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CAPÍTULO III O PRINCÍPIO DA FRATERNIDADE

3.3 Fraternidade e solidariedade

Tão grave quanto o esquecimento do princípio da fraternidade é a tentativa de sua substituição pela solidariedade.

Silva (2015) destaca que, a partir do final do Século XIX, houve uma tentativa de substituir a fraternidade pela solidariedade, que continuaria num movimento crescente. Essa tentativa ocorria porque o ideal de solidariedade, em uma primeira análise, apresentava muitas vantagens comparado à Fraternidade, e isso era facilmente compreendido porque aquela levava vantagens em relação a esta em três aspectos: 1) é uma expressão com aparência científica, ou seja, explicaria bem a grande lógica da relação humana e social de modo científico; 2) a solidariedade não representaria, em nenhum momento, sentimentos de amor, de afetividade, de subjetividade, não se podendo falar em Fraternidade em uma humanidade dominada pelo individualismo e egoísmo dos mais fortes; e 3) por ser a solidariedade muito mais adequada à jurisdicionalização, facilitando a sua promoção como princípio inspirador das leis, posto existir uma procedência jurídica no próprio vocábulo.

Nesse sentido, a palavra Fraternidade, outrora tão importante à democracia de 1848, passou a significar tão somente um sentimento, sem qualquer utilidade às gerações posteriores,

que, ansiosas de uma ciência objetiva e positivista, necessitavam de uma expressão que representasse a natureza científica da lei moral. A solidariedade, assim, respondia perfeitamente a essa necessidade e, pouco a pouco, foi reunindo e adequando a maior parte das ideias morais, de acordo com o ideal presente.

Em resumo, com o advento do positivismo e das ciências, a resistência em reconhecer a fraternidade como um dos princípios do universalismo político ocorreu pelo entendimento de que seria mais adequada sua substituição pela solidariedade, no intuito de afastar o caráter religioso e metafísico da expressão.

Silva (2015) explica que, além dessa tentativa frustrada, os argumentos utilizados para substituição eram muito frágeis e limitados por três razões: primeiro, por haver uma tentativa de redução dos elementos conceituais do termo Fraternidade, unicamente, à expressão do sentimento, o que não serve, todavia, para enfraquecer a palavra na dimensão política, mas, ao contrário, é necessária, sobretudo, se a sociedade estiver dominada pelo egoísmo; segundo, por considerar um equívoco a utilização da expressão Fraternidade, porque não leva em conta o sentido da presença desta na composição da tríade, como elo que possibilita a relação de interdependência entre os princípios da Liberdade e da Igualdade; terceiro, porque a ideia de que a solidariedade seria uma palavra que representava melhor a interdependência entre as pessoas seria precipitada, podendo ser confrontada, perfeitamente, pelo conhecimento da Fraternidade.

Assim, também não são lineares os caminhos percorridos pela solidariedade, que, tanto quanto a Fraternidade, conheceu toda a sorte e rejeição nos momentos críticos, como ocorreu na Europa ao longo dos Séculos XIX e XX. Uma das dúvidas que se coloca à solidariedade é no tocante à ausência de definição de que seja ela uma virtude que apareça em situações de crise, econômica ou política, ou como um sentimento republicano que deve acompanhar a todos em todas as ocasiões, correndo, dessa maneira, o risco de ser vista como remédio em vez de um princípio.

Esse risco se resolve no confronto direto com a fraternidade. Esta detém uma carga valorativa muito mais ampla que a solidariedade, respondendo, portanto, de melhor forma, à condição de princípio do universalismo político.

Na realidade, o fato de ser entendida como princípio não reduzirá os riscos da solidariedade continuar restrita à ideia de uma comunidade autorreferencial, assim como não será a passagem da fraternidade à solidariedade que substituirá a comunidade autorreferencial pela sociedade. O que a fraternidade proporcionará é justamente fornecer a condição para repensar a sociedade, concebendo um espaço público mundial capaz de oferecer uma

convivência pacífica, digna e sustentável para esse contexto de globalização contemporâneo. Pizzolato (2008, p. 113) considera ser possível definir a fraternidade como “uma forma de solidariedade que se realiza entre 'iguais', ou seja, entre elementos que se colocam no mesmo plano”. Dessa forma, a fraternidade é identificada como aquela solidariedade chamada

horizontal, ou seja, que nasce do auxílio mútuo prestado entre as pessoas e que se põe ao lado

daquela outra espécie de solidariedade, relacionada à fraternidade de forma subsidiária, e que se denomina de vertical, que se baseia na intervenção direta do Estado em favor das necessidades. Em outros termos:

[…] A solidariedade vertical se expressa nas formas tradicionais de intervenção e ação do Estado social, ou seja, alude à ação direta dos poderes públicos com a intenção de reduzir as desigualdades sociais e permitir o pleno desenvolvimento da pessoa humana. A solidariedade horizontal, por sua vez, diz respeito a um princípio que pode ser deduzido da Constituição, o de um necessário “socorro mútuo” entre os próprios cidadãos, limitando o Estado a oferecer-se como fiador externo […] (PIZZOLATO, 2008, p. 114).

Todavia, isso não significa de modo algum que a fraternidade na linha horizontal ocorra apenas por meio daquelas ações que se dão espontaneamente entre os indivíduos, sem a isso ser obrigados ou incentivados pela lei. Se assim ocorresse, essa espécie de auxílio mútuo teria apenas importância moral ou puramente factual, enquanto não fosse reconhecida como modo tutelado de solidariedade, ou, de qualquer maneira, impedida de transformar, por si só, significativamente, as relações sociais. Os tipos de solidariedade horizontal poderão, assim, incluir, as tarefas ou obrigações de socorro legalmente previstas, seja de natureza incentivadora, seja de natureza obrigatória, a cargo diretamente de determinados sujeitos.

Isso sugere que, de uma forma ou de outra, não é possível distinguir precisamente as formas de solidariedade horizontal e vertical, visto que o simples fato de haver uma normatização a ser respeitada importa, pelo Estado, a predisposição em se organizar no mínimo como órgão de controle ou sancionador. Assim, a intervenção direta do Estado é igualmente, em um sistema democrático e constitucional, uma maneira de institucionalizar a solidariedade “fraterna” entre os seus membros.

Portanto, concluímos que a fraternidade, enquanto princípio como categoria política, a despeito de sua tentativa de substituição pelo termo solidariedade, constitui um conceito bem mais amplo do que este, que geralmente é aplicado em situações esporádicas, pelas razões trazidas alhures.