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1.3 Linguagem e religião e o drama de Clarice Lispector

1.3.3 A Hora da Estrela: Vida e Morte Macabéa

Chegamos ao nosso local de enfrentamento, o espaço onde se concentrará grande parte de nosso trabalho e esforço, o romance A Hora da Estrela. Com a finalidade de sondar e compreender o dilema em que está incrustada a retirante Macabéa, partindo disso, objetivamos debater as temáticas e tensões que o romance provoca. Como só se pode iniciar um diálogo, tendo em vista um conhecimento mínimo do outro, no nosso caso, a obra A Hora da Estrela. Cabe aqui, antes de adentrarmos propriamente a problematização que estamos enfocando no texto literário, apresentar em algumas palavras, a história da narrativa, ou como observará Benedito Nunes, as histórias que movimentam o texto:

Três histórias se conjugam, num regime de transação constante em A Hora

da Estrela . A primeira conta a vida de uma moça nordestina que o narrador,

Rodrigo S. M., surpreendeu no meio da multidão [...] A segunda história é a desse narrador interposto, Rodrigo S. M., que reflete a sua vida na vida da personagem, acabando por tornar-se dela inseparável, dentro da situação tensa e dramática de que participam. Mas essa situação, que os envolve, ligando o narrador à sua criatura, como resultante do enredamento pela narrativa, das oscilações do ato de narrar, hesitante, digressivo, a preparar a sua matéria, a retardar o momento inevitável da fabulação, constitui uma terceira história – a história da própria narrativa118.

Inevitavelmente, vez ou outra, teremos que polarizar entre estas três histórias, que se movimentam e se coadunam na narrativa clariceana, muito embora nosso olhar queira focar de forma especial, a saga bíblica de Macabéa. A nota acima já antecipa um pouco daquilo que queremos apresentar neste primeiro momento, para posteriormente problematizar de forma mais ampla e profunda a relação das personagens com a figura central do romance, bem como, as temáticas que se desvelam desta tensão constante que marca A Hora da Estrela.

Já conhecemos o nome do narrador da história, Rodrigo S. M.: homem da classe média e de erudição, que dilacerado por questionamentos e impasses, passa a escrever sobre

a vida de uma moça nordestina, que viu de relance numa rua do Rio de Janeiro, perdida em seu olhar vago e impreciso119. Se trata de uma pessoa pouco interessante, que “...mal tem corpo para vender, ninguém a quer, ela é virgem e inócua, não faz a falta a ninguém”120. O narrador Rodrigo S. M., que ao que parece também possui origem nordestina121, muito embora com outra formação cultural, por várias vezes: “justifica a pobreza da narrativa por causa das dúvidas em relação à vida e à literatura”122. Se trata de um narrador que está questionando e problematizando a todo instante o ato criativo, a própria literatura e, por conta disso, se entranha num fortíssimo dilema sobre o poder da palavra e sua capacidade em mostrar a precariedade da vida humana, sobretudo, quando esta tem a forma ontológica de uma mulher que apenas reduzira-se a si.

O nome da personagem Macabéa só aparece no romance muitas páginas depois, após muitas reflexões e ponderações do narrador sobre a questão da escrita, sobre o problema da jovem nordestina e sobre a sua própria condição humana e existencial como escritor. É este o narrador, que falará sobre Macabéa, uma moça vinda do sertão de Alagoas, e que encontra na cidade grande um espaço de oposições. Os outros personagens estão todos ligados ao espaço social da jovem, muito embora nunca tenham estabelecido com ela uma relação de alteridade e afetividade. Destacamos, as quatro moças que moram com Macabéa no pequeno quarto de um sobrado velho, e com quem vive uma relação social tênue e vazia.

119 LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.12. 120 Idem. ibidem, p.13.

121 No romance essa idéia sobre a origem do narrador não parece clara, o que o texto nos diz é que: “...É que

numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina. Sem falar que eu em menino me criei do Nordeste”. In: Idem, ibidem. p.18. Clarisse Fukelman é explícita em afirmar que o narrador também possui uma origem nordestina, para nosso trabalho, a questão não é central, e sim o fato de que esta situação como tantas outras que aparecerão ao longo do romance serão decisivas para demonstrarem que Clarice Lispector não consegue se esconder por trás de seu narrador Rodrigo S. M., é o único livro onde Clarice explicita sua autoria, já na dedicatória do livro nos fazendo entender que o livro possua um caráter de confissão. Desta forma, a autora que viveu no nordeste quando criança, é possível aqui referenciar aquilo que Nádia Gotlib chama de “catarse de um passado nordestino”. Nossa compreensão porém, deste aspecto, é que não se trata de um expurgo, uma rejeição desta referência cultural. Mas, ao invés disso, de um acerto de contas, um desabafo e a manifestação de um texto que quer falar das contradições sociais que marcam a vida dos retirantes.

122 GUIDIN, Márcia Lígia. Roteiro de Leitura: a hora da estrela de Clarice Lispector. 2ª ed., São Paulo: Ática,

Olímpico, nordestino, valente e forte, que empenha com orgulho o fato de já ter assassinado um homem, que será seu namorado por algum tempo, e igualmente a ela também não possui a “cultura”123 que tanto poderia lhes ajudar em sua salvação. Macabéa e Olímpico vivem um curto relacionamento de amor, um amor sem eros, sem corpo, e de parcas palavras. Ambos transfiguram com suas referências nominais, as duas tradições filosóficas na qual está calcado o ocidente, desvelam duas estruturas de mentalidades distintas entre si, mas, que marcam profundamente a obra clariceana. Duas formas de pensar, que através da força simbólica dos nomes, não alcançam dentro da realidade do texto-obra um momento de coesão e encontro.

No romance, ocorre um quase triângulo amoroso, uma vez que, Olímpico não coloca a nordestina em pé de igualdade com Glória, a colega de trabalho, que é oposta a Macabéa. Ao final da história aparece a cartomante, “... estereótipo da figura mística bem construída pela experiência narrativa de Clarice”124, que terá papel decisivo no destino da pobre sertaneja. Que no desfecho da história morre atropelada, vítima de um carro estrangeiro, que possui o símbolo de uma estrela. Eis a hora da estrela!