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A FORMAÇÃO DO ESTADO INDIANO: DA COLONIZAÇÃO À

Mapa 1 – Mapa Político da Índia

3 EXTRAÇÃO E MOBILIZAÇÃO: O ESFORÇO DE MODERNIZAÇÃO

3.1 A FORMAÇÃO DO ESTADO INDIANO: DA COLONIZAÇÃO À

A constituição do Estado nacional na Índia tem suas origens há pelo menos dois milênios, com uma sequência intermitente de impérios pré-coloniais (Maurya, Gupta e Mogol) que buscaram unificar o subcontinente indiano, que já continha elementos culturais e sociais comuns, porém sempre marcado pela divisão política. Estes impérios seguiam, grosso modo, o modelo de império tributário, com uma burocracia administrativa forte e grande alcance territorial.

No entanto, o Estado pré-colonial era separado da atividade econômica e sufocava a ascensão de elites mercantes ou produtoras que colocassem seu mandato em risco. Somado a isso, as elites políticas seguiam a lógica do patrimonialismo. Devido a este conjunto de fatores, não houve um impulso coeso de modernização (KOHLI, 2004).

A colonização britânica trouxe algumas mudanças positivas, como a criação de um Estado moderno de autoridade racional legal, com o parlamento e eleições democráticas aos moldes das instituições inglesas. Foi criado um poderoso exército expedicionário - e também para segurança interna -, mas totalmente subordinado à autoridade civil. Pela primeira vez houve a construção de uma extensa rede de infraestrutura física, especialmente a malha ferroviária, que ligava todas as partes do subcontinente indiano.

O serviço burocrático, denominado Indian Civil Service (ICS), nasceu como um corpo de elite altamente profissional, retirando seus quadros das melhores universidades britânicas, sendo responsável pela administração central e local, incluindo taxação, polícia e judiciário.

Após a Primeira Guerra Mundial, o ICS passou a recrutar as elites intelectuais indianas, como parte de um acordo de transição para “indianização” da administração do Raj Britânico. O recrutamento profissional conduzido em todo o território nacional também auxiliou na construção da unidade indiana após a independência.

Posteriormente, o Congresso Indiano manteve a estrutura do ICS, renomeando-o para Indian Administrative Services (IAS), que continua a ser uma burocracia de elite. Contudo, o ICS era uma elite minúscula se comparado à massa da burocracia - sempre composta por funcionários indianos e britânicos de baixa instrução. Outro problema, que permanece nos dias atuais, é a característica generalista dos funcionários recrutados, ao invés de apostar na sua especialização para os cargos a serem ocupados (KOHLI, 2004).

A segunda instituição que ajudou a construir a unidade nacional no período colonial foi o Exército da Índia Britânica (EIB). O principal legado do EIB para as Forças Armadas da Índia foram o profissionalismo, o controle civil sobre os militares e a experiência de combate. Inicialmente, o Exército era uma força reduzida e utilizada quase que exclusivamente para a manutenção da ordem interna. Com o Grande Jogo da Inglaterra e do Império Russo no Afeganistão e principalmente a partir da Primeira Guerra Mundial, o EIB se tornou uma poderosa e numerosa força de combate com capacidades expedicionárias (WILKINSON, 2015).

Contudo, a formação social do EIB atendeu diretamente ao interesse britânico de “dividir para governar”, com o recrutamento de regimentos étnico-religiosos predominantemente do norte indiano (as chamadas castas marciais). Este padrão de divisão incompatível com os valores seculares e democráticos ainda permanece dentro do Exército Indiano nos dias atuais (WILKINSON, 2015; ROY, 2015). Além disso, a maior deficiência operacional herdada pelo exército foi o baixo número de oficiais de alta patente, devido à relutância britânica em conferir treinamento ou postos no alto escalão aos indianos. Este fator foi identificado como um dos principais déficits no planejamento e execução da guerra contra a China em 1962 (RAGHAVAN, 2010).

Do ponto de vista econômico, os britânicos preferiram manter um Estado fraco e limitado, de caráter liberal e sem intervenção na atividade econômica. Não houve política de mobilização para modernização e industrialização que fosse além do mínimo necessário para extrair recursos da sociedade indiana. Ao invés de aprofundar o alcance do Estado, os ingleses fizeram uma série de acordos de proteção com os estados principescos, governados com grande autonomia pelas elites monárquicas hereditárias (KOHLI, 2004).

Os interesses britânicos forçaram a primarização da economia indiana, que havia se mantido como segundo maior produtor mundial de manufaturas até 1750, estando atrás apenas da China. A ascensão da Inglaterra enquanto potência hegemônica, sob muitos aspectos, deu-se às custas da exploração do subcontinente indiano, que era fonte de recursos e mercado consumidor de seus produtos industrializados (ANIEVAS; NISANCIOGLU, 2015). Em especial, as indústrias indianas de têxteis e construção naval, que estavam entre as maiores e mais qualificadas do mundo, foram destruídas durante a colonização (THAROOR, 2016).

Durante o período colonial, a Índia, que antes representava 23% do PIB mundial e 27% das exportações em manufaturas, passou a ter apenas 3% e 2% destes mesmos indicadores globais. Mais do que isso, os britânicos efetivamente saquearam a Índia, seja por meio de taxação abusiva, que representava até 50% da renda dos agricultores locais, ou da corrupção dos oficiais britânicos. A maior parte desta renda não retornava como bens públicos, mas rumava diretamente aos cofres de Londres. Ao final do Século XIX, a Índia era a maior fonte de receitas e o maior mercado consumidor de exportações britânicas (THAROOR, 2016).

As condições socioeconômicas da Índia entregues pelos britânicos ao final da colonização eram desoladoras. Segundo Kohli (2004, p. 247), cerca de 85% da população era analfabeta, a produção industrial representava apenas 7% do PIB e o crescimento anual da economia era inferior a 1%, indicando uma deterioração do PIB per capita, visto que o crescimento demográfico era superior. Na primeira metade do século XX, entre 1914 e 1946, a média da poupança na Índia era de 3% e a formação de capital era 7% do PIB. A maioria do excedente de capital ficava nas mãos das elites agrárias, que investiram majoritariamente em redes de comércio e agiotagem. O único desenvolvimento industrial surgiu das elites mercantis de Bombaim (atual Mumbai) e de investidores britânicos.

É necessário considerar que também não havia mão-de-obra qualificada, mercado interno consumidor ou fácil acesso à energia, pois o carvão somente se tornou matéria prima disponível em todo território após a conclusão da rede ferroviária do Raj. A política monetária britânica sobrevalorizou a rúpia indiana para diminuir os gastos em libra na colônia. Além disso, os investimentos feitos eram intermediados por agências britânicas privadas, que não financiavam negócios indígenas por questões raciais. Deste modo, o subdesenvolvimento da Índia no período colonial passava por um ciclo vicioso (KOHLI, 2004, p. 249-250).

macroeconômicas desfavoráveis, emergiu uma classe capitalista industrial indiana na primeira metade do Século XX. Os ingleses controlavam apenas o processamento de juta, uma fibra têxtil, enquanto comunidades indianas com tradição na produção de têxteis ou no comércio inter-regional (como os Parsis e Marwaris) produziam tecidos de baixo valor. A família Tata iniciou os negócios no ramo do aço ainda no início do século XX e outras empresas de açúcar, cimento, papel e vidro surgiram no período entre-guerras.

O crescimento da indústria indiana também foi motivado por questões geopolíticas. A nova política de taxação de importações pelo Raj procurava impedir a entrada de produtos japoneses e alemães na Índia, protegendo a indústria nascente. A Segunda Guerra Mundial aumentou drasticamente os gastos governamentais e a demanda por serviços de engenharia, têxteis, alimentos e madeira (KOHLI, 2004, p. 252-254).

Com relação a aspectos sociais, a divisão política pelos britânicos entre comunidades religiosas hindus e muçulmanas teve consequências nefastas a partir da divisão de Bengala em 1905 e da criação de eleições separadas com base na religião em 1909. Estes eventos no Estado mais influente do subcontinente repercutiram em outras regiões e viabilizaram a “teoria das duas nações”, que defendia a separação das comunidades hindu e muçulmana em diferentes entidades políticas (BOSE; JALAL, 2011).

A partir da década de 1930, a Liga Muçulmana e seu líder Ali Jinnah passaram a instrumentalizar a divisão eleitoral e social incentivada pelos britânicos para promover a ideologia da nação muçulmana na Índia, dando origem ao movimento pela criação do Paquistão. No entanto, o movimento pela divisão veio das elites políticas muçulmanas e não das massas. Apesar de episódios graves na década de 1940 e da partição violenta do subcontinente em 1947, hindus e muçulmanos não tinham um histórico extenso de violência comunal ou de intolerância que justificasse a divisão (BOSE; JALAL, 2011).

Estima-se que, após a retirada dos britânicos, cerca de 15 milhões de pessoas tenham migrado e mais de um milhão de pessoas tenham morrido. Atualmente, há mais de 180 milhões de muçulmanos vivendo na Índia, quase a mesma população que habita o Paquistão, demonstrando que a decisão de criar um novo país foi político-ideológica, partindo das elites, e não fruto de um sentimento de não pertencimento da comunidade muçulmana na Índia, ou das comunidades hindus e sikhs no Punjab Ocidental ou em Bengala Oriental. Momentos antes da retirada britânica, a maioria da população sequer tinha conhecimento da partição, assim, ao serem instruídos a cruzar a fronteira, muitos simplesmente se recusava a sair, sendo

coagida por bandos armados ou pelos militares39.

Existe um forte senso de comunidade entre as sociedades indiana e paquistanesa, ainda

que seus caminhos políticos sejam opostos. Muitas famílias ainda têm conexões com seus parentes do outro lado da fronteira, embora o movimento de pessoas seja restringido na maioria dos casos. Até certo ponto, a identidade secular e democrática da Índia também existe em contraste ao sistema paquistanês. Na maior parte do tempo, o sistema político e social indiano é capaz de acomodar diferentes demandas, incluindo a grande minoria muçulmana. Para a maioria dos membros desta comunidade, o Paquistão se tornou um exemplo de expectativas não cumpridas, sectarismo, extremismo e cerceamento de liberdades individuais (COHEN, 2013, Cap. 3).

Ainda que o Nacionalismo Hindu tenha se tornado parte do mainstream político na

Índia desde a década de 1980, as pressões pela reescrita da história e pela demonização do Paquistão tem maior apelo apenas em alguns dos estados onde o movimento é mais forte. São nestes mesmos estados onde ocasionalmente ocorrem ondas de violência contra as minorias muçulmanas (e.g. Gujarat, Maharashtra e Uttar Pradesh), que servem de alvo para o discurso eleitoral de partidos nacionalistas hindus. No entanto, à exceção da Caxemira, o problema dos muçulmanos é muito mais de representatividade regional e nacional do que uma dinâmica associada à existência do Paquistão (COHEN, 2013, Cap. 3).

O primeiro grande desafio da Índia independente foi gerenciar a partição e reconstruir a nação. Mais de 600 principados - desde as regiões da Caxemira e Hyderabad até pequenos vilarejos - poderiam escolher a adesão à Índia, ao Paquistão ou declararem independência. Juntos, estes principados continham 40% do território e um terço da população da Índia (Figura 1). Enquanto o Primeiro Ministro indiano Jawaharlal Nehru defendia a adesão obrigatória a um dos países, sua contraparte paquistanesa, Ali Jinnah, defendia a livre escolha. Após a partição, Travancore (atual Kerala) e Hyderabad (atual Telangana e parte de

Karnataka e Maharashtra) declararam independência40 (RAGHAVAN, 2010).

39 A obra literária de Dalrymple (2014) sobre a história de Nova Delhi e o documentário da Al Jazeera sobre o retorno de um homem de 92 anos à sua cidade natal no Paquistão (HASHIM, 2017) são histórias que exemplificam os pontos discutidos sobre a partição.

40 Outras questões territoriais e de soberania também tomaram a atenção do governo indiano. Em 1950, irrompeu a crise em Bengala Oriental (atual Bangladesh), obrigando Nehru a negociar a situação das minorias hindus em território vizinho. Em 1954, os territórios franceses na Índia foram transferidos à União Indiana. Em 1961, o Exército Indiano invadiu a colônia portuguesa de Goa e os enclaves de Damão e Diu, anexando estes territórios. Em 1975, por fim, a região himalaia do Sikkim, antigo protetorado indiano, teve sua monarquia deposta com o apoio do Exército Indiano e também aderiu à União por referendo popular.

Figura 1 - A Índia Britânica e os estados principescos

Fonte: Jensenius (2016).

Temendo a dissolução da Índia, o vice-Primeiro Ministro Sardar Patel e seu secretário V. P. Menon foram encarregados de propor um projeto de adesão aos principados com apenas três elementos: defesa, relações exteriores e comunicações. Apenas a Caxemira, Hyderabad e Junagadh rejeitaram inicialmente a proposta. A atuação da Índia junto aos principados foi um misto de convencimento, engano e coerção. Como resultado de bloqueio comercial e coerção militar, Junagadh voltou atrás na decisão de aderir ao Paquistão e aceitou o acordo com a Índia após plebiscito popular em 1948. No mesmo ano, em Hyderabad, o príncipe muçulmano desejava a independência e neutralidade, mas acabou capitulando após a invasão do Exército Indiano (RAGHAVAN, 2010).

A Caxemira, devido à maioria de população muçulmana e à proximidade geográfica com o Paquistão, mostrou-se o maior desafio. Após a invasão de guerrilhas tribais enviadas pelo Exército Paquistanês no final de 1947, o príncipe hindu da Caxemira assinou o tratado de

acessão à Índia e pediu assistência militar, dando origem à Primeira Guerra Indo-Paquistanesa (1947-1948). Neste meio tempo, a disputa foi levada à ONU, mas nenhuma resolução foi feita para arbitrar o caso.

Como resultado, Jammu e Caxemira (J&C) passou a ser um Estado de status autônomo na Constituição da Índia de 1950 e o Paquistão continuou a controlar partes deste território em Gilgit-Baltistão, ao norte, e outra região a oeste. A região da Caxemira, além de ser parte importante de legitimação das ideologias nacionais paquistanesa (nação muçulmana) e indiana (Estado secular e plural), também é região estratégica de confluência de grandes rios

que irrigam tanto o Paquistão como a Índia41 (RAGHAVAN, 2010).

Uma série de fatores contribuiu para estabelecer a autoridade política e a ordem social na Índia pós-independência. O Congresso, principalmente na figura de Jawaharlal Nehru, emergiu como força política incontestável, centralizando no Estado a liderança institucional e econômica e mantendo o controle civil sobre os militares. A consolidação da democracia e, por consequência, da estabilidade política indiana, também só foi possível devido ao projeto secular, pluralista e inclusivo, fazendo a mediação das demandas da sociedade dentro do próprio partido.

Ao mesmo tempo, o Congresso manteve a liberdade de associação e organização da sociedade civil e a liberdade de imprensa. As únicas exceções eram organizações que ameaçavam este status quo democrático, como foi o caso da Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), uma milícia conservadora revivalista hindu, cujos membros foram responsáveis pelo assassinato de Mohandas Gandhi ainda em 1948.

O sistema federal indiano é um forte elemento em favor do centro, visto que a República da Índia é definida como uma união de estados e não uma federação de estados. Neste sentido, é prerrogativa da União reorganizar as unidades e territórios da federação. Além disso, o centro tem maior capacidade de captação e redistribuição de recursos de forma discricionária. Também é responsabilidade presidencial escolher os governadores (que possuem papel de veto nos estados) e dissolver governos estaduais eleitos ou destituir seus Ministros Chefes (equivalente do Primeiro Ministro em nível estadual) caso haja alguma quebra constitucional. Em diversos momentos, a cláusula de quebra constitucional foi usada para fins político-eleitorais, quando algum governo estadual se recusa a atender a demandas do governo central.

41 Até o momento, propostas de plebiscito popular ou partição formal da Caxemira não foram feitas em termos aceitáveis para ambas as partes. Desde 1990, o Paquistão aumentou o treinamento de guerrilhas tribais e o apoio a grupos terroristas, que tentam desestabilizar a situação da J&C para forçar a ocupação militar indiana na região e criar uma situação de caos social que modifique o status quo em favor do Paquistão.

Devido à natureza fragmentada do Estado Indiano desde a independência, o CNI e Nehru também tiveram de fazer algumas concessões para acomodar os interesses de elites regionais. Um dos exemplos é a língua: a União adota o hindi e o inglês como idiomas oficiais, mas a cada estado federado é permitido adotar sua própria combinação oficial. O governo central sempre buscou difundir o uso do hindi como língua comum e do inglês como língua corrente substituta, incluindo-os no currículo escolar na “fórmula 2+1” juntamente com a língua regional. De acordo com o censo de 2001, apenas 53% da população é fluente em

hindi e outros 12% têm fluência em inglês42. Segundo a Constituição de 1950, o hindi

eventualmente deveria substituir o inglês como língua oficial de todos os intercâmbios feitos na federação, mas esta meta foi abandonada.

A partir de 1956, devido a pressões das elites regionais, houve a redistribuição dos estados federados de acordo com afinidades linguísticas. Isto reconfigurou o jogo político regional, facilitando a ascensão de elites com uma base de apoio mais coesa e com uma agenda de resistência ao governo de Delhi.

Além disso, elites locais patrimonialistas estavam relativamente insuladas dos projetos nacionais de desenvolvimento econômico, pois os estados têm capacidade legislativa relativamente autônoma e seu orçamento não estava diretamente vinculado à Comissão de Planejamento, que ditava as metas dos Planos Quinquenais (KOHLI, 2004). A questão da fragmentação institucional e suas consequências será retomada adiante.

3.2 DA INDEPENDÊNCIA AO FIM DA GUERRA FRIA (1947-1990): MODERNIZAÇÃO