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2.1 Macabéa: um nome que ninguém tem

2.1.3 A rejeição de Macabéa

É na metrópole, que se revela todo o desprovimento existencial de Macabéa. O autor- narrador-personagem escreve está fatídica história, também como um meio de se livrar, de qualquer possibilidade de compromisso com a realidade dos desfavorecidos. Isto está claro num dos 13 títulos da obra: “Ela que se arranje”196. Clarice Lispector, não segue a tipologia romanesca em voga desde o século XIX, pois debate, entre outras coisas, a idéia de “autor engajado”, e mostra que, de uma certa forma, na literatura da sua época também havia lugar para o escritor não-engajado, para aquele que não quer se imiscuir no mero debate das representações e tipologias sociais, se esquecendo da questão maior, o problema da condição humana197.

Clarice inventa Rodrigo, que por sua vez inventa Macabéa, demonstrando o grau de complexidade, o jogo de identidades que ocorre na trama198. O narrador de A Hora da Estrela se limita a contar as fracas aventuras de uma moça numa realidade toda feita contra

196 Um dos 13 títulos de A Hora da Estrela, e, que serve como uma referência hipertextual, uma porta de entrada

para o romance que sugere o caráter errático e desprezivo de Macabéa.

197 “A escritora deseja, na realidade, denunciar a gravidade da condição humana, única realidade que lhe parece

convincente, que é a impossibilidade de um conhecimento pleno. Essa angústia leva-a a uma reação de cólera como forma de escrever”. In: texto divulgado na internet: RÉGIS, Sonia . O Pensamento Judaico de Clarice

Lispector. O Estado de São Paulo, 14/05/1988. Disponível em <http://www.clarice-lispector.cbj.net/.> acessado em: 11 de abril 2005.

198 “Suspendendo pois a sua máscara pública de ficcionista acreditada, ao identificar-se com S.M., na verdade

Clarice Lispector, e por intermédio dele com a própria nordestina – Macabéa, a quem se acha colocado o autor interposto -, Clarice Lispector faz-se igualmente personagem [...] Por essa mensagem dirigida aos leitores, Clarice Lispector abre o jogo da ficção – e o de sua identidade como ficcionista”. In: NUNES, Benedito. Clarice

Lispector ou o Naufrágio da Introspecção. Remate de Males – Revista de Teoria Literária, Campinas: Unicamp,

ela199. É nesta configuração espacial que se dá a emboscada existencial de Macabéa, ela que após a morte da tia, vivia sozinha e morava num quarto onde morava outras moças200. Segundo o narrador: “o quarto ficava num velho sobrado colonial da áspera rua do Acre entre as prostitutas que serviam a marinheiros, depósitos de carvão e de cimento em pó, não longe do cais do porto”201. É na grande cidade capitalista que se vê de forma clara como os processos sociais e econômicos se expressam radicalmente na configuração dos processos espaciais202. Segundo o pesquisador Roberto Lobato Corrêa:

Os grupos sociais excluídos têm como possibilidades de moradia os densamente ocupados cortiços localizados próximos ao centro da cidade – velhas residências que no passado foram habitadas pela elite e que se acham degradadas e subdivididas (...)203.

A narrativa coloca a personagem dentro desta zona de exclusão que caracteriza a vida de inúmeras pessoas, que se agrupam próximos ao centro das grandes cidades, para se mover com menos dificuldade para o seu local do emprego. Partindo disso, podemos entender o mundo de exclusões e de dificuldades da moça alagoana. Entretanto, mais dramático do que a realidade social é constatar o estado ontológico de Macabéa, um pessoa que: “... vive num limbo impessoal, sem alcançar o pior nem o melhor. Ela somente vive, inspirando e expirando, inspirando e expirando”204.

“Rua do Acre para morar, rua do Lavradio para trabalhar, cais do porto para espiar no domingo, um ou outro prolongado apito de navio cargueiro que não se sabe por que dava aperto no coração”205. A excrescência social toma contornos radicais quando o narrador passa a contar os relacionamentos de Macabéa. Convivia com quatro moças, todas tinham

199 LISPECTOR, Clarice. op. cit., p.15. 200 Idem, ibidem. p.30.

201 Idem, ibidem. p.30.

202 CORRÊA, Roberto Lobato. O Espaço Urbano. São Paulo: Ática, 1989, p.36. 203 Idem, ibidem. p. 29-30.

204 LISPECTOR, Clarice. op. cit., p.23. 205 Idem, ibidem. p.31.

por nome Maria206, e com quem muito pouco conversava. Trabalhava num pequeno escritório, profissão: obstinadamente “datilógrafa”, ela que não entendia muito bem o significado das palavras, e batia lentamente letra por letra, palavra por palavra. Inconsciente que para além de si existia um outro (será Deus?), datilografando cada momento de sua vida, o seu autor-narrador, que estranhamente reconhece que seu ato criativo seguia uma “oculta linha fatal”. Sugerindo, que em seu intento de descrever, de narrar as errâncias da nordestina, se faz como um ato de luta contra a realidade, contra a própria sina marcada de Macabéa. E, problematizando ainda mais a questão do fazer literário como um ato divino. Homem e Deus se encontram na mesma condição, ambos são criadores, ao mesmo tempo que são fracassados pois não conseguem alterar o destino de suas criaturas, as personagens.

Para Macabéa tudo está sempre mais distante, mais longe que o necessário, quando seu patrão deixa um livro por cima da mesa, intitulado Humilhados e Ofendidos, oferecendo assim uma possibilidade de Macabéa ler o título e quem sabe se reconhecer. A retirante: “Pensou, pensou e pensou! Chegou a conclusão que na verdade ninguém jamais a ofendera, tudo que acontecia era por que as coisas são assim mesmo e não havia luta possível, para que lutar?”207.

Waldman, diz que:

Ao deixar o livro Humilhados e Ofendidos no campo de visão de Macabéa, o narrador acena-lhe com um espelho onde ela poderia contracenar com a própria imagem e se reconhecer. Mas coloca-o fora de seu alcance pois ele pertence ao patrão, ficando a personagem perdida, à mercê do vazio da imagem no espelho, da fascinação que as grandes estrelas de cinema exercem sobre ela e com as quais ela busca uma identificação grotesca e inviável208.

206 “Mas as companheiras de quarto – Maria da Penha, Maria Aparecida, Maria José e Maria apenas – não se

incomodavam”. In: LISPECTOR, Clarice. op. cit., p.30.

207 Idem, ibidem. p.40.

A rejeição de Macabéa se mostra muito ironicamente quando ela se espelha em Marilym Monroe209. Seus ídolos, na verdade, são sua própria negação. Não tem a oportunidade de se espelhar nas personagens do texto literário, do seu título e história. Sua rejeição se dá na narrativa, quando tem que lidar com as pessoas, tem que usar as palavras. É ai que a narrativa mostrará a rejeição de Macabéa e revelará o seu verdadeiro destino!