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4. AS POTENCIALIDADES DO CIRCO NA FORMAÇÃO INICIAL EM EDUCAÇÃO

4.1 Pesquisa: o Circo como objeto de estudo e pesquisa na Educação Física

4.1.3 Aspectos artísticos do Circo

Os aspectos artísticos do Circo são discutidos nas iniciativas pedagógicas de nove sujeitos (30%) do grupo de docentes participantes da pesquisa. Sendo uma forma de educação estética e iniciação artística, os saberes circenses podem ser empregados para instaurar um diálogo entre a arte e a Educação Física. A linguagem artística circense possui uma interessante articulação entre técnica, estética e criação, que permite ao profissional de Educação Física desenvolver os conteúdos da atuação de acordo com o perfil do aluno e objetivo pedagógico, respeitando a diversidade de corpos e sujeitos que fazem parte do processo, ao mesmo tempo em que se estimula o aprendizado técnico.

Os sujeitos indicaram uma aproximação à criação artística que valoriza a sua potencialidade lúdica, visando estimular a participação e o engajamento do aluno por meio do jogo, em que a intencionalidade comunicativa (MATEU, BORTOLETO, 2011) é expressa por meio do corpo e do gesto. O Trapezista põe em evidência essa intenção pedagógica ao explicar que no Circo “[...] somos levados a querer uma perfeição técnica, porém ela é extremamente lúdica e técnica, ou seja, ela é apaixonante” (Entrevista com o Trapezista, linhas 131-133). Adicionamos a essa questão a importância de incluir também a exploração da pluralidade estética do Circo (GOUDARD, 2010; GUY, 2001) no sentido de ir além da vivência de técnicas presentes em diferentes especialidades circenses, mas de fato conduzir o sujeito a compreender o processo de expressão de si por meio dessa arte.

Os docentes valorizam o processo de criação do Circo na Educação Física por combinar habilidade corporal e expressão artística em diferentes situações: “Nas artes circenses há a possibilidade de criação, de improviso, de transformação; isso

enriquece a educação corporal e traz uma percepção mais ampla desse corpo em relação ao mundo.” (Sujeito 6, Questão 3.3, linhas 1-2). O discurso do sujeito 26 apresenta uma interessante reflexão e mostra-nos indícios de possibilidades para abordar a criação para além da combinação de diferentes técnicas em sequências coreográficas, como comumente notamos nas iniciativas dos profissionais de Educação Física:

O entendimento de que o circo historicamente vem encantando pessoas de distintas classes sociais, com suas peripécias corporais, criatividade e desafio da disciplina, da utilidade e das normas, sendo um movimento de resistência aos ideais de corpo isolado, rígido e desempenho. Apesar disso, não podemos deixar de reconhecer que o circo também tem sido apropriado por tais padrões hegemônicos e, por isso, é preciso resgatar sua essência como elemento cultural no âmbito da formação. (Sujeito 26, Questão 3.3, linhas 1-4)

De modo similar, o Palhaço reforçou esse entendimento indicando sentir a necessidade de abordar o corpo sob um olhar poético na formação inicial em Educação Física, entretanto, ao relatar sua metodologia de ensino da temática, identificamos a mesma questão – ainda que o docente estimule o aluno a repensar o conceito, a consciência e a percepção de corpo nas vivências circenses de suas iniciativas, o processo metodológico de ensino é inspirado e assemelha-se à propostas de iniciação esportiva da ginástica para todos, esporte que apesar de ter grande conteúdo rítmico e expressivo, não pode ser diretamente associado ao processo criativo e artístico circense.

Essa evidente dificuldade dos docentes participantes em desenvolver metodologicamente o processo de criação artística na formação inicial em Educação Física corresponde ao debate de Garcia (2013) sobre o ensino do Circo na Educação Física escolar francesa. A autora identificou uma preferência dos professores pela linguagem circense como uma alternativa para abordar os conteúdos artísticos solicitados pelo currículo oficial desse país. Segundo esse estudo, os profissionais sentem maior facilidade em trabalhar com a expressividade presente nessa arte, abordando-a a partir dos conhecimentos que possuem da ginástica esportiva, modalidades bem presentes em sua formação inicial. De acordo com a autora, as práticas corporais do Circo também possuem maior receptividade dos alunos quando comparadas com a dança. No entanto, a autora também notou que a aproximação dos saberes circenses com a metodologia de ensino da ginástica gerou abordagens

tecnicistas – similar à proposta do Palhaço. Sizorn (2014) aponta que esse processo vem “esportivizando” o Circo na Educação Física francesa, pois muitas vezes o trabalho desses profissionais apresenta apenas séries de técnicas acrobáticas justapostas, assim como na ginástica, sem de fato desenvolver o processo artístico circense, o que, segundo a autora, descaracteriza a sua essência artística.

De la même manière, le cirque scolaire, devenu discipline, deviendrait discipline [...]. Le cirque scolarisé se heurte à la volonté de concilier importation d’une pratique «authentique» (qu’il s’agit de définir) et traitement didactique risquant de la «dénaturer». (SIZORN, 2014, p.37)12

A “importation d’une pratique «authentique»” (“importação de uma prática “autêntica” - tradução nossa) que Sizorn comenta faz referência à busca por uma definição precisa de Circo, que oriente as propostas pedagógicas da Educação Física a contemplar as características essenciais dessa arte. Porém, esse procedimento vem importando as técnicas corporais do Circo e deixando “escapar entre os dedos” a subjetividade e a poética que de fato fundamentam toda a criação:

En EPS, ce désir de coller au plus près d’une authenticité circassienne nécessite de s’accorder sur ce qui serait «authentiquement» circassien ou artistique, fixant ce qui dans les pratiques sociales en question ne l’est pas, et limitant peut-être ainsi les innovations potentielles, internes au monde de l’éducation physique. (Idem, p.35)13

Logo, a grande problemática da relação da Educação Física com os saberes circenses é justamente que a análise ocorre principalmente em perspectiva objetiva – importando técnicas e elementos da expressão corporal, sem a devida atenção ao aspectos subjetivos – a intencionalidade artística do sujeito e o processo de criação, reforçando a nossa compreensão de que o ponto chave para a mudança dessa tendência está em renovar a forma pela qual a formação inicial em Educação Física aborda e considera a arte como um saber em sua atuação profissional.

Ademais, esse trecho nos desperta para uma interessante reflexão acerca da necessidade de definição de um conceito para a “arte” circense. Concordando com

12 Da mesma maneira, o Circo escolar se tornou disciplina, se tornou disciplinado. [...] O Circo escolarizado se confronta com a vontade de conciliar a importação de uma prática “autêntica” (que ela busca definir) e um tratamento didático que corre o risco de a “desnaturar”. (Tradução nossa)

13 Em Educação Física, o desejo de se aproximar mais de perto à autenticidade circense necessita se oferecer àquilo que seria “autenticamente” circense ou artístico, ajeitando aquilo que nas práticas sociais em questão não o são, e assim limitando talvez as inovações potenciais, internas ao mundo da Educação Física. (Tradução nossa)

a posição da autora, acreditamos que o universo do Circo abarca uma multiplicidade de olhares, sendo essa uma característica primordial: a variedade, a diversidade, e a polissemia de suas expressões e manifestações:

[...] je dois sans attendre en évoquer la caractéristique fondamentale: [le Cirque] est d’une diversité telle, que la recherche d’invariants, sans parler d’éventuelles classifications, est un véritable casse-tête et peut- être même une vue de l’esprit. (GUY, 2001) 14

Uma forma de explorar o potencial dessa linguagem artística na formação inicial é buscar desenvolver o Circo “da” Educação Física: ao invés de apenas apresentar e debater a cultura circense, também criar novos saberes relacionados a esse âmbito de produção e difusão do conhecimento. Assim, as iniciativas desse campo podem ir além da criação de progressões pedagógicas de técnicas reproduzidas do universo circense e da criação de sequências coreográficas, mas desenvolver formas de acesso à práxis da “arte” do Circo ao público que se envolve em sua atuação profissional, assumindo um papel mais denso na produção de conhecimento de novas expressões para o Circo que não se limitem à esfera técnico- instrumental. Para isso, acreditamos que, primeiramente, é necessário constituir um campo de estudos para a arte na Educação Física, para então, a partir de uma compreensão mais clara do papel desses saberes em sua metodologia de ensino, conduzir uma imersão mais profunda ao Circo, trazendo à tona elementos representativos dessa linguagem artística para a atuação profissional. Um exemplo desse processo é descrito por Bortoleto (2011, p.50) ao propor uma “solução pedagógica” para abordar o Atirador de Facas em práticas escolares:

No caso particular do Atirador [de Facas], elaboramos um jogo que consiste em pendurar uma manta de feltro num varal, e, com o emprego de algumas bolas de espuma cobertas de velcro, realizar lançamentos de precisão, da mesma maneira como se faz com as facas. Esta simples modificação no material empregado permitiu aos nossos alunos uma vivência prática do Atirador de facas, tanto no papel do lançador, como no de “alvo que não pode ser acertado”. O sucesso desta brincadeira foi imediato, e tanto os alunos (de todas as idades) como professores perceberam que ao final todos aprendíamos um pouco mais sobre os conhecimentos circenses, oferecendo uma experiência corporal inédita e que a grande maioria apenas tinha

14 Eu não devo esperar para evocar a característica fundamental: [o Circo] é de uma diversidade tal, que a pesquisa de invariantes, sem falar de eventuais classificações, é um verdadeiro quebra-cabeça e talvez até mesmo uma ilusão. (Tradução nossa)

vivido intelectualmente ou simbolicamente. (BORTOLETO, 2011, p.50)

Um passo seguinte a essa dinâmica, exemplificando a nossa proposta, é ir além da reprodução e adaptação pedagógica do Atirador de Facas, que possibilita um contato com os aspectos simbólicos e culturais dessa especialidade circense, e criar maneiras de conduzir o aluno a criar formas de expressão de si a partir da apropriação e do aprendizado sobre a linguagem artística circense. Muito provavelmente o arremesso de “facas” não tenha um significado coerente com a intencionalidade expressiva do aluno que pratica essa brincadeira – também porque essa brincadeira se dedica a vivenciar esses personagens, e não a criar novas formas de se expressar. Porém, a partir da condução de um processo pedagógico que se dedique mais a compreender a linguagem artística do que oferecer acesso aos elementos culturais já existentes no Circo, o aluno pode se tornar capaz de criar formas de expressar sua percepção de mundo por meio de recursos estéticos como o risco, a confiança no colega, e o desafio que fazem parte do número do Atirador de Facas. Esse processo pode ocorrer a partir de uma desconstrução dessa especialidade, transformando a sua dinâmica e criando sentidos realmente significativos ao aluno para os gestos e técnicas em questão. Logo, no âmbito da formação inicial em Educação Física, a atuação docente deve ser capaz de conduzir uma investigação sobre o que o Circo é por ele mesmo, para então partir para a exercitação das suas possibilidades nos diferentes segmentos de atuação profissional da área, estimulando a criatividade dos estudantes em desenvolver novas possibilidades que conjuguem de forma equilibrada e harmônica os elementos constitutivos da linguagem circense com as implicações e objetivos de trabalho do campo em que eles irão se inserir.

A profundidade da abordagem dada ao Circo nas experiências produzidas no contexto da Educação Física é uma preocupação compartilhada pela Contorcionista e pelo Malabarista. Em termos procedimentais, complementares às considerações compartilhadas acima, esses docentes indicam a necessidade de analisar criteriosamente a segurança da prática; adaptar as propostas às demandas específicas do âmbito de atuação; e evitar reducionismos ou abordagens tecnicistas incoerentes com propostas pedagógicas da Educação Física que valorizam os elementos sociais e culturais das práticas corporais. O depoimento da Tedicista complementa essa discussão afirmando que o profissional deve pesquisar recursos

técnicos e didáticos adequadamente, pois não é o fato de que o Circo é um saber novo na Educação Física contemporânea que implica que todas as propostas de abordagem a essa arte devam ser criadas a partir da imaginação do docente. Ela nota que esse é um erro recorrente, vinculado ao senso comum sobre essa arte, e que o profissional de Educação Física primeiramente deve reconhecer a extensão histórica da cultura circense, respeitando a organização e a constituição desses saberes. Assim, a Tecidista indicou que essas iniciativas pedagógicas devem partir de um diálogo franco entre Educação Física e Circo:

[...] o Circo é muito maior do que todos os conteúdos que a gente possa trazer para a Educação Física. Eu acho que é importante ter sempre isso em mente, que os circenses compõem um grupo cultural específico, possuindo uma formação e constituição multifacetada que é própria deles, algo que não cabe a nós melhorar. Talvez consigamos melhorar a nossa formação como futuros professores, aprendendo um pouquinho mais com o que os circenses desenvolveram ao longo dos séculos. (Entrevista com a Tecidista, linhas 576-584)

O Palhaço, ademais, relatou uma estratégia que utiliza para valorizar a cultura circense. O sujeito proporciona aos seus alunos uma visita técnica nas companhias circenses que visitam sua cidade, apresentando e estimulando o respeito às diversas expressões do Circo, suas formas de organização do trabalho, bem como à diversidade técnica e estética que elas possam apresentar.

Reconhecemos que a valorização artística e cultural do trabalho com o Circo na Educação Física não depende apenas da presença desse conhecimento na atuação ou formação profissional, mas da qualidade dessas iniciativas. Referimo-nos à questão de que a prática ou a arte por si mesma pode ser abordada tanto de forma tecnicista, quanto de forma artística – ou ainda melhor, equilibrando harmoniosamente esses dois elementos. A questão central, sendo o ponto mais enfático a ser considerado na formação inicial, é viabilizar uma compreensão clara sobre as problemáticas, barreiras e potencialidades implícitas ao trabalho com os saberes circenses na Educação Física.