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Kelsen e as fronteiras entre o objetivo e o subjetivo

CAPÍTULO I – DA FILOSOFIA PRIMEIRA AO NATURALISMO – IMPACTOS NA

2. Impactos do fisicalismo na teoria do direito: de Kelsen ao Realismo Jurídico

2.1 Kelsen e as fronteiras entre o objetivo e o subjetivo

A ideia de uma Teoria Pura do Direito foi proposta pelo jurista e filósofo austríaco Hans Kelsen e deu nome ao livro por ele publicado. Em seu pensamento, ao qual as faculdades de direito brasileira dedicam estudo razoável, encontramos alguns dos compromissos fundamentais do positivismo metodológico, especialmente no que diz respeito à incorporação de uma concepção absoluta e fisicalista do direito. Kelsen sugeriu uma teoria “pura” do direito, em que a pureza servisse como seu “princípio metodológico fundamental”:

“A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial. É a teoria geral do Direito, não interpretação de particulares normas jurídicas, nacionais ou internacionais. Contudo, fornece uma teoria da interpretação.

Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto. Procura responder a esta questão: o que é e como é o Direito? Mas já não lhe importa a questão de saber como deve ser o direito, ou como deve ele ser feito. É ciência jurídica e não política do direito.

Quando a si própria se designa como ‘pura’ teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é seu princípio metodológico fundamental” (KELSEN, 1998, p. 01).

O projeto metodológico de Kelsen apresenta o direito como objeto de investigação que se localiza no âmbito do ser, isto é, no plano descritivo, do direito que é. O objeto da ciência

125 A propósito do tema, Claudio Michelon Júnior sintetizou muito bem que: “De um lado, tanto os Realistas quanto Kelsen ligam a objetividade (o que pode ser descrito) a um “mundo físico”, a um ‘mundo do tempo e do espaço’ etc., e, desta forma, pretendem privilegiar a ciência que se tornou o padrão para o conhecimento ‘absoluto’ independentemente da nossa perspectiva); a física. De outro lado, os Realistas e Kelsen, por caminhos diferentes, ligam a objetividade do direito também a nossa perspectiva. O Realismo escandinavo frequentemente utiliza a nossa experiência sensorial para julgar se algo é ou não real (e se pode ou não ser objeto de conhecimento). Kelsen também utiliza os sentidos como padrão para saber o que é ou não real mas, além disto, propõe que a própria objetividade do direito depende de uma atitude do sujeito cognoscente. Isto significa que tanto o Realismo Escandinavo quanto a Teoria Pura do Direito ligam paradoxalmente a objetividade do jurídico a um ponto de vista além de nossa perspectiva (o que quer que isto signifique) e, simultaneamente, à nossa perspectiva” (MICHELON JÚNIOR, 2004, pp. 114-115).

jurídica é o material normativo126 da ordem jurídica. Isso significa que o “ser” da concepção kelseniana de ciência jurídica consiste numa descrição das proposições de “dever-ser” (jurídicas127). A norma jurídica é definida por Kelsen como o sentido objetivo

atribuído a um ato de vontade. Entretanto, tais normas não são objetivas no sentido atribuído pela filosofia empirista, em que a objetividade se identifica com o mundo exterior e, portanto, purificada de subjetividade. Em Kelsen, a atribuição de sentido objetivo é subjetiva, e se dá quando o sujeito interpreta um determinado ato como sendo algo mais do que um simples evento físico. Mas uma atribuição objetiva de sentido tem a peculiaridade de que o padrão dessa interpretação do fato seja uma norma jurídica. A especificidade do jurídico não é, entretanto, uma qualidade no mundo espaço-temporal. Na explicação de Cláudio Michelon Júnior, “todas as tentativas de interpretar enunciados jurídicos em termos de fatos brutos serão sempre malsucedidas, pois não será possível compreender a juridicidade de algo por sua posição no espaço e tempo, sem movimento, etc. Enunciados jurídicos não descrevem fatos brutos, fatos do mundo exterior” (MICHELON JÚNIOR, 2004, pp. 98-99).

Ora, diante do paradigma empirista moderno para a ciência do direito, somente descrições elaboradas em termos de fatos naturais poderiam garantir a não-interferência da subjetividade na descrição do estado das coisas. Como resolver isso, então, na Teoria Pura do Direito? Kelsen não está disposto a conceder à subjetividade do direito, nem tampouco à impossibilidade de atribuir um conteúdo cognitivo aos nossos enunciados jurídicos. Afinal, sua Teoria Pura tem o objetivo maior, de “oferecer um esquema racional de compreensão dos atos de coação eficazes em uma sociedade” (MICHELON JÚNIOR, 2004, p. 101).

Kelsen não considera esse problema trivial. Para resolvê-lo, será necessário subverter um dos postulados clássicos de uma concepção filosófica sobre a ciência que é típica do

126 “Ora, o conhecimento jurídico dirige-se a estas normas que possuem o caráter de normas jurídicas e conferem a determinados fatos o caráter de atos jurídicos (ou antijurídicos). Na verdade, o Direito, que constitui o objeto deste conhecimento, é uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o comportamento humano. Com o termo ‘norma’ se quer significar que algo ‘deve ser’ ou acontecer, especialmente que um homem ‘se deve’ conduzir de determinada maneira” (KELSEN, 1998, p. 05).

127 Kelsen explica que “a distinção entre ser e dever-ser não pode ser mais aprofundada. É um dado imediato da nossa consciência. Ninguém pode negar que o enunciado: tal coisa é – ou seja, o enunciado através do qual descrevemos um ser fático – se distingue essencialmente do enunciado: algo deve ser – com o qual descrevemos uma norma – e que da circunstância de algo ser não se segue que algo deva ser, assim como da circunstância de algo que deve ser não segue que algo seja (...) Portanto, a conduta estatuída numa norma como devida (como devendo ser) tem de ser distinguida da correspondente conduta de fato. Porém, a conduta estatuída na norma como devida (como devendo ser), e que constitui o conteúdo da norma, pode ser comparada com a conduta de fato e, portanto, pode ser julgada como correspondendo ou não correspondendo à norma (isto é, ao conteúdo da norma)” (KELSEN, 1998, pp. 06-07).

empirismo moderno: a identificação do que é “objetivo” com o “mundo exterior”. O que Kelsen teme, em verdade, é o sincretismo metodológico, que permita que a ciência do direito se confunda com a psicologia e a sociologia, com a ética e a teoria política e, por isso, propõe uma descrição científica e verificável externamente. Kelsen demarca a diferença do direito em relação às ciências naturais, uma vez que a significação jurídica “não pode ser percebida no ato por meio dos sentidos, tal como nos apercebemos das qualidades naturais de um objeto, como a cor, a dureza e o peso.” (KELSEN, 1998, p. 04). Desse modo, “uma planta nada pode comunicar sobre si própria ao investigador da natureza que a procura classificar cientificamente”, ao contrário da conduta humana que, para Kelsen, “pode muito bem levar consigo uma autoexplicação jurídica, isto é, uma declaração sobre aquilo que juridicamente significa” (1998, p. 04).

Embora sua concepção de objetividade esteja vinculada ao paradigma fisicalista, a teoria kelseniana recusa o conteúdo cognitivo dos enunciados jurídicos ou sua compreensão como descritivos de fatos brutos. A teoria de Kelsen apresenta em sua teoria, além de um critério fisicalista, traços do fenomenalismo, segundo o qual o que é real pode ser apreendido pelos sentidos. É da tensão entre estes dois critérios que resulta o fato de que nem tudo o que minha percepção sensorial garante como existente pode ser caracterizado em termos físicos.

O objeto jurídico na teoria de Kelsen, ganha, então, dupla dimensão: parte de sua constituição é produzida por um fato bruto, mas, ao mesmo tempo, o significado jurídico é produzido por uma norma que serve como estrutura interpretativa desse mesmo evento natural. Há, pois, um imanente conteúdo cognitivo nos enunciados jurídicos, que descrevem as normas, por que elas não são apenas fatos no mundo. Desse modo, para que uma norma exista deve haver outra norma que sirva de padrão interpretativo dos fatos naturais ou, mais precisamente, do mundo exterior128.

128É o que Kelsen procura esclarecer no seguinte trecho: “O fato externo que, de conformidade com o seu significado objetivo, constitui um ato jurídico (lícito ou ilícito), processando-se no espaço e no tempo, é, por isso mesmo, um evento sensorialmente perceptível, uma parcela da natureza, determinada, como tal, pela lei da causalidade. Simplesmente, este evento como tal, como elemento do sistema da natureza, não constitui objeto de um conhecimento especificamente jurídico. O que transforma este fato num ato jurídico (lícito ou ilícito) não é a sua facticidade, não é o seu ser natural, isto é, o seu ser tal como determinado pela lei da causalidade e encerrado no sistema da natureza, mas o sentido objetivo que está ligado a esse ato, a significação que ele possui. O sentido jurídico específico, a sua particular significação jurídica, recebe-a do fato em questão por intermédio de uma norma que a ele se refere com o seu conteúdo, que lhe empresta a significação jurídica, por forma que o ato pode ser interpretado segundo esta norma. Esta norma funciona como esquema de interpretação” (KELSEN, 1998, p. 04). Segundo a avaliação de Claudio Michelon Júnior, o “mundo exterior” de Kelsen é mais rico que o mundo exterior de Descartes. Algumas características que Descartes vê como subjetivas, e que, portanto, só podem ser consideradas afecções do mundo interior, são

Como Kelsen procura, então, preservar os pressupostos fisicalistas que pretendia importar das ciências naturais? Em resposta, de acordo com Ronaldo Porto Macedo Júnior (2013, p. 81), Kelsen procurará demonstrar que a objetividade jurídica, o elemento que nos permite afirmar a realidade objetiva da norma, independe da existência desta no mundo exterior, físico. Na verdade, para Kelsen, sua objetividade (ou existência) depende de um critério de validade. A validade de uma norma jurídica é resultado da interpretação de um ato de vontade segundo outra norma jurídica. Este critério, por sua vez, é estabelecido em conjunto, em um sistema escalonado, de sorte que a validade de uma norma depende da validade de outras normas.

Coloca-se, para Kelsen, o famoso problema epistemológico do regresso infinito na tarefa de justificação de seu sistema jurídico: afinal, qual a natureza da norma que inaugura esse escalonamento? Para tanto, Kelsen apresenta sua Grundnorm, a norma fundamental. Tal é o critério de validade do sistema kelseniano, que possibilita interpretar o sentido subjetivo das normas, postas através de atos de vontades humanos, por seu sentido objetivo. Trata- se, este, pois, de um ato não positivado, mas tão somente pressuposto enquanto “conteúdo de um ato de pensamento”129:

“Um tal pressuposto, fundante da validade objetiva, será designado aqui por norma fundamental (Grundnorm). Portanto, não é do ser fático de um ato de vontade dirigido à conduta de outrem, mas é ainda e apenas de uma norma de dever-ser que deflui a validade – sem sentido objetivo – da norma segundo a qual esse outrem se deve conduzir em harmonia com o sentido subjetivo do ato de vontade” (KELSEN, 1998, p. 09).

consideradas por Kelsen como qualidades do mundo exterior. Por exemplo, características dos objetos do mundo exterior e, portanto, qualidades naturais. (MICHELON JÚNIOR, 2004, p. 94).

129 No original, a solução ao problema do regresso infinito é colocada dessa forma: “Mas a indagação do fundamento de validade de uma norma não pode, tal como a investigação da causa de um determinado efeito, perder-se no interminável. Tem de terminar numa norma que se pressupõe como a última e a mais elevada. Como norma mais elevada, ela tem de ser pressuposta, visto que não pode ser posta por uma autoridade, cuja competência teria de se fundar numa norma ainda mais elevada. A sua validade já não pode ser derivada de uma norma mais elevada, o fundamento da sua validade já não pode ser mais posto em questão. Uma tal norma pressuposta como a mais elevada, será aqui designada como norma fundamental (Grundnorm)” (KELSEN, 1998, p. 217). Claudio Michelon explica com precisão o que se entende, aqui, por “conteúdo de um ato de pensamento: “O ato de pensamento é explicado na teoria geral das normas como a figuração mental de um estado de coisas. A norma fundamental seria, então, a representação de um estado de coisas, qual seja, o estado de coisas em que existe o dever de obedecer à primeira constituição histórica. O estado de coisas em que consiste a figuração da norma fundamental tem a peculiaridade de ser um estado de coisas hipotético, ou como afirmará Kelsen em sua obra póstuma, um estado de coisas fictício. Isto significa que a figuração é de um fato que não necessariamente existe (se trata de uma ficção em sentido próprio). Toda validade das normas e, consequentemente, toda a objetividade do Direito repousa na pressuposição de uma norma fundamental, ou seja, na pressuposição de uma hipótese ou ficção. O fato de que a norma fundamental não é uma norma posta, mas uma norma pressuposta explica por que Kelsen afirma que não há uma necessidade de que essa norma seja postulada” (MICHELON JÚNIOR, 2004, p. 106). Há quem entenda que o reconhecimento de que a norma básica seja uma ‘ficção’ acaba com qualquer pretensão ao estatuto de ciência, levando Kelsen a uma aproximação do realismo jurídico (v. MORRISON, 2006, p. 406).

Em síntese, o processo estabelecido pela norma fundamental busca a fundamentação da juridicidade, onde: (i) a norma jurídica não é um fenômeno empírico (não está escrita, por exemplo); ao contrário, é um fenômeno inteligível, imputado à estrutura empírica da ordem jurídica, e dá uma diretriz que inclui a permissão para que uma autoridade aplique uma sanção em determinadas circunstâncias; (ii) as autoridades do sistema constituem o sujeito principal das normas jurídicas; (iii) as atividades empíricas dos cidadãos que fazem funcionar o sistema jurídico, na verdade, não infringem a norma jurídica; em vez disso, praticam delitos, eventos que atendem às condições que dão origem à aplicação oficial de sanções; (iv) as normas jurídicas só podem ser validadas por outras normas, que são de abrangência mais geral. Esse processo leva, ao infinito e, para interrompê-lo, devemos postular a existência de uma (v) norma básica final que não dependa de outra norma válida. Nesses termos, a objetividade da ciência do direito repousa, sobre “a vontade de interpretar um conjunto de fatos como fatos jurídicos ou, o que é o mesmo, sobre a vontade de explicar o comportamento por referência a cadeias de imputação (normas) e não cadeias de causalidade (fatos brutos)” (MICHELON JÚNIOR, 2004, p. 107).

Veja-se que, como apontou Ronaldo Porto Macedo Júnior (2013, pp. 83-84), Kelsen introduz uma novidade no conceito de objetividade ao indicar que a objetividade do direito depende, em última instância, da subjetividade, isto é, de um ato de vontade relativo à descrição dos fenômenos naturais enquanto fenômenos jurídicos130. Entretanto, não é a subjetividade que determina o conteúdo da norma fundamental, pois somente faz sentido pressupor a sua existência na medida em que ela for capaz de explicar um sistema jurídico minimamente eficaz. A eficácia, enquanto fato bruto, é a condição para a validade131 do direito e a sua medida se reinsere numa concepção absoluta de mundo. Todavia:

130 Esta é a preocupação sinalizada por Claudio Michelon Júnior: “Aqui, Kelsen deixa o flanco aberto para o ataque do realista. A pergunta que o realista escandinavo quer ver respondida é: por que eu devo tomar esta decisão? Por que não é possível explicar todos os fatos de um ponto de vista não-jurídico? Se a existência do direito depende desta opção, esta objeção realista é fatal para Kelsen. O realista convida Kelsen para levar o projeto empirista até o fim, abandonar a proposta de fundar a objetividade em um ato de vontade subjetivo, e se contentar com a objetividade “absoluta” que a física moderna nos apresenta” (MICHELON JÚNIOR, 2004, p. 109).

131 No original: “A solução proposta pela Teoria Pura do Direito para o problema é: assim como a norma de dever-ser, como sentido do ato-de-ser que a põe, se não identifica com este ato, assim a validade de dever-ser de uma norma jurídica se não identifica com a sua eficácia da ordem do ser; a eficácia da ordem jurídica como um todo e a eficácia de uma norma jurídica singular são – tal como o ato que estabelece uma norma – condição da validade. Tal eficácia é condição no sentido de que uma ordem jurídica como um todo e uma norma jurídica singular já não são consideradas como válidas quando cessam de ser eficazes. Mas também a eficácia de uma ordem jurídica não é, tampouco como o fato que a estabelece, fundamento da validade. (...) A fixação positiva e a eficácia são pela norma fundamental tornadas condição da validade. A eficácia é-o no sentido de que deve acrescer ao ato de fixação para que a ordem jurídica como um todo, e bem assim a norma jurídica singular, não percam sua validade” (KELSEN, 1998, p. 236).

“Quando limita o conteúdo da norma fundamental, Kelsen deixa claro que a eficácia é condição para que o conjunto de normas seja válido. Kelsen nega que a eficácia das normas inferiores à norma fundamental possa ser determinada por fatos, mas reconhece que o conteúdo da norma fundamental não pode ser escolhido arbitrariamente, pois está limitado pela eficácia do sistema como um todo. Nesta situação, a pureza da teoria pura do direito fica comprometida. O direito é determinado também por fatos brutos e, portanto, faz parte do mundo exterior. Mais ainda: se os fatos brutos determinam o conteúdo da norma fundamental, a relação entre a eficácia do sistema e a validade da norma fundamental é uma relação de causalidade ou de imputação (ou de um terceiro gênero que Kelsen jamais introduziu)?” (MICHELON JÚNIOR, 2004, p. 111). Kelsen estabelece, assim, uma concepção peculiar de objetividade das normas jurídicas, identificada na sua relação com um ato subjetivo que funda o direito, a norma fundamental, para que seja possível explicar juridicamente, o direito enquanto “conjunto de atos de coação globalmente eficazes” (MACEDO JÚNIOR, 2013, p. 83).