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2.1 Macabéa: um nome que ninguém tem

2.3 A falsa profecia

2.3.1 O desvelar de Macabéa

Macabéa está diante de madama Carlota, o único recurso possível à nordestina ante a sua sina de perda. A presença da cartomante, além de anunciar um tipo de modalidade mágica245 profundamente enraigada na vivência religiosa brasileira, reporta

243 Todas as atitudes e decisões de Macabéa dentro do romance, que são poucas por sinal, são precedidas com a

expressão “explosão”, sugerindo na narrativa um efeito de grandiosidade, de confronto ao absurdo existencial a que parece destinada.

244 LISPECTOR, Clarice. op. cit., p.70.

245 A cartomancia é uma, entre tantas práticas mágicas de adivinhação, que tem no jogo das cartas a sua procura

por revelação. Pode ser entendida como uma prática de: “... adivinhação externa, artificial ou indutiva pela observação e interpretação de sinais exteriores, enviado pelos deuses...” In: JUNIOR, João Ribeiro. O que é

intertextualmente o conto A cartomante, de Machado de Assis. Clarice, igualmente ao autor de Dom Casmurro, coloca numa modalidade mágica, profusamente mal-vista e marginalizada, o meio para sinalizar vida e esperança a personagem. A cartomante é a entidade religiosa da narrativa, a porta-voz da palavra. E a recepção da figura religiosa a Macabéa, não poderia ser em melhor estilo: “O meu guia já tinha me avisado que você vinha me ver”246. A cartomante disfarçada por meio de um discurso de caridade cristã, mascara a realidade da sua sobrevivência de ex-prostituta, pois agora tem o status de “vidente”. Ela é um contraponto à não-existência de Macabéa, pois inverte pelo malogro de sua linguagem todas as negativas dadas à nordestina até agora: de “flor murcha” para “minha florzinha”, de “solitária” para “minha queridinha”. Seu nome, que era tão incompreensível e rejeitado por todos, agora passar ser visto como “muito lindo”. Antes, ironizada na escrita argúcia de Rodrigo S.M. como desprovida de um “Deus próprio”247, agora por meio da cartomante “estava ao lado de Jesus”248.

Esse jogo de palavras, expressões e afetos dá a Macabéa tudo que ela não possuíra até aquele momento: nome, qualidades e, sobretudo, o favor divino. A cartomante entremeia sua linguagem com um riquíssimo e parodiante sincretismo religioso249, denunciando na narrativa que o ato criativo de Clarice Lispector também se traduz num ato dissimulatório. Não há em Clarice nenhuma preocupação em escrever a partir de focos predeterminados ou tradições estabelecidas. O seu ato artístico não só rompe com as regras dos gêneros, como também põe em tensão as regras de sua tradição de origem, parodia com elementos do cristianismo, e intriga seus leitores com a presença de imagens e expressões que reportam a

246 LISPECTOR, Clarice. op. cit., p.72.

247 “Mas o misterioso Deus dos outros às vezes lhe dava um estado de graça...”. In: Idem, ibidem. p.63. 248 Idem, ibidem. p.73.

249 “Eu sou fã de Jesus. Sou doidinha por Ele. Ele sempre me ajudou. Olha, quando eu era mais moça tinha

bastante categoria para levar vida fácil de mulher. E era fácil mesmo, graças a Deus. Depois, quando eu já não valia muito no mercado, Jesus sem mais nem menos arranjou um jeito [...] Seja também fã de Jesus porque o Salvador salva mesmo. Olhe, a polícia não deixa pôr cartas, acha que estou explorando os outros, mas, como eu lhe disse, nem a polícia consegue desbancar Jesus”. In: Idem, ibidem. p.73.

várias manifestações de religiosidade. Demonstrando, que Clarice constantemente, faz um entrecruzamento de temas, símbolos e religiões250.

O narrador fala em tom ambíguo, pois ironiza, ao mesmo tempo, em que se solidariza: a cartomante pediu à retirante para “cortar as cartas”, “separou um monte com a mão trêmula: pela primeira vez ia ter um destino”251. A cartomante era para aquela pobre moça: “... um ponto alto na sua existência”252. E nessa hora tão alta para a existência baixa da pobre nordestina, a vidente estupefata gritou: “ – Mas, Macabeazinha, que vida horrível a sua! Que meu amigo Jesus tenha dó de você, filhinha! Mas que horror!”253. É com essa frase de assombro, que a cartomante faz nascer na nordestina um sentimento de perplexidade, pois: “Macabéa empalideceu: nunca lhe ocorrera que sua vida fora tão ruim”254.

A consciência existencial de Macabéa só nasce ante o poder desvelatório da palavra. Olga de Sá, em seu estudo sobre o procedimento de epifania, dirá que este conceito é:

(...) a expressão de um momento excepcional, em que se rasga para alguém a casca do cotidiano, que é rotina, mecanicismo e vazio. Mas é também defesa contra os desafios das descobertas interiores, das aventuras com o ser [...] Enfim, a epifania é um modo de desvendar a vida selvagem que existe sob a mansa aparência das coisas, é um polo de tensão metafísica, que perpassa ou transpassa a obra de Clarice Lispector255.

Em A Hora da Estrela a palavra está sob julgamento, fazendo Clarice se aproximar de Fernando Pessoa256. Contudo, mais do que qualquer outro texto seu, é nesta narrativa que a palavra aparece como o meio mais poderoso, para desvelar à personagem a precariedade e incongruência de sua existência. Por isto, o vaticínio da cartomante assume o lugar da

250 “É curioso o uso que Clarice Lispector faz das diferentes religiões na organização do seu texto, juntando o

cristianismo, religião oficial e hegemônica do país, ao judaísmo, tradição em que se formou, às religiões afro- brasileiras, cujo teor popular e mágico dissemina formas que vão se enlaçar às outras, num conjunto onde ressoam os ecos e a memória de sua diferença”. In: WALDMAN, Berta. op. cit., p.22-23.

251 LISPECTOR, Clarice. op. cit., p.75. 252 Idem, ibidem. p.75.

253 Idem, ibidem. p.75. 254 Idem, ibidem. p.76.

255 SÁ, Olga de. op. cit., p.134-135. 256 FUKELMAN, Clarisse. op. cit., p.10.

palavra de Deus. Palavra esta que até aquele momento não havia dado a Macabéa nenhuma possibilidade de contraponto, de esperança.

A narrativa mostra inúmeras vezes a presença do discur so religioso, explicitamente cristão, sendo apresentado apenas como mais um discurso entre tantos outros, a negligenciar da pobre nordestina a esperança de redenção e o confronto de sua realidade257. Se a palavra de Deus, também está sob julgamento, não poderia haver melhor forma para tal, do que por em confronto a linguagem e a religião do Deus cristão. Do que colocar por meio das palavras de uma ex-prostituta, a palavra reveladora, a própria salvação de Macabéa. E a eficácia da cartomante é muito evidente, pois não só falou de seu passado precário: órfã de pais, carente de carinho, alvo de pancadas da tia. Mas, a cada nova palavra, lançava a jovem a uma nova compreensão da sua vida, da sua própria condição. Não bastasse isso, a cartomante ainda revela a perda de seu namorado, como também a perda de seu emprego no futuro. Dando, assim, a possibilidade de um salto, de uma redenção para sua existência.