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4. AS POTENCIALIDADES DO CIRCO NA FORMAÇÃO INICIAL EM EDUCAÇÃO

4.2 Ensino: o Circo como saber na atuação profissional em Educação Física

4.2.1 Metodologia de ensino e propostas pedagógicas

As iniciativas expostas acima inspiram a organização de propostas metodológicas e pedagógicas de ensino na formação inicial em Educação Física. O Malabarista e o Trapezista conduzem suas disciplinas explorando a interface dos fundamentos da Educação Física com o Circo, forma de investigar essa prática artística e produzir conhecimentos sobre a atuação profissional.

Enquanto o Malabarista dá ênfase ao processo pedagógico e à compreensão dos aspectos antropológicos, sociológicos e históricos do Circo em relação à atuação em Educação Física, o Trapezista se aprofunda na experiência e vivência dos seus alunos com as práticas corporais do Circo, explorando os valores humanos presentes nesse processo e desenvolvendo propostas lúdicas de aprendizagem dessa arte. Assim, para esses dois docentes, o caminho trilhado foi tornar o Circo um objeto de estudo de suas disciplinas, pois ambos afirmaram que a grande maioria dos estudantes nunca vivenciou essas práticas corporais. Mediando a “exploração do desconhecido”, os docentes constroem em conjunto com suas turmas as possibilidades pedagógicas do Circo no campo de atuação em Educação Física.

A primeira experiência do Malabarista com os saberes circenses foi abordando-o como objeto de estudo em uma disciplina voltada para a aprendizagem motora. A metodologia de ensino empregada foi baseada no planejamento participativo e o resultado foi especialmente proveitoso para o docente:

E aí no final desse processo, os meus alunos criaram um espetáculo inspirado no Circo, com aquelas habilidades que eles aprenderam durante o processo. Foi fantástico... Fantástico... Ao ponto dos meninos que interpretavam palhaços entrarem em nosso anexo, uma quadra enorme que nós temos lá embaixo, sobre um sofá motorizado [...] e fazendo graça. Meninos pulando corda, fazendo “mortal” enquanto saltavam. Eu não tinha esse background, mas eles tinham, eu apenas alinhavei as experiências individuais com aquilo que a gente chamava de Circo. Isso foi o start. (Entrevista com o Malabarista, linhas 108-117)

Eu acho que ali sim foi um referencial, o divisor de águas foi 2002, quando eu vi que [os saberes circenses eram] uma possibilidade. Olha, serei honesto, hoje na disciplina de atividades circenses a gente não tem um espetáculo de final de curso tão bom quanto aquele de 2002. Não sei o que aconteceu, os astros se alinharam naquela época, isso foi um marco, um referencial de experiência docente. Foi rico para todos. Hoje encontro ex-alunos e eles falam: “Lembra daquilo...?”. Tinham esquetes de palhaço muito bem feitas; tinha aluno que era ator, e ajudou muito; tinha acrobacia de todo tipo; tinham dois meninos da capoeira que faziam “chover”. Então eu acho que a coincidência de relações geraram um terreno fértil, então foi um marco. (Idem, linhas 246-255)

A metodologia de ensino do Trapezista é inspirada nas comunidades de aprendizagem (SETUBAL, 2012), defendendo que assim se configura um ambiente propício para que o estudante explore com maior liberdade e a partir de seu próprio interesse as possibilidades dos equipamentos e práticas circenses. Segundo ele, o seu principal objetivo com essa proposta de aprendizagem é tornar o processo individualizado, oferecendo um papel ativo ao estudante na descoberta e investigação dos saberes em questão. O docente ainda ressalta que a condução dessa proposta deve ter sensibilidade para cativar e “encantar” o aluno (Entrevista com o Trapezista, linha 337), estimulando a participação de todos. Similarmente, o Malabarista adota alguns desses princípios em suas aulas: “as vivências são muito efetivas, porque na hora em que o indivíduo sobe pela primeira vez em uma perna-de-pau é indescritível, e ele se apaixona” (Entrevista com o Malabarista, linhas 479-482).

O Trapezista compartilhou algumas estratégias de “encantamento” para superar a falta de confiança de estudantes que não se sentem capazes de realizar as propostas circenses apresentadas em aula:

Vêm muitas pessoas falar: professor, não consigo. Então esse é um grande presente para o professor, tanto para mudar esse “não consigo” para “eu vou tentar” e tanto para mudar esse “vou tentar” para “como eu posso fazer para conseguir?”. Não só na questão do malabarismo, mas na questão pessoal. Então eu lido muito com essas

interfaces por meio do Circo, entrelinhas à margem do discurso da pessoa. Então eu abordo essa questão subliminar, o perfil psicológico de cada um dos acadêmicos aqui envolvidos, para que possamos trabalhar a análise do discurso da pessoa e sua relação com o seu perfil psicológico, por meio das atividades circenses. Existe uma construção que não é só das habilidades circenses, mas de uma construção pessoal. Não podemos desvincular isso pedagogia, porque na realidade uma coisa está implicada na outra. Se me dizem “eu não consigo”, ou realmente afirmo que não consigo e baixo a cabeça, permanecendo em meu mundo, ou tento levar em frente. (Entrevista com o Trapezista, linhas 296-311)

A questão do estímulo à participação e o trabalho pedagógico com a experiência do estudante foram comentadas pelo Malabarista, quando questionado sobre o processo didático da disciplina que ele conduz:

Meus alunos estão sendo questionados a todo momento sobre como eles estruturam um discurso, sobre como aprender aquilo que eles sabem executar, ou até aquilo que eles não sabem executar. Então essa é a tônica da disciplina, uma aprendizagem mínima, que todos têm condições de acessar, e isso começa pelo malabarismo. Porquê? Alguns fazem malabarismo, de um jeito ou de outro fazem, mas a grande maioria não, então eu proponho que ao final de três aulas todos estarão fazendo malabarismo. Eles duvidam, então progredimos exercício por exercício [...]. Antes de chegar à bolinha eles já estão fazendo malabarismo com três lencinhos, e aí eu escuto os depoimentos desses alunos: “Professor, eu não imaginava que eu conseguiria fazer”, [e eu respondo:] “Está bem, agora a próxima tentativa é conseguir ensinar.” Então eu ponho eles em duplas para tentar corrigir e identificarem os erros do colega, alternando entre aprendiz do malabarismo e aquele que ensina malabarismo. Eu acho que isso tem resultados massificadores. (Entrevista com o Malabarista, linhas 309-325)

Assim, notamos que um dos principais elementos valorizados por esses docentes é o desenvolvimento dos aspectos metodológicos de abordagem aos saberes circenses a partir da promoção de experiências significativas aos estudantes durante as aulas de suas disciplinas na formação inicial em Educação Física. Acreditamos que o acesso aos saberes que residem na experiência prática com a linguagem circense é um fundamento essencial para os estudos e debates sobre as suas implicações na atuação profissional da área.

Uma analogia que pode nos auxiliar a compreender essa questão é o aprendizado de um novo idioma. Para compreendermos uma determinada língua e os significados implícitos às suas palavras, precisamos primeiramente conhecer o seu abecedário – ou os fundamentos técnico-instrumentais das práticas corporais do Circo

–, para então aprender palavras – transformando esses elementos rudimentares em gestos (combinação de técnica com a intencionalidade expressiva) –, para, em seguida, experimentar, brincar e conhecer as estruturas gramaticais de organização dessas palavras na criação de frases significativas – ou criando sentidos expressivos para sequências coreográficas –, para, finalmente, tornarmo-nos capazes de compreender a linguagem em si, tanto ouvindo-a quanto comunicando-nos com autonomia – compreendendo com uma percepção mais refinada as expressões da linguagem circense, bem como sendo capazes de criar números, atos, ou espetáculos que expressem a compreensão de mundo do sujeito, concluindo a sua iniciação artística na linguagem circense. No caso da formação de professores de idiomas, ou melhor, na formação inicial em Educação Física, deve haver uma última etapa, ponto central dos esforços docentes no ensino superior: promover a compreensão de como conduzir esse processo de iniciação artística, pois consideramos que a essência do Circo é a arte e não apenas o conhecimento de suas manifestações culturais. A partir disso, em um segundo momento, o docente pode então abordar as formas pelas quais o estudante pode criar adaptações específicas para trabalhar com o Circo em situações do contexto de atuação profissional.

Portanto, o estudo do Circo e seus saberes na formação inicial em Educação Física deve valorizar a experiência do estudante com as distintas expressões e manifestações da linguagem circense, associando a compreensão de suas estruturas significantes a partir de análises que equilibrem laboratórios teóricos e práticos sobre os aspectos históricos, sociais, culturais, estéticos, artísticos e técnicos (dentre outras possíveis incursões), conduzindo-o a compreender a lógica interna que sustenta a expressão e a comunicação nessa arte, sem ficar limitado a reprodução das manifestações culturais do universo circense. Assim, acreditamos que é possível viabilizar um estudo criterioso dessa linguagem artística, independentemente do tempo ou espaço disponível na estrutura curricular do curso superior e do âmbito de sua inserção (ensino, pesquisa ou extensão).

Sem nos atermos a formulações de programas de disciplinas (e outras propostas), valorizamos a função docente em organizar e planejar os tópicos e vivências que serão abordados em suas iniciativas e defendemos como objetivo inicial o estudo da linguagem e do universo do Circo junto ao estudante da instituição de ensino superior em questão – considerando o contexto do curso e o perfil dos sujeitos

participantes. O principal valor pedagógico em nossa análise é a formação da autonomia do estudante para se aprofundar em pesquisas temáticas de acordo com seu interesse e demanda do campo de atuação profissional.

Em termos de recursos didático-pedagógicos, o Malabarista explicou que implementa diferentes estilos de aula, algumas com característica mais diretiva, em que o aluno responde exclusivamente aos comandos do professor, favorecendo o controle do nível de segurança em práticas acrobáticas; outras em que as especialidades circenses são exploradas com maior autonomia, ou seja, estimulando o aluno a ser autodidata e desenvolver os seus conhecimentos na temática da aula, especialmente presente nas práticas de equilíbrios, malabarismo e palhaço; e outras em que o aluno é desafiado a responder situações-problema sem referências às propostas do Malabarista, sendo induzidos a refletir sobre o procedimento didático e progressão pedagógica possíveis.

O intuito do Malabarista ao variar as aproximações pedagógicas aos saberes do Circo é mostrar aos futuros profissionais que cada prática corporal exige uma postura específica do docente: “Então eu acho que é legal essa descoberta, porque daí eles terão cautela e uma certa criticidade para qualquer novidade.” (Entrevista com o Malabarista, linhas 612-614). O sujeito ainda indicou três aspectos essenciais que devem estar presentes ao abordar o Circo na formação inicial em Educação Física – estética, técnica e segurança.

O Malabarista argumentou sobre a sua abordagem à estética circense identificando a característica artística e expressiva dessa arte, que, segundo ele, é responsável pelas representações e significados inerentes às suas expressões. Sobre isso, a Contorcionista complementou afirmando que os saberes circenses são uma forma de educação estética e artística possível de complementar a atuação profissional. Na literatura, Vigneron (2012, apud SIZORN, 2014) destaca que o emprego desses saberes na Educação Física francesa tem perdido a oportunidade de abordar a “esfera do sensível”, algo essencial para qualquer prática artística:

On est passé à côté, apprentissages médiocres, gestion difficile de la classe et surtout absence totale de poésie, de chair de poule: démonstration, enchaînement et codes de pointage. Invités par les programmes, on a fait un peu de tout, croyant faire de tout. Mais les élèves n’ont rien appris de ce qui nourrit les arts du cirque. Car il y a un loupé, assumé. Le cirque n’est pas un jeu de construction où il convient d’assembler, adjoindre successivement des éléments

complémentaires. (VIGNERON, 2012, p. 36, apud SIZORN, 2014, p. 33)18

Em seguida, o Malabarista comentou que a técnica é algo frequentemente negligenciado no trabalho com o Circo na Educação Física, algo arriscado, pois implica uma prática repleta de falhas procedimentais ou metodológicas, e, consequentemente, falta de segurança no processo de aprendizagem, considerações compartilhadas pela Contorcionista e por Bortoleto (2011). Assim, o docente relatou uma minuciosa abordagem aos aspectos de segurança de suas iniciativas, que se estende desde a contratação de um profissional habilitado para realizar a instalação dos aparelhos aéreos no ginásio em que ele desenvolve as atividades, até a organização do espaço e dos equipamentos de segurança (colchões de aterrissagem) para a prática.

Enfatizando as práticas corporais do Circo que apresentam uma maior aproximação com a função pedagógica da Educação Física (dentre os vários outros processos que compõem a formação de um artista), essa linguagem artística possui uma trilogia singular entre criação/expressão, poética/estética do risco, e proezas/habilidades técnicas, questões que influenciam diretamente o seu emprego na Educação Física. Essa trilogia é um assunto que inspira reflexões recorrentes na literatura, das quais destacamos a produção de Wallon (2008), Goudard (2008, 2010), Fagot (2010), e ainda a interessante descrição de Stoddart (2000):

Circus is, above all, a vehicle for the demonstration and taunting of danger and this remains its most telling and defining feature. Physical risk taking has always been at its heart; the recognition that to explore the limitations of the human body is to walk a line between triumphant exhilaration and, on the other side of this limit, pain, injury or death. (STODDART, 2000, p.4)19

18 Passamos ao lado, aprendizagens medíocres, difícil gestão da turma e sobretudo ausência total de poesia, de arrepios: demonstração, sequenciamento e códigos de pontuação. Ao convite dos programas, fizemos um pouco de tudo, acreditando fazer tudo. Mas os alunos não aprenderam sobre aquilo que nutre as artes do circo. Pois há uma perda, assumida. O circo não é um jogo de construção onde é necessário montar, associar sucessivamente elementos complementares. (Tradução nossa) 19 Circo é, acima de tudo, um veículo para a demonstração e o zombo do perigo e isso permanece como a sua característica mais reveladora e definitiva. Assumir risco físico sempre esteve em seu coração; o reconhecimento de que explorar as limitações do corpo humano é andar em uma linha entre euforia triunfante e, do outro lado desse limite, dor, lesão ou morte. (Tradução nossa)

Goudard (2008) reforça que o jogo com o risco é um recurso expressivo do artista circense, uma maneira de destacar e dar significado poético para as suas competências técnicas:

O artista circense se põe em situações de risco voluntariamente, para que com suas habilidades, enfrente, entre, e saia de risco. No circo, o risco pode ser simbólico, como a queda de um equipamento de malabarismo ou o tropeço de um palhaço, mas na grande parte do espetáculo é real e vital, jogando com a integridade do artista. (GOUDARD, 2008, p. 26)

Ferreira, Bortoleto e Silva (2015) debatem a presença inerente do risco na linguagem circense e propõem um conjunto de reflexões e procedimentos para a busca de uma “cultura de segurança no Circo”, condição fundamental para o desenvolvimento dessa arte no campo da Educação Física:

A presença cotidiana do risco deve motivar todos a manterem uma constante atenção e preocupação com esse assunto. Somente com essa atitude é que poderemos manter as atividades circenses em níveis aceitáveis de controle dos riscos e, portanto, da manutenção da segurança de todos os envolvidos, desde artistas até ao público. (FERREIRA, BORTOLETO, SILVA, 2015, p. 211)

No campo de atuação em Educação Física, a grande variação do perfil do público que participa das atividades, a adaptação de ambientes e espaços não- propícios às práticas corporais do Circo (em muitos casos), e a inovação que isso representa na experiência corporal do sujeito são aspectos que demandam uma estrutura pedagógica e metodológica precisa, além de uma adaptação, se não uma transformação, dos processos de ensino existentes no âmbito artístico do Circo. Nesse sentido, referimo-nos à importância da reflexividade do docente em criar novas formas de ensino, evitando uma transposição direta da pedagogia do Circo do âmbito artístico para os distintos campos de atuação em Educação Física.