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O Barco de Neurath e a teoria arregimentada de Quine

CAPÍTULO I – DA FILOSOFIA PRIMEIRA AO NATURALISMO – IMPACTOS NA

4. A epistemologia naturalizada de Willard Van Orman Quine

4.2 As teses substitutivas de Quine

4.2.1 O Holismo

4.2.1.1 O Barco de Neurath e a teoria arregimentada de Quine

Está implícito no holismo de Quine que todo o discurso teórico, incluindo a filosofia, está em um barco; tudo está uma grande teoria, com o objetivo de dar sentido ao mundo que nos rodeia. Ele segue Otto Neurath183 ao comparar o conhecimento humano, o nosso “esquema conceitual”, a um navio no mar, que deve ser reparado ao longo do tempo sem sair do mar ou atracar em algum porto seguro – daí, sob pena de afundar, não se pode reparar muitas pranchas de uma só vez184. Para Quine, Neurath, ao comparar a ciência a um barco que, se formos reconstruí-lo, temos de reconstruir tábua por tábua enquanto permanecemos à tona, coloca o filósofo e o cientista no mesmo barco. Desse modo, “se melhorarmos nossa compreensão da fala das coisas físicas, o que não será pela redução dessa fala a uma linguagem mais familiar. Será esclarecendo as conexões, causais ou não, entre o discurso ordinário das coisas físicas e outros assuntos que por sua vez nos agarramos com a ajuda de conversa normal das coisas físicas” (QUINE, 1960, p. 02). Não há doca seca filosófica – não há a “filosofia primeira”, nenhum exílio cósmico185

superior à ciência empírica que estabelece seus padrões de vantagem. A própria filosofia,

183 Nas palavras do próprio Quine: “Neurath has likened science to a boat which, if we are to rebuild it, we must rebuild plank by plank while staying afloat in it. The philosopher and the scientist are in the same boat. If we improve our understanding of ordinary talk of physical things, it will not be by reducing that talk to a more familiar idiom; there is none. It will be by clarifying the connections, causal or otherwise, between ordinary talk of physical things and various further matters which in turn we grasp with help of ordinary talk of physical things” (QUINE, 1960, p. 02).

184 “The interlocked conceptual scheme of physical objects, identity, and divided reference is part of the ship which, in Neurath's figure, we cannot remodel save as we stay afloat in it. The ontology of abstract objects is part of the ship too, if only a less fundamental part. The ship may owe its structure partly to blundering predecessors who missed scuttling it only by fool's luck. But we are not in a position to jettison any part of it, except as we have substitute devices ready to hand that will serve the same essential purposes” (QUINE, 1960, pp. 122-123).

185 Não há “exílio cósmico”: o único ponto de vista de que a realidade pode ser descrita e catalogada está dentro da nossa teoria geral, do mundo. A nossa capacidade de descrever como e por que passamos a adotar a

como tudo mais, contribui para o conhecimento apenas na medida em que é empírica, ainda que remotamente e de forma indireta186. “Dúvidas acerca de qualquer uma das nossas crenças podem surgir, mas a única fonte possível dessa dúvida e o resto de nossa ciência e experiência” (RITCHIE, 2012, p. 66).

Com isso, a abordagem cientificista do mundo estabelece os limites dentro dos quais uma abordagem sobre o conhecimento deve continuar. Em primeiro lugar, para Quine, não recorremos a qualquer tipo especial de conhecimentos filosóficos; contamos com o nosso conhecimento comum. Em segundo lugar, o que importa é o conhecimento comum refinado e aperfeiçoado pela ciência. Em terceiro lugar, contamos com a ideia de uma

teoria arregimentada, isto é, a ciência formulada em uma linguagem que é clarificada e

simplificada. Ele vê essa proposta teórica não como uma das propostas filosóficas a priori, fundadas na análise conceitual, mas como uma proposta teórica que avança no mesmo espírito de qualquer proposta científica. Um físico, por exemplo, preocupado com a ideia de força não pretende elucidar a natureza da força e menos ainda o significado da palavra “força”; nem ele se preocupa em preservar tudo o que o senso comum187 pode afirmar no

que diz respeito ao termo força188 (KEMP, 2006b, p. 35).

melhor teoria não põe em causa a realidade do que se diz existir. Assim – especialmente uma vez que o projeto de redução da teoria dos objetos físicos à experiência ou as sensações não pode ser levado a cabo – não há absolutamente nenhum espaço para questionar a realidade dos objetos físicos; eles existem de acordo com a nossa melhor teoria, e não há nenhum ponto de vista a partir do qual seja possível identificar algo em comparação com a qual eles são menos real.

186 Assim, Quine endossa explicitamente, mas não encontra nada de alarmante na afirmação de Hume, de que o princípio da indução seja improvável. Isso se torna apenas alarmante quando se pensa no papel do princípio como fundação a priori para a ciência, e não apenas como uma lei que, apesar de sua generalidade é anulável, juntamente com todos os outros (KEMP, 2006b, p. 35). Na leitura de Susan Haack, o problema da indução é o carro-chefe das preocupações evolucionistas da epistemologia naturalizada de Quine, muito embora a descrição do papel da evolução seja ambivalente. A teoria da evolução, Quine afirma, pode resolver o problema perene da indução (“the most successful inductions will have tended to predominate through natural selection. Creatures inveteraly wrong in their inductions have a pathetic but praiseworthy tendency to die before reproducing their kind” QUINE, 1994, p. 65), ao mesmo tempo em que o projeto de justificação da indução é mal compreendido (“these thoughts are not meant to justify induction… What natural selection contributes… is a reason why induction works, granted that it does”) (HAACK, 1993, p. 132).

187 No que diz respeito à relação entre ciência e senso comum, a ideia de tipos naturais estudada por Quine merece atenção. Quando olhamos para outras partes do mundo natural, a ideia de um tipo natural é de uso explicativo limitado. Por uma variedade de razões, os tipos que se distinguem pela ciência ter uma extensão que não se reflete na linguagem do senso comum. Por exemplo, na linguagem normal, ninguém seria persuadido a referir-se a cebola e alho como lírios, e ainda assim eles são parte da família das liliáceas. Da mesma forma, em contextos não-científicos, alguém poderia classificar como abutres falcões ou borboletas como um tipo de mariposa. Por outro lado, o termo “árvore” – uma palavra amplamente utilizada na linguagem comum - não consegue encontrar um lugar em qualquer taxonomia científica. Linguagem comum e prática científica muitas vezes se sobrepõem no significado atribuído aos termos linguísticos. Mas da mesma forma, linguagem comum e ciência divergem. (PATTERSON, 2006, p. 552).

188 A ideia foi famosamente avançada pelo falecido físico do século XIX Heinrich Hertz. Notando que a pergunta “O que é força?” parece evocar uma variedade malcomportada de ideias, imagens mentais e assim por diante, Hertz sugeriu que o termo devesse simplesmente ser removido a partir de formulações da física.

A teoria arregimentada de Quine nada mais é que a nossa ciência em geral, a soma total do nosso conhecimento melhor e mais objetivo sobre o mundo, reformulado na forma mais clara e simples, mas o que ele quer dizer aqui com “mais objetivo”?

Num sentido mais amplo, o naturalismo entende a objetividade como a visão dos outros simplesmente como criaturas naturais, cujo comportamento, ações e reações podemos procurar compreender, predizer e, talvez, controlar e reformular exatamente no mesmo sentido em que podemos procurar compreender, predizer e controlar e reformular o comportamento de objetos não-pessoais na natureza (STRAWSON, 2008, p. 47).

O autor vê esse tipo de reformulação a partir de um esforço científico comum: “Até certo ponto (...) o cientista pode melhorar a objetividade e diminuir a interferência da linguagem, por sua própria escolha da linguagem. E nós, preocupados em destilar a essência do discurso científico, podemos purificar a linguagem da ciência para além do que seria razoável insistir-se com o cientista praticante”. (QUINE, 1957, p. 07)

Desse modo, Quine adota uma expressão do naturalismo metodológico, o qual está preocupado com as formas de investigar a realidade e reivindica algum tipo de autoridade geral para o método científico (PAPINEAU, 2009). O naturalismo metodológico afirma que, no fundo, a filosofia e a ciência estão engajadas no mesmo empreendimento: têm os mesmos objetivos e métodos, ou seja, estabelecem o conhecimento sintético sobre o mundo natural, em particular, o conhecimento das leis e mecanismos causais e, para tanto, conseguem isso comparando as teorias sintéticas com os dados empíricos. Assim entendido, o naturalismo metodológico tem o compromisso de equiparar a “ciência” com a “ciência natural”. (PAPINEAU, 2009).

É claro, explica David Papineau, que os naturalistas metodológicos permitem que haja algumas diferenças relativamente superficiais entre filosofia e ciência. Em particular, eles vão argumentar que não se tratam de diferenças de objetivos ou de métodos, mas simplesmente uma questão de que filosofia e ciência tem foco em questões diferentes. Assim, por um lado, as questões filosóficas são frequentemente distinguidas por sua grande generalidade189. Onde os cientistas pensam sobre vírus, elétrons ou estrelas, os filósofos

189 É certo que nem todas as questões filosóficas são de grande generalidade. Mas, para Papineau, o que parece identificar questões como sobre a originalidade da arte como questões filosóficas é que nosso pensamento está em algum tipo de confusão teórica, apoiado em diferentes linhas de pensamento que levam a conclusões conflitantes. Para o naturalismo metodológico, o progresso requer um “desmoronamento de edifícios”, incluindo, talvez, uma “exumação de suposições implícitas que nós não percebemos que tínhamos, e uma busca por posições alternativas que não gerem novas contradições”. Aqui também dados empíricos claramente não serão cruciais para decidir questões teóricas; muitas vezes temos todos os dados que poderíamos querer, mas não conseguimos encontrar uma boa maneira de acomodá-los. Ainda assim, diz Papineau, os naturalistas metodológicos vão dizer que isso não significa que as teorias empíricas

pensam sobre relações espaço-temporais, universais e identidade. Categorias como estas estruturam todo o nosso pensamento sobre o mundo natural (PAPINEAU, 2009).

Duas considerações, entretanto, saltam aos olhos quando tratamos esse aspecto do holismo de Quine. Em primeiro lugar, parece sugerir que todas as nossas crenças, isto é, a totalidade da ciência, está envolvida na geração de uma previsão. Em segundo lugar, quando previsão e observação falham em corresponderam-se, estamos livres para mudar qualquer parte da nossa ciência total a fim de tornar nossas crenças mais consistentes: o objetivo da ciência não é simplesmente chegar a um conjunto de crenças que sejam consistentes umas com as outras190. O nosso sistema de crenças deve ser capaz de fazer previsões corretas. Deveríamos negar nossas observações e revisá-las191 apenas se tivéssemos boas razões para pensarmos que elas poderiam estar equivocadas, isto é, trocar as tábuas do barco de Neurath apenas quando acreditamos que elas não sejam suficientemente firmes para nos manter “dentro do barco”. E tais razões não incluem a análise conceitual tradicional, nem tampouco apelo às intuições.