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1.3 Linguagem e religião e o drama de Clarice Lispector

1.3.1 Escritura metafórica-metafísica

Olga de Sá, em seu livro A Escritura de Clarice Lispector, denominou o mundo narrativo de Clarice Lispector de escritura metafórica-metafísica. Os grandes méritos de seu trabalho, foram o de reunir e dialogar em torno dos principais autores e críticos que haviam pensado e debatido a obra clariceana até aquele momento89. E, além disso, o de promover uma leitura das obras de Clarice a partir de referenciais da filosofia, da crítica literária e da semiótica, o que permitiu compreender o mundo ficcional clariceano, como um corpus literário, intimamente ligado e imbricado, uma escritura na acepção maior da palavra.

A trajetória da pesquisadora dentro da obra clariceana, procurou sondar os principais eixos-temáticos e icônicos que se articulam e se movimentam na sua narrativa. Ao buscar

87 “Privilegiar um único sentido em vez de o jogo das significações, a palavra em vez da voz, na coerência de sua

obra, é negar sua proposta básica: a de uma linguagem aberta para a revelação (uma linguagem como destinação da idéia, realidade ativa verbo em busca de permanência). A intenção da narrativa de Clarice é acordar sentidos (sensações e sentimentos) no tempo da fala”. Cf. RÉGIS, Sonia. O Pensamento Judaico de Clarice. O Estado de São Paulo, 14 de Maio de 1988. Disponível em: <http://www.clarice-lispector.cjb.net>. acessado em: 11 de abril 2005.

88 “Os termos que lhe saem da pena, porque a palavra é sua quarta dimensão, estão saturados dos efeitos

epifanicos já apontados: jóia que refulge no ar, glória estranha no corpo, matéria sensibilizada pelo arrepio dos instantes, alegria e canto de aleluia!”. In: SÁ, Olga de. op. cit., p.201.

89 O livro A Escritura de Clarice Lispector, é resultado de uma dissertação de mestrado sobre a orientação de

Haroldo de Campos, no final da década de 70. A pesquisadora faz na primeira parte de sua obra, uma verdadeira varredura em todos os textos e obras que haviam focalizado a obra da autora, até aquele momento. E o divide como: fortuna crítica; década de 40 e 50, e década de 60 e 70. Sem dúvida, a pesquisa se configura num dos mais importantes textos sobre a obra de Clarice, por seu caráter perquiridor e dialógico. É uma tentativa de descer até o fundo no mundo ficcional, tateando seus principais eixos-temáticos e icônicos, e um interessante debate em torno das principais vozes que se debruçaram sobre a intricada narrativa clariceana.

isto, Olga de Sá, bem como tantos outros investigadores do ato criativo de Clarice Lispector, constatou que a escritora, ao contrário dos introspectivos de sua época, preocupou-se com a camada sensível da linguagem, com o significante90. Essa preocupação com o significante, com a imagem acústica que perscruta em seu texto, leva Olga de Sá: “... definir o estilo de Clarice Lispector como centrado no polo metafórico da linguagem”91.

Sua aventura pela linguagem92 é feita sob os auspícios do risco e da improbabilidade, portanto, situa ndo-se numa área limite, entre o literário e o não-literário, quase que as margens do fazer estético93. Essa marca inquestionável e intrínseca da obra de Clarice, sempre fará com que seus interlocutores levantem como debate as relações e distinções entre o belo e o grotesco. Todo este debate é necessário, devido ao trabalho intenso de uma escritora que não se contentou em trilhar os caminhos comuns da atividade literária, e se fez dona de uma obra intensa, estranha e emblemática. Mas, resta-nos entender melhor, por que pode se nomear sua ficção como metafórica e metafísica.

Só pode ser metafórica uma obra literária que se ocupa em problematizar a linguagem, o próprio ato criativo, a própria literatura. Essa complexidade que se desvela em suas linhas só vem reforçar a tese de que se trata de uma autora que, não querendo seguir os caminhos sugeridos pela linguagem clássica94, se embrenha na instauração de um texto desviante, caracterizado por um: “... processo de significação das palavras, centralizado na área da referência (pensamento) enfatiza o fazer inventivo da palavra no texto”95.

90 “Diríamos hoje que os introspectivos daquela época não foram convincentes ao nível da linguagem, não se

preocuparam com a camada sensível da linguagem, com o significante, como o fez Clarice Lispector”. In: SÁ, Olga de. op. cit., p.131.

91 Idem. ibidem, p.143.

92 “Ela se aventura: não segue os caminhos batidos. Em que se aventura? Num novo ritmo de ficção, numa

pesquisa da linguagem para transmitir sua pessoal interpretação do mundo...”. In: Idem, ibidem, p.25.

93 “... essa escritura acabará por subverter os limites reconhecidos entre belo e não-belo, entre literatura e não

literatura, logo entre o que é e o que não é escrever. É assim que ela atesta algo que não pode ser pronunciado, articulado ou julgado, ao menos segundo as regras e os critérios em vigor, os do gênero de discurso da crítica literária incluídos”. In: PRADO JR, Plínio W. op. cit., p.24.

94 TREVISAN, Zizi. op. cit., p.163. 95 Idem, ibidem. p.163.

Essa ênfase no ato criativo e na busca de novas possibilidades da palavra, revela uma autora que questiona permanentemente o processo convencional da linguagem96, e a sua relação com um ser que transparece quotidianamente em crise. Com a visão de mundo e a representação de ser humano que se descobre em seu texto, só intensifica nossa concordância com a idéia de que Clarice era possuidora de: “... uma linguagem simbólica que alude sem definir, verbaliza acentuando a riqueza expressiva da carga imagética (lírica), numa confirmação do ilimitado campo de probabilidades do registro poético”97. O elemento metafórico estabelece o aspecto polissêmico e multivoco de sua obra. E, por ser metafórica:

Não há no mundo de Clarice Lispector, senão uma hierarquia provisória. As grandezas são aparentes, tudo existe por demais. Mesmo aquilo que é pequeno, insignificante ou vil, pode ser objeto de uma visão penetrante, que se estende além da aparência. As coisas representam fisionomia dupla: o comum, exterior, produto do hábito, e a interna, profunda, da qual a primeira se torna símbolo98.

Tudo é simbólico na escritura de Clarice Lispector, nada pode ser desprezado ou desconsiderado, quando se trata de um texto cujo o real e o cotidiano são alvos de radicais problematizações. São nas cenas mais comuns da vida que podem se instaurar os imprevistos e as experiências mais intensas e decisivas da existência. É isso que Clarice quer focar. Ela traz para o dilema da linguagem aquilo que ela narra no drama da vida. Ou seja, em Clarice a linguagem complexa é uma mera representação da complexidade das relações humanas, de suas buscas e desencontros99.

Por problematizar o ser humano, e suas indagações e buscas mais intensas, é intitulada de metafísica. Alfredo Bosi, já na sua História Concisa da Literatura Brasileira, dirá que:

Há na gênese dos seus contos e romances tal exacerbação do momento interior que, a certa altura do seu itinerário, a própria subjetividade entra em

96 TREVISAN, Zizi. op. cit., p.160. 97 Idem, ibidem. p.156.

98 NUNES apud SÁ, Olga de. op. cit., p.166.

99 “A imposição de uma linguagem complexa se justifica pela complexidade estrutural das relações entre os

crise [...] Trata-se de um salto do psicológico para o metafísico, salto plenamente amadurecido na consciência da narradora100.

Esse salto para a dimensão metafísica, sempre se instaurará por meio da epifania101, aquela situação banal e cotidiana que é tomada pelo inesperado. Essa sensação de uma possível surpresa, de um imprevisto, faz com que instaure em seu texto uma áurea de estranheza e complexidade e, acima de tudo, de polissemia, possibilitando múltiplas leituras e sensações.

É uma escritura metafó rica-metafísica, pois como tal, assume a ambigüidade do ser que quer narrar. De modo que sua narrativa é demarcada pela intensificação do conflitos das polaridades102, tornando-se altamente emblemática, complexa e simbólica. Sinalizando o aspecto de mistério e drama que marca decisivamente a vida humana e a seduz de forma tão intensa e radical. Esse clima de mistério, estabelece a impressão de que algo a mais pode ser dito e experimentado em sua narrativa.