos fundamentais são os objetos físicos. Para ele, isso significa concordar que a física seu lugar de direito como a ciência natural básica, sem qualquer esperança de se aventurar duvidosas de redução de outras disciplinas.

Quine reconhece que a formulação da tese do fisicalismo está inacabada. Mas esta última tarefa é uma das tarefas mais importantes históricas da própria física, ou seja, a averiguação de um catálogo mínimo de estados elementares tais que não exista qualquer alteração sem alteração em relação aos mesmos estados. Na medida em que a física está incompleta nesse sentido, o autor não tem escolha a não ser deixar sua formulação do fisicalismo incompleta e circular.