• Nenhum resultado encontrado

2. O CIRCO COMO SABER NA EDUCAÇÃO FÍSICA: A FORMAÇÃO INICIAL EM

2.2 A formação inicial em Educação Física no Brasil

Na Educação Física, observamos que junto à regulamentação da profissão em setembro de 1998, houve um crescimento na oferta de cursos de formação inicial na área. No período de 1999 a 2007 houve um crescimento anual de 20,6%, sendo que no último ano desse período a iniciativa privada foi responsável por 89% dessa expansão (SILVA, et al., 2009). De forma geral, segundo o Sistema Nacional de

Avaliação do Ensino Superior (INEP, 2007), no início dos anos 1990 havia aproximadamente 120 cursos registrados e em 2012 (BRASIL, 2013) são mais de 1400 cursos superiores, tornando a Educação Física um dos dez cursos com o maior número de concluintes – aproximadamente 40 mil por ano.

Existem grandes diferenças entre as relações das instituições de ensino superior privadas e públicas com o mercado, o que reflete diretamente na configuração da formação inicial. A fonte de financiamento das instituições e a consequente relação que isso implica com o aluno é um elemento que influencia a gestão de suas atividades. Por um lado, a instituição pública possui maior liberdade para se posicionar perante as tendências socioeconômicas por não depender do lucro alcançado com o ingresso de alunos ou do financiamento advindo de investidores da área educacional da esfera privada, o que influencia diretamente a constituição de suas propostas. Também, sem sofrer influência direta em termos de concorrência no mercado educacional superior, em que a gratuidade da formação garante, na maioria dos casos, o influxo de alunos, a instituição pública acaba por ter maior liberdade para conduzir suas ações em busca de ideais educacionais na formação superior. Como exemplo, vemos que muitas dessas instituições oferecem cursos integrais e com carga horária total mais longa que as instituições particulares e privadas (BRASIL, 2013).

Vemos também que a Educação Física vem encarando um franco processo de expansão desde a sua regulamentação profissional, na qual as instituições privadas possuem uma grande participação. Relacionando essas considerações com a lei n° 9.696 de 1º de setembro de 1998 (BRASIL, 1998), responsável pela regulamentação da Educação Física, em específico o artigo 3º, que trata sobre as ocupações a ela correspondentes, encontramos uma questão fundamental para nossa investigação sobre a presença e expressão dos saberes circenses na formação inicial:

Compete ao Profissional de Educação Física coordenar, planejar, programar, supervisionar, dinamizar, dirigir, organizar, avaliar e executar trabalhos, programas, planos e projetos, bem como prestar serviços de auditoria, consultoria e assessoria, realizar treinamentos especializados, participar de equipes multidisciplinares e interdisciplinares e elaborar informes técnicos, científicos e pedagógicos, todos nas áreas de atividades físicas e do desporto. (BRASIL, 1998, artigo 3º)

Aqui, vemos que a amplitude da área de trabalho da Educação Física é muito grande, algo que deve ser proporcional às competências, habilidades profissionais e à capacidade reflexiva desenvolvidas durante a formação inicial, sendo que esses elementos nos auxiliam a identificar lacunas e problemas tanto da definição da atuação na área, quanto das abordagens aos saberes que compõem essa formação. Podemos compreender melhor essa demanda ao considerarmos a atuação do Conselho Federal de Educação Física (Confef) em suas ações para o cumprimento dessa lei, sobretudo ao que tange à garantia e à reserva de espaço no mercado de trabalho em todas as “áreas de atividades físicas e do desporto” em que o profissional de Educação Física possa atuar (BRASIL, 1998). Já nos primeiros instantes após a implementação dessa lei, houve uma intensa disputa entre as entidades de fiscalização da profissão e os representantes de distintas práticas corporais pelo direito de atuar na área (FONSECA, 2010).

Apesar de não termos como foco o debate sobre as implicações da disputa por exclusividade de atuação no mercado de trabalho, é importante destacar que essas iniciativas orquestradas principalmente pelo Confef buscam o reconhecimento da qualificação do profissional de Educação Física na sociedade por meio de medidas restritivas, desvalorizando muitas vezes os saberes e produções de sujeitos históricos vinculados a práticas corporais da cultura popular, por exemplo, desmerecendo a importante função social de “não-graduados” em Educação Física na transmissão desses saberes. Ao se combinar a redação da lei que regulamenta a profissão como uma das diretrizes para desenvolver a formação inicial, associando a isso o modus

operandi evidente nas ações do Confef, vemos a configuração de um cenário de

conflito na sociedade por falta de precisão na definição e na delimitação da atuação, bem como a falta de respeito e consideração às outras diversas formas de produção de conhecimento no âmbito das práticas corporais.

No caso do Circo, isso gera conflito com os sujeitos da classe artística, sobretudo com aqueles sujeitos de famílias circenses que desenvolvem e transmitem seus saberes sobre corpo e movimento há gerações, mas que atualmente, sob essa perspectiva invasiva de reserva de mercado, veem-se impedidos de difundir esse conhecimento em determinados espaços. Por mais que existam saberes específicos necessários para o trato com o sujeito e com o conhecimento em determinados espaços formais e informais de educação, é fundamental destacar que a produção e

transmissão dos saberes circenses, assim como os saberes de outras artes e outras práticas corporais que fazem parte da Educação Física, são compostos por uma multiplicidade de elementos que constituem uma manifestação cultural e, assim, restringir o seu ensino a uma única classe profissional é algo que advoga contra a diversidade, desrespeitando os distintos sujeitos que participam desse tipo de produção cultural, e deixando de reconhecer a sua competência pelo fato de não transitarem dentro dos muros da universidade, ainda que eles sejam responsáveis por perpetuar conhecimentos de geração a geração há séculos.

De forma geral, a Educação Física se constitui em quatro grandes áreas de atuação: saúde, educação, treinamento e lazer. Cada uma dessas esferas possui características e necessidades específicas que devem ser orientadas pela formação inicial, configurando uma área do conhecimento multidisciplinar.

A multidisciplinaridade na Educação Física remete ao conjunto de conhecimentos que constituem a base e os fundamentos da área, atualmente orientada pelos aspectos científico, sociocultural, biológico, técnico-instrumental, e didático-pedagógico de sua atuação (parecer CNE/CP 058/2004). Essa configuração nutre diferentes perspectivas em torno de uma mesma ação – o trabalho com o corpo e o movimento, em que deve haver múltiplos olhares para efetivar a prática profissional, tendo em vista que esta lidará com a formação plena do ser humano em contextos aplicados. Dessa forma, ao mesmo tempo em que se instiga uma combinação harmoniosa de diferentes conhecimentos para efetivar a atuação na sociedade, permite-se a configuração de cursos superiores com perfis diferenciados de acordo com o discurso assumido por cada instituição de ensino superior e com a realidade na qual ela se insere.

Conforme o campo de atuação em Educação Física se desenvolve na sociedade, uma vasta gama de propostas de formação profissional se concretizam, inspiradas em diferentes perspectivas de intervenção. Observando o panorama histórico recente da profissão, a emergência do esporte como principal saber da fase tecnicista da Educação Física, nos anos 1970, previa uma atuação orientada para o condicionamento físico, baseada nas práticas esportivas e nos métodos ginásticos; posteriormente, nos anos 1980, a abordagem biomédica assume maior evidência, na qual a promoção da saúde fica em evidência na atuação; em seguida, nos anos 1990, desenvolvem-se debates acerca da função pedagógica e sociocultural da Educação

Física, renovando a metodologia de ensino e trabalho; e nos anos 2000, a busca pela renovação dos seus saberes se cristaliza em uma corrente de pensamento que busca compreender a transdisciplinaridade da Educação Física (no sentido exposto por NICOLESCU, 2000; SANTOS, 2008) e rever o papel da fundamentação técnica da atuação profissional (BRACHT, 1999; CASTELLANI FILHO, 2013).

Em nossa compreensão, a transdisciplinaridade da Educação Física é uma forma de conceber um olhar plural e polissêmico para as diversas formas de produção de conhecimento – sendo que essa é a questão que nos leva a questionar as ações do Confef, por exemplo, no sentido de que o profissional de Educação Física é mais um sujeito na sociedade a contribuir para o desenvolvimento de saberes sobre o corpo e o movimento, e não o único a deter o saber legítimo e válido sobre essa temática. Essa perspectiva também nos conduz a analisar e estudar com mais respeito os saberes de diferentes segmentos culturais, pautando as críticas necessárias a essas produções em análises aprofundadas e relacionadas ao âmbito de atuação, ao invés de simplesmente definir que uma determinada profissão ou sujeito histórico ou agente social é detentor do direito de professar sobre uma determinada prática devido à qualificação profissional. Exemplificando essa questão, notamos que existem debates desde dentro da Educação Física que observam as propostas de sujeitos circenses e as prejulgam como retrógadas ou inadequadas quando comparadas com as teorias de treinamento esportivo, enquanto que, do outro lado, vemos sujeitos circenses apontando como inadequadas as propostas de profissionais de Educação Física por esses não transitarem no seio da família circense ou não fazerem parte de suas tradições. A partir das perspectivas que defendemos e expomos até aqui, acreditamos que assumir a transdisciplinaridade da Educação Física, e de modo geral, a transdisciplinaridade necessária para realizar uma atuação sobre as práticas corporais mesmo fora da Educação Física, é uma forma de promover uma renovação e superação dos estigmas existentes na disputa por mercado de trabalho, reiterando o respeito às produções originadas em diferentes segmentos da sociedade.

Um exemplo interessante para o nosso estudo são os debates sobre a dança na Educação Física (anos 1990), que trouxeram à tona a relevância desse saber, tanto pelas características próprias dessa prática corporal, quanto para contrapor a ótica tecnicista dos esportes coletivos que predominavam nessa década (BRACHT, 1999; KUNZ, 1995; EHRENBERG, 2008). As políticas de reserva de

mercado do Confef nessa época também entraram em conflito com a área da dança, buscando exclusividade da atuação do profissional em Educação Física sobre essa prática corporal, e atualmente ambas formações compartilham a atuação em dança.

Assim, consideramos problemáticas duas situações decorrentes do processo histórico da Educação Física – o olhar para a prática corporal a partir de fundamentos restritivos aos saberes hegemônicos da Educação Física e a consequente e excessiva especialização da atuação profissional; e a falta de inovação pedagógica decorrente de uma atuação que carece de referências às demais produções sociais sobre a prática corporal. No caso do Circo na Educação Física, notamos que as produções também se nutrem desse processo histórico, em que vemos a difusão de abordagens distintas aos saberes circenses, como, por exemplo, as propostas que ensinam técnicas de tecido acrobático e os equilíbrios sobre aparelhos com a finalidade quase exclusiva de fortalecimento corporal e propriocepção. Por mais que a esfera artística do Circo fique em segundo plano, reiterando as considerações sobre a transdisciplinaridade, essas produções devem ser valorizadas em determinados âmbitos de atuação profissional. No entanto, algo que nos instiga reflexão não é o direcionamento da atuação, mas se o profissional concebe os efeitos sistêmicos da prática corporal, como demonstra Bailey (2012), ou em outra abordagem, Betti et al. (2014), algo que poderia amplificar o impacto dessas iniciativas a partir de um olhar mais criterioso sobre a experiência do sujeito com as práticas corporais do Circo. Bortoleto (2011, p.45) identifica essas questões indicando a “aventura pedagógica” do profissional de Educação Física com os saberes circenses, em que se retrata uma visão “míope” desse profissional sobre o que existe de produção sobre Circo, assumindo-se o papel de criar propostas sem ao menos adentrar o “interior da lona” e conceber a extensa produção de seus sujeitos históricos.

Isso nos conduz a repensar a produção de conhecimento na Educação Física sem se limitar a um determinado ponto de vista disciplinar, mas a termos como ponto de partida e chegada o ser humano em sua complexidade. O Circo na Educação Física, assim como outras linguagens artísticas e práticas expressivas, é uma temática que representa uma maior atenção da área para a influência do estético, do sensível e do poético na formação humana conduzida pela Educação Física, pondo em evidência uma lacuna e uma nova demanda para a atuação profissional (SOARES, MADUREIRA, 2005).As problemáticas acima citadas sobre a formação

superior em Educação Física se fazem especialmente evidentes ao observarmos as titulações possíveis na área: bacharelado e licenciatura. Legalmente, a resolução CEF 3 de 1987 do Conselho Nacional de Educação (BRASIL, 2005) estabeleceu a divisão da licenciatura plena em Educação Física em bacharelado, que atua nos espaços fora da escola e possui tendência técnico-científica, e licenciatura, que atua dentro da escola e possui tendência socioeducativa (NETO et al., 2004). Buscava-se com isso a capacitação profissional para atuar em campos emergentes na sociedade e que possuíam necessidades e objetivos distintos daqueles promovidos no ambiente da educação formal, além de incitar um estímulo para a reforma da formação inicial em Educação Física como um todo, que em formato excessivamente generalista, não supria as necessidades da atuação nem dentro, nem fora da escola (KUNZ, 1998).

Um dos efeitos desse panorama é a grande variação do projeto pedagógico de curso, documento que orienta o perfil de formação profissional na instituição de ensino superior, que, por sua vez, orienta a organização da matriz curricular, o que indica a composição das atividades acadêmicas do curso (REIS, 2002). Dessa forma, emergem debates relacionados à composição curricular, dedicados a preencher as lacunas na estruturação do curso superior de acordo com os avanços científicos e a percepção de novas demandas sociais (TAFFAREL, LACKS, SANTOS JÚNIOR, 2006). O grande desafio está em equilibrar adequadamente os fundamentos epistemológicos da Educação Física, sem se fixar excessivamente aos temas consolidados, hegemônicos e tradicionais da área, mas mantendo uma abertura para propostas emergentes e inovadoras que auxiliem na atualização das expressões da profissão na sociedade.

Nossa pesquisa não pretende orientar uma organização curricular, mas enriquecer a análise de como o Circo vem sendo abordado na formação inicial em Educação Física, reconhecendo a configuração atual desse campo, as tendências da formação profissional, e, sobretudo, respeitando a especificidade do projeto pedagógico de curso ao contexto em que a instituição de ensino superior se insere.