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CAPÍTULO III O PRINCÍPIO DA FRATERNIDADE

3.1 A fraternidade: conceito e marco histórico

De acordo com o Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, o vocábulo fraternidade é um substantivo feminino que denota a ideia de: “1. Parentesco de irmãos. 2. Amor ao próximo. 3. Harmonia, concórdia” (FERREIRA, 2001, p. 333).

Por seu turno, o verbo “fraternizar” vem da união das expressões fraterno + izar e possui três significados, a saber: “1. Unir com amizade estreita, fraterna. 2. Comungar nas mesmas ideias. 3. Unir-se como irmãos” (Idem).

Com efeito, se empregarmos a expressão Fraternidade à sociedade, temos que ela nos inspira reflexões no sentido que deriva do vocábulo irmão para além das relações privadas. Nas palavras de Ildete Regina Vale da Silva:

1 – ninguém, nenhuma pessoa humana é irmão de si próprio; se irmão, é sempre irmão de outra(o), isso se constitui um fato, uma realidade social reconhecida e uma relação estabelecida;

2 – naturalmente, os irmãos não podem ser escolhidos, mas podem ser reconhecidos: isso se constitui um fato, uma realidade social que pode ser reconhecida e uma relação de reciprocidade que pode ser estabelecida;

3 – outro(s) irmão(s) existem, independentemente de ser(em) meu(s) irmão(s), ou seja, independentemente de que eu o(s) reconheça como irmão(s): isso também é um fato, uma realidade social que deve ser reconhecida e uma relação de sociabilidade que deve ser estabelecida (SILVA, 2015, p. 130).

E arremata:

É, então, o pertencimento à espécie humana o primeiro vínculo comum e a primeira identidade que se estabelece entre pessoas humanas, no reconhecimento de si pela relação do sentido da existência da outra pessoa humana. […] (SILVA, 2015, p. 131). O termo fraterno suscita esse sentido relacional para a organização da ordem social e da convivência política.

Para Antonio Baggio, a tríade francesa – Liberdade, Igualdade e Fraternidade – constitui um marco teórico de especial relevância (BAGGIO, 2009, p. 09), representando uma síntese política e cultural do universalismo político moderno. A compreensão dessa tríade perpassa, necessariamente, pelo fato da fraternidade ter sido esquecida do contexto político do mundo ocidental.

Baggio explica que, se considerarmos as várias disciplinas que têm a política como objeto de estudo, a ideia de Fraternidade não surge nos ensinamentos consolidados (BAGGIO,

2009. p. 09). Isso se deve em grande parte, muito provavelmente, à ausência de uma tradição de estudos de aprofundamento da fraternidade na política. Enquanto os princípios da liberdade e da igualdade, que ao lado da fraternidade, compõem a famosa tríade da Revolução Francesa de 1789, tiveram um desenvolvimento notável a partir de então, que os levaram a transformarem-se no patamar de categorias políticas propriamente ditas, a ponto de se tornarem presentes nas constituições de vários estados, o mesmo não ocorreu, todavia, com a fraternidade.

Segundo o citado autor, apesar de não se poder atribuir à Revolução Francesa a paternidade histórica da tríade, podemos admitir que, somente a partir dela “é que os dois princípios (liberdade e igualdade) se tornam constitutivos da ordem política e se impõem” (BAGGIO, 2009, p. 10). Já a Fraternidade, somente aos poucos, foi se incorporando à conhecida tríade, pois

A Revolução de 1789 destacou, inicialmente, apenas o primeiro princípio da trilogia, a liberdade. E esta nem era, quando começaram a surgir os lemas, o ponto de referência de todos que queriam mudar a situação vigente. […] Depois de 1789, os franceses foram aprendendo aos poucos a se sentirem livres; mas, enquanto durou a monarquia, não se sentiam, de forma alguma, iguais. Até o golpe de Estado de 10 de agosto de 1792, que derrubou Luís XVI, vigorava um regime censitário, que conferia o direito de voto somente à metade da população, relegando a outra metade à condição de subclasse de cidadãos […].

Somente com o juramento cívico decretado em agosto de 1792 é que a igualdade é oficialmente posta ao lado da liberdade: Juro que serei fiel à Nação e manterei a Liberdade e Igualdade, ou morrerei em sua defesa”. […].

Contudo, tratou-se de um costume, não de uma obrigação; jamais houve lei que impusesse a divisa da igualdade e da liberdade – nem qualquer outra – no território nacional, nem por parte da Constituinte, nem do Legislativo, nem tampouco da Convenção.

O termo fraternidade, com seus adjetivos, já tinha notável circulação em 1790, embora variassem os conteúdos que lhe eram atribuídos. A ideia predominante era a de uma fraternidade que vinculasse todos os franceses, ou seja, que caracterizasse as relações entre os cidadãos. Era entendida prevalentemente como sentimento patriótico e não estava desprovida de marcados elementos de ambiguidade, num período em que a Revolução estava iniciando os conflitos que ensanguentariam suas classes […] (BAGGIO, 2008. p. 25-27).

Relata o mencionado autor que, em 1790, os distritos de Paris, por meio de bandeiras, expressavam os princípios - dentre eles, a fraternidade - que sintetizavam a Revolução. Segundo ele, consta-se que, nesse mesmo ano, a expressão Fraternidade é mencionada pela Constituição na forma de juramento dos deputados eleitos para a Federação, que deveriam prometer “permanecer unidos a todos os franceses pelos laços indissolúveis da fraternidade”.

Em 14 de Julho daquele ano, por ocasião da Festa da Federação, surge o primeiro relato do aparecimento da fraternidade ao lado dos outros dois princípios da trilogia, através da descrição de soldados se abraçando e prometendo liberdade, igualdade e fraternidade. E, em 05

de Dezembro de 1790, Robespierre, em seu discurso sobre a organização das guardas nacionais, apresentou um projeto de decreto, cujo Art. 16 descrevia o emblema dos guardas: “Eles carregarão no peito estas palavras bordadas: 'O povo francês' e acima: 'Liberdade, Igualdade, Fraternidade'. Essas mesmas palavras serão inscritas em suas bandeiras, que trarão as três cores da Nação” (BAGGIO, 2008, p. 25-28).

Além de presente nos discursos, a Fraternidade também estava presente nos movimentos que sacudiam a política revolucionária, as chamadas Sociétés Populaires. Tais sociedades acabaram se tornando responsáveis por desempenhar um papel político na elaboração da democracia e da república, porquanto, através da Fraternidade, era possível reunir segmentos sociais até então separados, desenvolvendo: a) a ideia de sufrágio universal; b) instrução cívica e política do povo; c) vigilância e denúncia contra funcionários públicos; d) revolução linguística, substituindo as expressões “vós” por “tu” e “senhor” por “irmão”; e) uma ideia mais ampla de cidadania, de natureza universal, antes limitada aos cidadãos ativos; e f) o reconhecimento dos empregados domésticos como homens (BAGGIO, 2008, p. 30-31).

A partir dessas sementes lançadas pelas “sociedades fraternas”, o povo passou a atuar como novo sujeito político, de forma mais ampla e plural do que a burguesia, que identificava a Nação como ela própria.

Como podemos observar, a definição de povo e a superação das diferenças censitárias que se tornaram o alicerce do processo de redemocratização, entre os anos de 1790 e 1791, foram sustentadas pelo ideal de fraternidade, que foi buscado junto às sociedades populares.