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4. AS POTENCIALIDADES DO CIRCO NA FORMAÇÃO INICIAL EM EDUCAÇÃO

4.1 Pesquisa: o Circo como objeto de estudo e pesquisa na Educação Física

4.1.4 Aspectos educacionais e formativos do Circo

Sete sujeitos (23,3%) indicaram os aspectos educacionais e formativos do Circo como argumentos relevantes para suas iniciativas acadêmicas. Eles

descreveram que o seu processo de ensino-aprendizagem, a possibilidade de construção de materiais alternativos, e os efeitos socioeducativos (criticidade, autoconceito e sociabilização, por exemplo) dessa linguagem artística podem favorecer os objetivos educativos da Educação Física.

[As práticas do Circo] melhoram a compreensão do processo de ensino-aprendizagem das práticas corporais; desenvolvem a noção de aprendizado como elemento de melhora da autoimagem, autoestima e autoconfiança nos alunos; estimulam os alunos a procurarem novas possibilidades de trabalho com as práticas corporais; desenvolvem o senso estético nos alunos; e possibilitam a construção de vários materiais. (Sujeito 3, Questão 3.3, linhas 2-3)

O Trapezista relatou que o que mais inspira a sua exploração pedagógica dos saberes circenses na formação inicial em Educação Física é a possibilidade de abordar e construir valores humanos através do brincar com suas práticas corporais e especialidades. O sujeito identifica o lúdico como uma característica própria da linguagem circense, algo que, segundo ele, põe em jogo o que o sujeito tem de melhor e o que ele tem de pior, o que ele tem de mais ridículo e o que ele tem de mais notório, algo que podemos relacionar com a busca pelo sublime e pelo grotesco presente na estética expressiva do Circo, como relata Bolognesi (2001, p. 103):

A matriz do circo é o corpo, ora sublime, ora grotesco. O corpo não é uma coisa, mas um organismo vivo que desafia seus próprios limites. [...] O corpo feito espetáculo deixa de lado a roupa cotidiana que o esconde para se mostrar em sua grandeza contraditória, no jogo incessante entre o sublime e o grotesco. Espetacularmente, ele se desnuda para revelar toda a sua potencialidade. (BOLOGNESI, 2001, p. 103)

Podemos identificar aspectos muito presentes na linguagem circense e que podem inspirar diversas reflexões na formação inicial em Educação Física, assim como notamos no relato acima. A comicidade do Circo (DE CASTRO, 2005; BOLOGNESI, 2005), que o Trapezista relaciona à ludicidade, favorece o debate sobre a relação entre técnica e expressividade, pois o efeito cômico de um número é precisamente organizado de forma a pôr a técnica a serviço da intenção comunicativa do artista. A partir dessa linha de investigação, podemos também questionar a importação de técnicas mencionada anteriormente, reforçando a compreensão da função expressiva dos saberes instrumentais das práticas corporais do Circo. Por outro lado, a comicidade pode ser explorada como um recurso para se criar um

ambiente mais favorável ao brincar com o corpo e com o movimento de modo mais livre, estabelecendo subjetivamente a intencionalidade expressiva do sujeito como fio condutor de uma iniciação artística que respeite as suas limitações ao longo do aprendizado técnico. Uma terceira possibilidade de investigação, como sugere Bolognesi (idem), são os contrastes entre o cômico e o sério, o grotesco e o sublime, o ridículo e o notório, que, em termos pedagógicos, podem ser recursos para ensinar sobre a atitude que o aluno deve ter ao “jogar” expressivamente ora com o risco e a tensão da acrobacia e das demais proezas presentes no universo circense, ora com a malemolência desconcertante e espirituosa para aprender outros recursos linguísticos circenses. Esses dois aspectos caminham conjuntamente na estética circense e podem ser explorados na formação inicial em Educação Física de modo a congregar também as abordagens técnico-desportivas e artístico-expressivas de sua metodologia de ensino, em um sentido de indicar um caminho metodológico que aproxime essas duas esferas que na Educação Física parecem ser contraditórias e opositivas, enquanto na verdade são complementares.

Em seu discurso, o Trapezista afirmou que o lúdico como proposta pedagógica permite a inclusão de um público maior na prática, valorizando as características de cada sujeito. Desse modo, ele indicou que as práticas corporais do Circo auxiliam a promover a sensibilização sobre o significado do corpo, do movimento, e da sociabilização:

Temos técnica para o lançamento de aros, bolinhas, diabolô, etc., mas não temos trabalhado a sensibilidade com os professores. Porque nós nunca trabalhamos, porque poucas vezes eu tive isso, um trabalho de sensibilização, e é algo que eu particularmente estou correndo mais atrás [...]. O que seria essa sensibilização? Seria a preparação de um homem, de um homem que viva em paz, com amor, na não-violência, na ação beneficiosa, benéfica. Que viva na verdade. Então o Circo também pode trazer esses jogos de sensibilização, por exemplo: estou fazendo segunda altura e caio de costas, só que lá atrás tem várias pessoas para me segurar. [...] Esses 5 valores, como eu digo, é isso que vemos nas entrelinhas e podemos trabalhar nessas entrelinhas com as atividades circenses, como também podemos ter situações de jogos de sensibilização nas próprias atividades circenses. (Entrevista com o Trapezista, linhas 738-757)

Sobre isso, Bolton (2004) desenvolveu um estudo criterioso sobre os benefícios do Circo na educação de jovens, evidente no título de sua pesquisa – “Why

developmental experience for young people”15. Nesse trabalho o autor elabora diversas relações entre a linguagem circense e as experiências significantes do desenvolvimento infantil, indicando com precisão e riqueza de referenciais os potenciais educativos do Circo quando se assume a sua essência artística, sem que se reproduza apenas aquilo que “se espia pelo vão da lona”, como muitas vezes identificamos na Educação Física.

However, it is in the paradoxical nature of circus that it operates in a way both mysterious and easily accessible. This thesis proposes that circus as education is more effective when both teacher and student have a better understanding of circus as an art form. To explain this I first introduce six 'elements' of childhood, whose absence often seems to result in an incomplete personal maturity. I then conduct a wide exploration of both the real and the imagined circus, showing how these elements occur or are evoked there, and I establish a correspondence or 'homology' between the two entities - childhood and circus. The discoveries shed light on the aesthetic code of circus itself, leading to the conclusion that circus works as an art form because its essential composition recalls profound experiences of childhood. I argue that contemporary Western childhood presents unexpected hazards, mostly involving passivity and over-protection. In other parts of the world, and in some Western populations, childhood has other problems, linked to deprivation, exploitation and physical danger. In either case, a child involved in circus activities has a chance to make good some deficits, by experiencing constructive physical risk, aspiration, trust, fun, self-individuation and hard work. (BOLTON, 2004, Abstract)16

Hotier (2003), um autor reconhecido por seus estudos sobre a semiótica do espetáculo circense e por seus esforços em compreender a função educativa do Circo é outra fonte importante para compreendermos as potencialidades dessa arte na

15 Porque o Circo funciona? Como os valores e estruturas do Circo o tornam uma experiência de desenvolvimento significante para jovens (Tradução nossa)

16 No entanto, é na natureza paradoxal de circo que ele opera de um modo tanto misterioso quanto facilmente acessível. Esta tese propõe que Circo como a educação é mais eficaz quando professor e aluno têm uma melhor compreensão do Circo como uma forma de arte. Para explicar isso, eu primeiro apresento seis "elementos" da infância, cuja ausência muitas vezes parece resultar em uma maturidade pessoal incompleta. Eu, então, conduzo uma grande exploração do Circo real e imaginado, mostrando como esses elementos ocorrem ou são evocados, e eu estabeleço uma correspondência ou "homologia" entre as duas entidades - infância e Circo. As descobertas lançar luz sobre o código estético do Circo por ele mesmo, levando à conclusão de que o Circo funciona como uma forma de arte, porque sua composição essencial recorda profundas experiências da infância. Defendo que a infância no ocidente contemporâneo apresenta perigos inesperados, envolvendo principalmente a passividade e superproteção. Em outras partes do mundo, e em algumas populações ocidentais, a infância tem outros problemas, ligados à privação, exploração e risco físico. Em ambos os casos, uma criança envolvida em atividades circenses tem a chance de superar alguns déficits, experimentando risco físico construtivo, inspiração, confiança, divertimento, auto-individuação e trabalho duro. (Tradução nossa)

Educação Física. Segundo o autor, o espetáculo, o ambiente, a densidade emocional dos números e a linguagem corporal do Circo são elementos que podem compor o seu trato pedagógico, influenciando a formação da personalidade do praticante. Destacamos ainda a perspectiva de Hotier sobre o papel da arte na educação:

Tous ceux qui prônent l´insertion par la culture, ceux qui utilisent les arts à d´autres fins que le plaisir esthétique, tous ceux dont la mission est d´éduquer et d´aider, et qui font flèche de tout bois parce que l´essentiel est l´humain et parce qu´il y a urgence, tous ceux qui pensent que l´œuvre artistique n´a de sens que si elle contribue à élever, voire à sauver, l´homme, tous ceux-là instrumentalisent l´art. Et le font sciemment. Nous en sommes et nous le disons non sans fierté. (HOTIER, 2003, p.17)17

Na formação inicial em Educação Física, consideramos fundamental introduzir o estudante ao universo do Circo, apresentando-o como ele é, ou “o Circo por ele mesmo, a arte pela arte”, como indicou o Malabarista (Entrevista com o Malabarista, linha 905). Na atualidade, considerando o panorama que identificamos por meio de nossa pesquisa, um ponto fundamental para avançar nessa temática é evitar abordagens reprodutivas ou meramente instrumentais às práticas corporais do Circo ou às atividades circenses na Educação Física, conduzindo um processo de formação da autonomia do estudante que lhe provenha ferramentas para conceber e explorar a polissemia da linguagem circense, a multiplicidade do Circo e a potencialidade da arte, para que então o profissional em formação possa de fato desenvolver um trabalho especializado e coerente no campo de atuação, ao invés de apenas rechear suas iniciativas com práticas superficialmente alternativas e modismos.