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3.1.2 Crítica à religião

3.4. Macabéa e a luta pela vida

3.4.1. Mística agônica

O grande tema de A Hora da Estrela é o problema da alteridade. Em outras palavras, a obra deve ser vista como a tentativa desesperada de se encontrar o outro que vive no abscôndito de nossa existência. Esse outro inscreve no romance várias dimensões. Porém, a busca intensa do narrador pela inócua Macabéa é o movimento da narrativa em busca desse outro estranho e imperceptível que persiste em nossa realidade. O ato da narrativa, é um busca por Deus, busca por um horizonte de sentido e esperança frente as atrocidades históricas do cotidiano. A “predestinada de Javé” vive passo a passo num limbo de desencontros, numa via de errância. Sua ignorância cultural deflagra um desprovimento que se espreita no próprio limite do ser, em sua ontologia. Macabéa vive na fronteira do ser, e sua impessoalidade histórica manifesta o seu aspecto de não-ser. O que nos coloca numa

história ficcional, que revela como os limites da própria vida estão intrinsecamente ligados com as relações concretas de nossa existência humana.

O tom ambíguo e contraditório do narrador atesta a sua propensão à dimensão sensível. Não se trata de um intelectual e, sim, de alguém que “escreve com o corpo”378. Sua fala assume aspectos de angústia e, em sua busca por Macabéa, não resiste à tentação de fazer breves, porém, agudas sátiras sobre Deus. A sensação não pode ser outra, como podemos pensar ou falar em Deus quando olhamos para a vida de Macabéa. O narrador, a exemplo de Nietzsche, constata a ausência de Deus. Essa tragédia interna perpassa toda a ficção, contaminando a sua forma de narrar a vida de Macabéa. Toda narrativa nos mostra um grito em busca de sentido num mundo de aniquilações ontológicas. Por isso, assumo as palavras do crítico literário Silviano Santiago: “Clarice não fala do céu e do inferno, estes, escreve ela, “nós já conhecemos”. Ela dá continuidade à reflexão filosófica sobre um existir humano que desafia à moral dos preceitos teológicos canônicos”379.

Clarice é um desafio à teologia? Sim, sobretudo, aquela que se reduz ao dogma e as idiossincrasias das instituições religiosas. Por evocar em sua própria tessitura, ressonâncias da tradição mística, a exemplo destes, ela se coloca numa área in extremis. Os místicos viviam no limite da religião, pois desejavam aquilo que havia de mais profundo na própria revelação. Dentro dessa dinâmica, A Hora da Estrela revela como as contingências históricas possuem uma camada muito mais profunda.

Ao contrário da narrativa dos Macabeus, a história de Macabéa não é marcada por grandes atos de bravura e, sim, por uma sina de luta e sofrimento dentro dos limites da existência. Luta que acontece no mundo do texto, que do início ao fim mostra o movimento moroso, inquieto e agônico de Macabéa rumo ao seu scathon. Todas as meditações de Macabéa, suas contemplações vazias na grande amplidão que se mostrava à sua frente,

378 LISPECTOR, Clarice. op. cit., p.16.

revelam o caráter misterioso da personagem, a mística da própria narrativa. Essa liberdade interior que possuía foi o único espaço absoluto de Macabéa. Por isso, a busca do narrador em nos mostrar as ponderações de Macabéa, sua vacuidade e desejo, revelam o intento de também nos mostrar a transcendência do texto e da vida. Dentro disso, se inscreve o embate interno da obra: “... como é que num corpo cariado como o dela...”380, possuía lascívia, crença e, sobretudo, vida. Como diante de todas as desarticulações históricas, ela persistia existir, inconsciente de sua história e de seu futuro, limitada por seu próprio ser. A radicalidade de A Hora da Estrela nos mostra não só um aspecto de ambigüidade da prosa, mas também de compulsividade pela vida. “Essa audácia lhe deu um inesperado ânimo para audácia maior (explosão)...”381.

Nas palavras de Nádia Gotlib, A Hora da Estrela é uma narrativa agônica382, é o desfecho existencial de personagem e autora. O que nos faz atentar, para a luta visceral que se inscreve no romance, em prol da vida. Clarice, a mulher que se caracterizou por sua estranheza e singularidade, deixa entrever em toda a sua obra e vida a sua preocupação suprema com o mistério da morte383 e, além disso, a sua relação tensa e radical com a palavra, vivida até o último sopro de vida384. Há uma paixão pela existência, que marca personagens e autora, que se intensifica em Macabéa em sua mística agônica, em suas tentativas de se buscar um outro que sempre se colocava mais distante: (“Ah, pudesse eu pegar Macabéa...”385, dirá o narrador).E, acima de tudo, em sua luta final pela vida:

Agarrava-se a um fiapo de consciência e repetia mentalmente sem cessar: eu sou, eu sou, eu sou. Quem era, é que não sabia. Fora buscar no próprio

380 LISPECTOR, Clarice. op. cit., p.61. 381 Idem, ibidem. p.71.

382 GOTLIB, Nádia Battela. op. cit., p. 472.

383 “O que chamo de morte me atrai tanto que só posso chamar de valoroso o modo como, por solidariedade com

os outros, eu ainda me agarro ao que me chama de vida. Seria profundamente amoral não esperar, como os outros esperam, pela hora, seria esperteza demais a minha avançar no tempo, e imperdoável ser mais sabida do que os outros. Por isso, apesar da intensa curiosidade, espero”. In: LISPECTOR, Clarice. Espera Impaciente. In:

A Descoberta do Mundo, (crônicas). Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 205, (publicada em 28/06/69).

384 “A paixão pela existência está também muito presente no mo do como Clarice Lispector se relaciona com o

texto. Embora se debatesse entre a desilusão e a alegria dolorosa que a atividade literária lhe proporcionava, e o desejo de simplesmente viver, ela escreveu até a morte”. In: WALDMAN, Berta. op. cit., p.41.

profundo e negro âmago de si mesma o sopro de vida que Deus nos dá. [...] Um gosto suave, arrepiante, gélido e agudo como no amor. Seria esta a graça a que vós chamais de Deus? Sim? Se iria morrer, na morte passava de virgem a mulher. Não, era a morte pois não a quero para a moça: só um atropelamento que não significava sequer desastre. Seu esforço de viver parecia uma coisa que, se nunca experimentara, virgem que era, ao menos intuíra, pois só agora entendia que mulher nasce mulher desde o primeiro vagido. O destino de uma mulher é ser mulher386.

A morte foi o grande eros de Macabéa, no limiar de sua existência, desvendou-se todos os mistérios da sua condição: sua feminilidade, a consciência de sua história e o esforço último em prol de sua vida. A estranha marca agônica e mística de sua existência in extremis, de sua busca fracassada, porém, entretecida até o final. Do esforço último que lhe fez sabedora de sua “trágica vida”, sua luta travada na sarjeta da existência, metáfora de nossa condição e culpa, onde ela pronuncia com força e desejo: “Quanto ao Futuro”387.