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A formação do preconceito e o olhar sobre o “outro”

Capítulo 1 O preconceito na vida cotidiana, a partir da alteridade

1.5 A formação do preconceito e o olhar sobre o “outro”

Não há como entender o indivíduo sem considerar o contexto em que está inserido, mas também a particularidade que o compõe.

O indivíduo é sempre, simultaneamente, ser particular e ser genérico. Considerado em sentido naturalista, isso não o distingue de nenhum outro ser vivo. Mas, no caso do homem, a particularidade expressa não apenas seu ser ‘isolado’, mas também seu ser ‘individual’. Basta uma folha de árvore para lermos nela as propriedades essenciais de todas as folhas pertencentes ao mesmo gênero; mas um homem não pode jamais representar ou expressar a essência da humanidade. (HELLER, 2000, p. 20)

Assim, a não aceitação das diferenças e a opressão da voz social de minorias se torna um paradoxo, visto que a diferença e, assim, a relação com o outro, são essenciais aos seres humanos. Porém, se, o outro é condição para a existência do discurso e para a própria compreensão que o indivíduo tem de si mesmo (BAKHTIN, 1997), cabe perguntar: uma vez que nem sempre se aceite o outro, o diferente, como se dá a relação com este outro? E

quando, nesta relação, se subalterniza o outro, como se dá a construção dialógica do indivíduo? Estas relações são, portanto, prejudicadas.

Diz-se dialógica pois, a concepção bakhtiniana, a qual é aqui predominate, entende como dialógico o processo de interação entre textos de qualquer natureza, logo, também assim ocorre nas interações no âmbito das relações humanas, estas formadas na ação e concretizadas no discursos. Mas a partir do momento em que se fragiliza a relação com o outro em função de uma subalternização deste outro, nota-se que houve uma interação em que o indivíduo se viu superior ao outro, não encontrou – ou não quis, por algum motivo, reconhecer – os pontos de identificação com o outro indivíduo. Ora, para que o indivíduo se veja no outro, se nivelando a ele, o caminho de reflexão é bem mais complexo, pois, de acordo com as palavras de Bakhtin, “[...] se quero operar uma transposição que nos coloque, eu e o outro, num único e mesmo nível, devo, em meus valores, situar-me fora da minha própria vida e perceber-me como outro entre os outros” (Ibid., p. 76). Logo, há a necessidade de uma ação que parta da própria consciência, e não do senso comum. E o senso comum é uma das bases do preconceito.

Sodré (2011) acredita que o preconceito é um saber automático sobre o outro. De acordo com esta pertinente fala, portanto, o preconceito é, em princípio, uma ausência de reflexão sobre valores já constituídos, que assim se estabeleceram a partir de juízos formados previamente por diferentes fatores. Nesse sentido, de acordo com o pensamento de Arendt (2008), o preconceito tem relação com a experiência no passado que não foi revista. Logo, para que se reveja um pensamento já estabelecido em experiências do passado, é necessário que haja uma consciência desta necessidade de rever a ideia já dada sobre o outro.

A autora alemã fala sobre a formulação de preconceitos a partir de juízos pré- concebidos sobre alguém ou uma determinada situação. Juízos estes que não foram revisados e questionados sob uma nova perspectiva. Assim se formaria o pré-conceito, que serve ao senso comum na construção de opiniões sobre algo ou alguém.

É importante, portanto, discutir como o rebaixamento do outro ocorre. Segundo Arendt (2002), o verdadeiro preconceito se reconhece no momento em que se localiza no mesmo um juízo formado com origem em uma causa empírica, a qual é apropriada e mantida através dos tempos sem ser revisto, se evitando uma nova e verdadeira experiência com o juízo. A pensadora, aliás, estabelece a existência de dois tipos de juízo: um sem parâmetros, uma vez que se apresenta ante o conhecimento de algo nunca visto antes, e o juízo a partir da subordinação do indivíduo em sua particularidade a algo geral. Neste último, especialmente, se encontra o preconceito.

[...] só o indivíduo é julgado, mas não o próprio critério, nem sua adequabilidade para o medir. Também o critério foi um dia posto em julgamento, mas depois esse juízo foi assumido e como que se tornou um meio para se poder continuar julgando. (Ibid., p. 11)

Ora, se os critérios não são postos a prova, podem ser determinados de acordo com os interesses de quem julga. Visto que o senso comum se alicerça nos critérios de um discurso já difundido na sociedade, subordinar o outro é uma forma de manutenção desse discurso. Isto apresenta um outro problema: a própria negação do preconceito, visto que se pauta em valores já assimilados na sociedade, negando, assim, a condição de subalternização a que se expõe o outro e dificultando a problematização dos preconceitos de modo a revisar o senso comum.

Portanto, considerando que o preconceito pode estar presente na relação de alteridade, ao se comparar ao outro e rebaixá-lo, e visto que tal preconceito é construído a partir de juízos preestabelecidos sobre o outro que não são revisados, cabe questionar quais são os valores que levam a tais juízos e, consequentemente, a uma atitude preconceituosa. A fala que segue, do antropólogo Kabengele Munanga (2016, n.p.), reflete sobre o que alicerça o preconceito.

[...] preconceito é uma ideia preconcebida, um julgamento preconcebido sobre os outros, os diferentes [...]. Não há uma sociedade que não se define em relação aos outros. E nessa definição acabamos nos colocando em uma situação etnocêntrica, achando que somos o centro do mundo, a nossa cultura é a melhor, a nossa visão do mundo é melhor, a nossa religião é a melhor, e acabamos julgando os outros de uma maneira negativa, preconcebida, sem um conhecimento objetivo. Isso é o preconceito, cuja matéria prima são as diferenças, sejam elas de cultura, de religião, de etnia, de raça no sentido sociológico da palavra, de gênero, até de idade, as econômicas. Todas as diferenças podem gerar preconceitos.

Contudo, há outros fatores, além da diferença em si, que são responsáveis pela formação do preconceito nos indivíduos. O presente capítulo buscará, a seguir, elucidar os fatores mais relevantes para a construção do pensamento preconceituoso, bem como entendê- los em comparação com elementos da série Harry Potter, objeto de estudo de caso desta dissertação.