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3.1.2 Crítica à religião

3.3. O judaísmo encalacrado

3.3.1. A vingança do texto

(...) E minha vida, mais forte do que eu, responde que quer porque quer vingança e responde que devo lutar como quem se afoga, mesmo que eu morra depois. Se assim é, que assim seja369.

Em todos os aspectos que trabalhamos, procuramos atentamente demonstrar e dialogar em torno das possíveis ressonâncias da escritura clariceana com características centrais da tradição judaica e, especialmente, com a tradição mística. Contudo, nenhuma outra característica evoca mais o judaísmo do que esta, a de ser justamente texto. As três grandes

368 “A religião é a substância da cultura e a cultura, a forma da religião”. In: TILLICH, Paul. op. cit., p.89. 369 LISPECTOR, Clarice. op. cit., p.81.

religiões monoteístas se caracterizam, fundamentalmente, em serem religiões do livro. No entanto, enquanto no islamismo o livro sagrado é uma espécie de nicho metafísico, um presente de Alá aos fiéis, no cristianismo e, especialmente no judaísmo, o livro sagrado, se constitui na história humana, em suas lutas e exílios, e é o lugar da revelação, onde Deus deve ser buscado. Toda força simbólica destas duas religiões se fundamentam justamente neste aspecto, a de serem religiões do livro. E por isso, são decisivas a influência que exercem no desenvolvimento da própria literatura.

No caso específico do judaísmo, atentamos para o fortíssimo desenvolvimento que terá na formação de escolas e tradições de pensamento. Todos os movimentos místicos, assim como toda a tradição judaica, nutrem profunda admiração à palavra. É bem verdade, que no cabalismo este aspecto se intensifica de forma mais visceral. Pois, conforme Scholem, o texto bíblico na mística da Cabala é símbolo da própria vida divina370. Essa idéia é uma profunda mostra de como o texto se tornou decisivo para a própria contemplação mística, bem como, para perpetuação da própria tradição religiosa. Isso, nada mais é, do que uma continuação e ampliação do legado rabínico que foi determinante para a própria formação e sobrevivência do judaísmo, tal como conhecemos. Esse debate sobre a importância do texto escrito pode ser mais claramente entendido numa impressionante história contada no Talmude:

Naquele dia, Rabi Eliezer usou todos os argumentos do mundo. E eles não aceitaram a sua opinião. Ele lhes disse: “Se a lei é como eu digo, que esta alfarrobeira o prove.” E a alfarrobeira foi deslocada em cem cúbitos do lugar onde estava. E alguns chegam mesmo a dizer quatrocentos cúbitos. Mas eles disseram: “Não se pode comprovar nada com uma alfarrobeira.” E ele respondeu dizendo: “Se a lei é como eu digo, que o aqueduto prove.” E o aqueduto virou ao contrário [i.é., a água mudou de direção, passando a correr para cima]. Mas eles lhe disseram: “Não se pode comprovar nada com um

370 “O Deus oculto Ein-Sof, manifesta-se aos cabalistas sob dez aspectos diferentes, que por sua vez abrangem

uma variedade infinita de tons e gradações. Todo grau tem seu próprio nome simbólico. Em escrita conformidade com suas manifestações peculiares. Sua soma total constitui uma estrutura simbólica altamente complexa, na qual toda palavra bíblica corresponde a um das Sefirots. Esta correspondência [...] capacita os cabalistas a basearem sua interpretação da Bíblia na suposição de que todo versículo não só descreve um evento na natureza ou história, mas além disso é um símbolo de uma certa fase do processo divino, um impulso da vida divina”. In: SCHOLEM, Gershom. op. cit., p.97.

aqueduto.” E ele responde dizendo: “Se a lei é como eu digo, que as paredes da academia o provem.” E as paredes da academia se curvaram para cair. Mas Rabi Josué repreendeu-as [as paredes]. Disse-lhes: “Se os estudiosos discutem uns com os outros sobre a lei, o que tendes com isso? Elas não caíram, em respeito ao Rabi Josué. E não se endireitaram, em respeito ao Rabi Eliezer. E ainda continuam curvas. E ele respondeu dizendo: “Se a lei é como eu digo, que eles os provem dos céus.” Uma voz emanou e disse: “Que [lugar] tendes ao lado de Rabi Eliezer, pois a lei é como ele diz em todos os casos.” Rabi Josué se levantou e disse: “Não está nos céus.” O que quer dizer “Não está nos céus”? Rabi Jeremias respondeu: “[Quer dizer] que a Torá já foi ditada no monte Sinai. Nós não damos atenção a uma voz, pois no monte Sinai Tu já escreve ste na Torá: “seguir a maioria.” Rabi Natan encontrou Elias. E lhe perguntou: “O que o Santíssimo, Abençoado Seja Ele, fez naquele diz?” E ele respondeu: “Ele riu. E disse: “Meus filhos me derrotaram. Meus filhos me derrotaram”371.

A historieta acima é uma pequena mostra da importância do texto para o judaísmo, como vemos, os rabinos baseados na Torá, desautorizam o próprio Deus. Parafraseando as palavras de Friedman, o que importa agora é o texto, e não mais Deus em si372. A

preocupação e a busca se dá por meio da palavra, ou seja, por meio dos sentidos secretos e dissonantes do texto.

Chamamos atenção, desde as primeiras linhas desta pesquisa, que nosso olhar e preocupação estaria no texto. Concebemos que todo esse debate sobre a relação do texto no judaísmo se insere como mais uma mostra de como Clarice, ainda que inconsciente, evoca muito bem a sua tradição. A referência intertextual de A Hora da Estrela, o livro de Macabeus faz parte do conjunto de textos apócrifos, isto é, que não faziam parte do cânon da Bíblia Hebraica. É inegável o valor simbólico e teológico dessa narrativa dentro do judaísmo373, mas, é impossível passarmos por esse dado, sem constatarmos mais uma vez, o jeito oblíquo de Clarice compor sua obra. A autora, que tinha grandes problemas com

371 FRIEDMAN, Richard Elliot. op. cit., p.138. 372 Idem, ibidem. p.142.

373 “A revolta dos asmoneus foi, com efeito, a única das muitas rebeliões dos judeus, sob o domínio greco-

romano, que culminou com uma vitória judaica [...] Este fato, junto com a compreensão de que estes foram acontecimentos que salvaram a religião judaica, através das gerações. Sua memória é preservada em Hanucá, o mais importante dos feriados judaicos, que não estão enraizados no cânone judaico e nas orações ligadas a ele, que exalta a vitória dos poucos contra muitos”. Conf. STERN, Menahem. A Revolta dos Asmoneus e seu Papel na História da Religião e da Sociedade Judaica. In: UNESCO. Vida e Valores do Povo Judeu. São Paulo: Perspectiva, 1972, p.106.

rótulos e definições, traz à tona em seu último texto, ainda que de forma dissimulada, ainda que retomando um texto apócrifo, Clarice revela e resgata a sua tradição. Ação que não pode ser entendida como uma preocupação confessional. Ao contrário, Clarice nunca esteve preocupada com os chavões da religião institucional e, sim, com as histórias e situações humanas que as narrativas ensinam. Por isso, há em toda a sua obra, uma intrigante marca bíblica. Waldman dirá que A Hora da Estrela, a exemplo de tantos outros textos, se mostra como um comentário à Bíblia374. Isso, aliás, será para a pesquisadora de Clarice uma de suas características mais fontais, esse movimento de busca e compreensão que se inscreve nos grandes comentários exegéticos, que reiteradamente intentam chegar pela via do texto à divindade, o que, nas palavras de Waldman, se trata de: “... tarefa de antemão fada ao fracasso”375. Esse movimento contínuo de comentário é claramente visível na ação do narrador de A Hora da Estrela. Rodrigo vai passo a passo, não só narrando, mas explicando, comentado e, sobretudo, se engajando com Macabéa. O esforço do narrador, a exemplo do trabalho exegético e de investigação mística, está fadado ao fracasso, à frustração de não conseguir alcançar e nem salvar a pobre sertaneja.

Essa ação de comentário traz a tona, uma vez mais, as proximidades entre Kafka e Clarice. O que suscita dizer que ambos, cada um à sua maneira e contexto, responderam aos reflexos de sua tradição comum. Robert Alter, em seus estudos sobre três grandes monstros da modernidade, Kafka, Scholem e Benjamim, descreve variadas vezes, a preocupação que a obra do escritor tcheco provocou no grande estudioso da mística judaica. Este intitulou a obra de Kafka, como “luz do canônico”, por serem narrativas provocadoras de sentido e desencadeadoras de interpretações376. Creio que essa evocação de Scholem, por parte de Alter em seus estudos, serve plenamente para nosso trabalho, no que tange a situar Clarice dentro dessa tradição de textos permeados por uma insígnia do canônico. Seus textos, tais

374 WALDMAN, Berta. op. cit., p. XXVII 375 Idem, ibidem. p. XXVII

como o de sua tradição, são marcados por uma gama muito vasta de provocações temáticas, por um excesso de sentidos e referências nas palavras.

A tradição, nunca confessada plenamente por Clarice Lispector, se desvela claramente em A Hora da Estrela como amostra de uma vingança do texto. Não apenas como catarse, o que me leva discordar de Nádia Gotlib, até porque a própria Clarice parecia rejeitar essa idéia de literatura377. Mas, ao invés disso, como um prova de que todo movimento da autora em seu próprio mundo ficcional, se desfecha no retorno ao tempo das origens, num acerto de contas com um passado duramente vivido, e como mostra de um futuro ansiosamente esperado. Em A Hora da Estrela, a vida humana luta agônica e visceralmente até o último momento.