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2.1 Macabéa: um nome que ninguém tem

2.3 A falsa profecia

2.3.3. A força do nome e a explosão do destino

Como apresenta a narrativa, Macabéa sai da casa da cartomante atônita, com vontade de chorar, perplexa pela constatação da sua infelicidade existencial. Mas já era outra pessoa e, como bem medita o narrador, havia sido “mudada pelas palavras ...”265. É a palavra que a torna “uma pessoa grávida de futuro”266, possuidora de um sentido de vida267. O momento

epifânico de Macabéa lhe faz descobridora do real, do banal da existência. Mas, como o narrador cria um recurso alarmante para descrever cada decisão que a nordestina toma, é assim que descreve, a cena mais fatídica do romance:

o Destino (explosão) sussurrou veloz e guloso: é agora, é já, chegou a minha vez! E enorme como um transatlântico o Mercedes amarelo pegou-a – neste mesmo instante em algum lugar do mundo um cavalo como resposta empinou-se em gargalhada de relincho268.

Rodrigo S.M. em tom muito mais solidário do que irônico, fala que Macabéa ainda teve tempo de ver que as promessas já se cumpriam, pois era um enorme carro de luxo. Como dirá, Waldman:

264 “A adequação do homem ao ser divino, que implica a independência e a cooperação recíproca visando um

fim que não se conhece, é, no nosso ponto de vista, uma idéia presente, constante nas histórias de Clarice Lispector...”. In: SZKLO, Gilda Salem. op. cit., p.110.

265 LISPECTOR, Clarice. op. cit., p.79. 266 Idem, ibidem. p.79.

267 “Sentia em si uma esperança tão violenta como jamais sentira tamanho desespero.” In: Idem, ibidem. p.79. 268 Idem, ibidem. 79.

Mas o prognóstico feliz feito pela cartomante é desmentido imediatamente, no momento mesmo em que Macabéa atravessa a rua e é atropelada por um automóvel, e a palavra humana apresentada ao leitor com o peso da palavra de Deus mostra-se em baixa. Degradada, mesclada à magia divinatória, atualizada na palavra da cartomante, é oca e sem peso a voz de Deus269.

A nordestina começa a viver os seus últimos e agônicos minutos de vida, os mais intensos de toda a sua vazia existência. Nasce em sua subjetividade a consciência de ser270. O narrador constata perplexo a voracidade da vida, mas: “Macabéa lutava muda”271. Seu discurso perpassa a meditação sobre a condição da personagem, refutando a possibilidade da morte, mascarando-a em sua angustiante divagação272. Ela, que “não acreditava na morte”273, se confronta com a personagem predileta, segundo o narrador. Macabéa repetia a confissão de sua existência: “eu sou, eu sou, eu sou”274. Suas últimas palavras: “Quanto ao futuro”. Sua agonia se desfecha numa profunda e violenta náusea, que após alguns momentos de confronto, desembocam na morte de Macabéa: vitória275. A sua consciência existencial desvela-se concomitantemente à sua morte física e tragédia pessoal. A morte revela o sentido que está escondido atrás do próprio nome de Macabéa, sentido este que ela desconhecia, e, tanto lhe custou. A palavra Macabéa também possui como referencia etimológica a palavra macabro, cujo sentido é:

Macabro: adj. Diz-se de uma dança alegórica que representa a morte. Ext. fúnebre, tétrico, afeiçoado a coisas lú gubres, 1858. Do francês macabre, de macabré, var. de macabé. Derivado de Macabeus, heróis bíblicos cujo culto estava relacionado com a morte276.

269 WALDMAN, Berta. op. cit., p.23.

270 “hoje é o primeiro dia de minha vida: nasci.” In: LISPECTOR, Clarice. op. cit., p.80. 271 Idem, ibidem. p. 81.

272 “Vou fazer o possível para que ela não morra. Mas que vontade de adormecê-la e de eu mesmo ir para a cama

dormir”. In: Idem, ibidem. p.79.

273 Idem, ibidem. p.37. 274 Idem, ibidem. p.84.

275 “Nesta hora exata sente um fundo enjôo de estômago e quase vomitou, queria vomitar o que não é corpo,

vomitar algo luminoso. Estrela de mil pontas. O que é que estou vendo agora e que me assusta? Vejo que ela vomitou um pouco de sangue, vasto espasmo, enfim o âmago tocando no âmago: vitória!” In: Idem. ibidem, p.79.

276 CUNHA, Antonio Geraldo. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. São Paulo: Nova Fronteira, p.

O nome revela o destino da pobre nordestina, e desvela o romance como um espaço literário agônico, que caminha para fragmentação total. No final, o narrador morre junto com a personagem, ele que estava atrelado à sua existência. É o fim da narrativa, que assume caráter de palavra radical. E, por fim, é a morte da própria autora Clarice Lispector, que morre meses depois de ter publicado a obra e, sinaliza com sua autoria na dedicatória do texto, a sua participação na narrativa. Travestida como um autor masculino, ela tenta se esconder, mas fracassa, pois ao final, não alcança seu objetivo: Macabéa, seu próprio heterônimo.

A Hora da Estrela se configura com seus treze títulos, como um texto pluritemático, com excesso de referências e debates. Polissêmico, pois põe em tensão a própria linguagem, o próprio discurso literário, como objeto de representação e debate sobre o ser. Sobretudo, a narrativa é o desfecho agônico da existência, que coloca uma palavra última, uma pergunta inevitável: “... não preciso ter piedade de Deus. Ou preciso?”277.

(...) A Hora da Estrela acha-se mergulhado no desassossego da ausência de sentido de tudo e de todos [...] O narrador-escritor está diante da morte de Deus enquanto horizonte de sentido no homem e para o homem e, ao mesmo tempo, padece da figura poderosa do Criador. Vai ele, então, vasculhar a sua interioridade que, no entanto, sempre lhe escapa. Vai ele indagar o sentido da existência de Macabéa e sua tosca manifestação de vida278.

Esse inescapável questionamento que propõe esse midrash contemporâneo, revela o grito dos marginalizados dentro de uma sociedade de poucos, demostra o profundo sentimento de culpa e constrangimento do narrador (escritor moderno) frente à precária realidade da personagem, a ponto de o levar a retomar a narrativa a todo instante, para fazer vir à luz a vida de Macabéa. Por último, desvela a saga bíblica dessa mulher, pobre e nordestina, exilada na Babilônia dos tempos modernos, vivendo os infortúnios do esquecimento divino. Revelando assim que, ao contrário de seus ascendentes macabeus, sua

277 LISPECTOR, Clarice. op. cit., p.84. 278 FUKELMAN, Clarisse. op. cit., p.9.

sina não é de vitória e sim de derrota, aprofundando o caráter trágico da narrativa. Porém, por meio do jogo de extremos que ondula a obra de Clarice, um aspecto de magia, uma sonoridade de esperança, se desvela na luta sofrida e silenciosa de Macabéa, em sua agônica e inconsciente mística de resistência, que é vivida por ela até o instante final, até a sua hora de estrela.

CAPÍTULO III