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CAPÍTULO III CRÍTICA, MÍSTICA E CONFISSÃO

3.1. O espaço da vida e a crítica à religião

3.1.1. O fracasso dos símbolos

Persiste em toda as linhas de A Hora da Estrela o deflagrar de ironias, confissões e perguntas que põem em destaque o aspecto de questionamento do livro: “Este livro é uma pergunta”286. Aliás, toda a obra de Clarice Lispector se calca em interrogações fundamentais287. A narrativa é o campo de batalha onde autora, narrador e personagem confluem seus desencontros com a palavra, com o outro e consigo mesmo. Isso se evidencia na tensão simbólica da própria narrativa, que recebe várias definições ao longo do texto: “relato”288, “escritos do corpo”289, “fotografia”290, “desabafo”291. Essas definições não só põem em discussão os gêneros literários, mas, além disso, trazem para dentro da narrativa o drama dos desencontros humanos. Narrador, personagem e autora, estão dentro de uma mesma realidade ficcional de problematização da linguagem. Há um clima de nostalgia da palavra292, que instaura um descenso do simbólico, um esvaziamento da narrativa, uma impossibilidade de experiência do numinoso. O descompasso existencial da personagem é um acontecimento que assume feições de tragédia. A via de incapacidades de Macabéa torna-a incompetente para ler, compreender e experimentar tudo que era possível para fazê- la um “animal simbólico”. Neste sentido, podemos dizer que ela não conseguia transcender sua vida precária, pois não reconhecia os símbolos constitutivos do ser humano, aqueles que falam de nossa condição e expressam os mistérios mais profundos do nosso ser293.

286 LISPECTOR, Clarice. op. cit., p.17.

287 Conf. SOUSA, Carlos Mendes de. op. cit., p.169.

288 “Bem, é verdade que também eu não tenho piedade de meu personagem principal, a nordestina: é um relato

que desejo frio.” In: LISPECTOR, Clarice. op. cit., p.13.

289 “Eu não sou um intelectual, escrevo com o corpo. E o que escrevo é névoa úmida”. In: Idem, ibidem. p.16. 290 “Juro que este livro é feito sem palavras. É uma fotografia muda...”. In: Idem, ibidem. p.16.

291 “Como é chato lidar com fatos, o cotidiano me aniquila, estou com preguiça de escrever esta história que é

um desabafo apenas....”. In: Idem. ibidem. p.72.

292 “Mas a realidade da repugnância por palavras dos enunciadores de Clarice e de Beckett não é total, pois

apesar de o silêncio ser aclamado, tais figuras não conseguem viver só de mudez. Depois de algum jejum verbal, a nostalgia da palavra logo os assalta, fazendo com que se dêem conta do valor e da necessidade de seu uso”. In: GALHARTE XAVIER, Júlio Augusto. op. cit., p.73.

293 “... o símbolo toca em núcleo, pontos internos nossos que remetem a campos e áreas profundos e amplos.

Esses campos são os lugares que contém histórias que um dia vivemos, imagens que criamos, emoções que tivemos, e, ao serem tocados, ressurgem e expressam nossos mistérios de vida/morte”. In: NASSER, Maria Celina de Q. Carrera. O que dizem os símbolos? São Paulo: Paulus, 2003. p.6.

Esse desprovimento simbólico da narrativa se expressa no tom de desencanto e de ironia dessacralizadora dos hábitos religiosos praticados inconscientemente por Macabéa:

Quando dormia quase que sonhava que a tia lhe batia na cabeça. Ou sonhava estranhamente em sexo, ela que de aparência era assexuada. Quando acordava se sentia culpada sem saber por quê, talvez porque o que é bom devia ser proibido. Culpada e contente. Por via das dúvidas se sentia de propósito culpada e rezava mecanicamente três ave-marias, amém, amém, amém (...)294.

Ou ainda, quando diz: “... Ela rezou automaticamente em agradecimento. Não era agradecimento a Deus, estava só repetindo o que aprendera na infância”295. Ironia, sátira, ou ainda, banalização, mas acima de tudo, confissão de um fracasso. Os hábitos inconscientes praticados pela personagem não lhe dão ciência de sua condição, de seus mistérios e dramas. Rubem Alves, em seu livro O que é Religião?, diz que a religião é um dos fios que estruturam o cotidiano humano296, essa teia indispensável à estrutura antropológica humana,

é violentamente problematizada no romance. Essa é um das linhas mestras de nossa leitura do romance, não dá para pensar o fracasso da linguagem, o repúdio à palavra, de forma desconexa, sem se dar conta do problema religioso que caracteriza o homem moderno. O fracasso da palavra é também uma profunda confissão de um desencanto cosmológico, uma dessacralização da força simbólica da religião. A denúncia social que a obra apresenta, desvela uma existência que não foi alcançada pelo “consolo da religião”, o que se expressa no tom de culpa e perdição do próprio texto, e também da própria autora297. Esse desconsolo que caracteriza autora e personagem, pode ser entretecido na narrativa, quando Macabéa

294 LISPECTOR, Clarice. op. cit., p.34. 295 Idem, ibidem. p.55

296 “Mas é necessário reconhecê-la como presença invisível, sutil, disfarçada, que se constitui num dos fios com

que se tece o acontecer do nosso cotidiano. A religião está mais próxima de nossa experiência pessoal do que desejamos admitir. O estudo da religião, portanto, longe de ser uma janela que se abre para panoramas externos, é como um espelho que nos vemos. Aqui a ciência da religião é também ciência de nós mesmos...”. In: ALVES, Rubem. O que é religião. São Paulo: Loyola, p.13.

297 “Não lhe sendo destinado o consolo da punição previsto pela crença religiosa institucionalizada, Clarice

sente-se culpada com freqüência: imputa-se tal condição em relação às empregadas, as quais julga explorar; acusa-se pelo “amor torto” aos filhos; pune-se por estar se traindo ao fazer da escritura um ofício, escrevendo em jornais para ganhar dinheiro...”. In: MARTINS, Gilberto Figueiredo. op. cit., p.51.

não consegue perceber os símbolos religiosos imbricados no seu cotidiano. Símbolos que não assumem na dinâmica da sua vida, expressões desveladoras do infinito298. Como já pontuei anteriormente, o romance é assumido como um midrash, ou seja, um comentário/questionamento sobre a vida da retirante dentro da realidade da cidade grande. O fracasso que nela se evidencia, também caracteriza o narrador da história: “Quando eu rezava conseguia um oco de alma – e esse oco é tudo que posso eu jamais ter”299. A narrativa é caracterizada por essa “marca de nostalgia” que lança para longe de autor/narrador/personagem a experiência dos sentidos, a transcendência dos atos. Tudo estava num outro tempo e estado, muito provavelmente o “tempo das origens”, lançando a narrativa e, porque não dizer toda a obra de Clarice, numa busca do tempo ideal (o éden), que não se encontra mais. Este aspecto, além de demonstrar um misticismo primitivo no texto, deflagra aos olhos dos leitores o aspecto de frustração que consterna toda a narrativa, levando o narrador a dizer: “... quero experimentar pelo menos uma vez a falta de gosto que dizem ter a hóstia. Comer a hóstia será sentir o insosso do mundo e banha r-se no não”300.

A autora de origem judia, que se insinua na história como um narrador/homem, lança para muito além da discussão de gênero uma outra questão: o debate das representações sociais, das práticas cotidianas e dos atos simbólicos do dia-a-dia. O narrador cético deseja comer o pão da comunhão cristã, não para sentir a transcendência do símbolo, ao contrário, quer constatar a derrocada dos ritos e o “desgosto” da religião. Não há comunicação de sentidos, nem pronunciamento de esperanças e, talvez por isso, o narrador se assuste tanto ao ver/escrever que apesar de toda precariedade da vida de Macabéa, parecia haver nela uma espécie de crença: “Pois, por estranho que pareça, ela acreditava”301. Essa perplexidade de Rodrigo é uma radicalização da narrativa. Pois, se de um lado ela parece ter um suposto

298 “Os símbolos religiosos valem-se da realidade infinita para expressar a nossa relação com o infinito”. In:

TILLICH, Paul. A Era Protestante. São Paulo: Ciências da Religião, 1992, p.89.

299 LISPECTOR, Clarice. op. cit., p.55 300 Idem, ibidem. p.19.

sentimento de “fé”, isto é, uma aparente atitude positiva frente ao quadro de negativas da sua vida, por outro, constatamos a alienação radical da personagem, da consciência de si e, mais ainda, da possibilidade de transcendência da vida humana. “... Rezava mas sem Deus, ela não sabia quem era Ele e portanto Ele não existia”302.

A crise da literatura, a ineficácia da palavra, lança outra discussão, o fracasso dos símbolos e a sua incapacidade de comunicar sentidos à vida humana. Macabéa é desprovida das coisas que a tornariam humana, é desassistida das possibilidades de experiência do belo, do transcendente e do numinoso. Apesar de fazer as perguntas necessárias à sua vida, de praticar atos capazes de transcender e alterar sua condição, seus atos religiosos não passam de atitudes banais, inconscientemente praticados no entremeio do cotidiano. Não alcançam sua interioridade, muito menos sua realidade social. Por isso, concordamos com Suzi Sperber, quando diz que:

Clarice Lispector apresenta a estrutura interna do ser humano massacrado. Com este, processo aparentemente de pura introspecção e de pura fabulação filosófica, ela questiona o mundo organizado e a cultura dominante, resgatando do preconceito os ofendidos e humilhados303.

O fracasso simbólico que paira a narrativa é a constatação de uma subjetividade massacrada, de uma existência negada. Essa derrota simbólica tem como pano de fundo uma denúncia, uma crítica radical a todos os valores e alicerces que fundamentam a sociedade moderna, a realidade de Macabéa. A denúncia social do romance se amplia, por ser uma palavra radical à religião em que se forjou e ainda se fundamenta essa sociedade. Em outras palavras, a narrativa parece ser um não ao cristianismo e suas idiossincrasias. É essa denúncia que suscita de nós melhor e maior compreensão dentro do romance.

301 LISPECTOR, Clarice. op. cit., p.39. 302 Idem, ibidem. p.34.