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CAPÍTULO III O PRINCÍPIO DA FRATERNIDADE

3.6 Fraternidade e sua interpretação por Rawls

Como vimos no item 2.1, Rawls sustenta que a concepção democrática não conduz a uma sociedade meritocrática. A ideia de acesso igual de cargos e posições a todos – estabelecido a partir de condições equitativas de oportunidades e ainda respeitando-se o princípio de diferença – acaba por desconstruir o fundamento de que, em uma sociedade cujas bases se assentam na igualdade democrática, o destino dos indivíduos dependeriam somente de si, os sucessos e insucessos de cada pessoa dependeriam exclusivamente do próprio mérito. Isso se torna patente quando observamos que o princípio de diferença exige que a sociedade forneça a merecida atenção aos menos talentosos e àqueles que ocupam as piores posições sociais, para contrabalançar as desigualdades decorrentes das condições socioeconômicas e da loteria natural.

Outro ponto relevante é que o princípio de diferença é um princípio de benefício recíproco, significando que os mais talentosos igualmente são beneficiados por ele. Isso é assim porque, para que todos tenham uma vida satisfatória, é preciso um esquema de cooperação social, que apenas será obtida de forma voluntária se as condições do acordo forem razoáveis. Segundo o pensamento de Rawls, ao reconhecerem que já foram beneficiados por fatores sociais e naturais vantajosos, os mais favorecidos concordariam que o princípio de diferença deva reger a estrutura básica da sociedade.

Dessa forma, Rawls não está recusando àqueles mais talentosos a recompensa por suas próprias aptidões naturais. A discussão concentra-se, todavia, nas regras que devem regular a estrutura básica da sociedade, e não em responder se um indivíduo possui ou não direito a seus próprios talentos.

Além do princípio de benefício recíproco, o princípio de diferença também encarna um elemento de fraternidade, na medida em que, em uma sociedade cuja estrutura básica seja regida pelo princípio de diferença, os mais privilegiados somente desejarão vantagens maiores se isso beneficiar os menos favorecidos. Para ilustrar, Rawls dá o exemplo da família, em que, geralmente, os seus membros não desejam obter vantagens às custas dos demais, mas somente se isso atender também aos interesses destes (RAWLS, 2016).

Todavia, para que o princípio de fraternidade seja estabelecido não é preciso que envolva laços de afeição e sentimentos, como no exemplo da família. De acordo com Rawls, se for

interpretado como um princípio que inclui os requisitos do princípio de diferença, o ideal de fraternidade é perfeitamente compatível com a política, pois as instituições que mais consideramos justas parecem atender às exigências daquele ideal, na medida em que as desigualdades admitidas por tais instituições contribuem para o bem-estar dos que estão em pior situação. Embora polêmica, essa questão demonstra que Rawls acredita ser razoável esperar que os indivíduos, inclusive os mais favorecidos, ajam segundo este princípio.

A discussão se estabelece em torno do seguinte ponto: uma vez permitida a distribuição desigual posterior de bens primários, algo que melhoraria a situação de todos, por que, estabelecida a desigualdade, os mais favorecidos abririam mão de arranjos institucionais que lhe assegurassem benefícios maiores que aqueles advindos de instituições reguladas pelo princípio de diferença? O princípio de fraternidade seria capaz de responder essa questão? Rawls argumenta que

[…] Os indivíduos, em seu papel de cidadãos com pleno entendimento do teor dos princípios de justiça, podem ter motivação para agir segundo esses princípios em razão, em grande medida, de seus laços com determinadas pessoas ou de um apego à sua própria sociedade. Uma vez aceita uma moralidade de princípios, porém, as atitudes morais não mais se vinculam somente com o bem-estar e a aprovação de determinados indivíduos e grupos, e sim são modeladas por uma concepção do justo escolhida independentemente dessas contingências. Nossas convicções morais exibem independência das circunstâncias acidentais do nosso mundo, sendo o significado dessa independência dado pela descrição da posição original e sua interpretação kantiana (RAWLS, 2016, p. 586).

Mesmo assim, o raciocínio que parte da igualdade, como referência de um padrão de comparação, e chega ao princípio de diferença, utiliza-se de incentivos materiais, necessários para cobrir gastos com treinamento e educação e estimular os mais talentosos, com vistas a assegurar a eficiência da economia. Mas em uma sociedade justa, por que incentivos são necessários, em vez de todos trabalharem altruisticamente buscando a igualdade?

Entretanto, para Rawls, a cooperação social, que se baseia na concepção de igualdade democrática, situa-se na ideia de reciprocidade, e não na ideia de altruísmo. Em uma sociedade bem-ordenada, a reciprocidade dos indivíduos é manifestada por meio da instituição de uma concepção política de justiça publicamente reconhecida, estabelecida sobre termos equitativos de cooperação. Para Rawls (2016, p. 630), “ao fazer justiça para quem pode retribuir com justiça, realiza-se o princípio da reciprocidade em seu nível mais alto”.

Com efeito, temos que a justiça como equidade rawlsiana consegue contemplar os três princípios clássicos da trilogia moderna: a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Nas palavras do autor:

[…] A liberdade corresponde ao primeiro princípio; a igualdade, à ideia de igualdade contida no primeiro princípio juntamente com a igualdade equitativa de oportunidades; e a fraternidade, ao princípio da diferença. Desse modo encontramos um lugar para a concepção de fraternidade na interpretação democrática dos dois princípios, e percebemos que essa concepção impõe uma exigência definida à estrutura fundamental da sociedade. Não devemos esquecer os outros aspectos da fraternidade, mas o princípio de diferença expressa seu significado fundamental do ponto de vista da justiça social (RAWLS, 2016, p. 127).

Dessa forma, a fraternidade, pela construção lógica do princípio de diferença, deixa de ser uma “concepção impraticável”, para se tornar um “padrão perfeitamente aceitável”, desde que dentro da concepção democrática.

CAPÍTULO IV – PARCELAS DISTRIBUTIVAS: BREVES CONSIDERAÇÕES EM “UMA TEORIA DA JUSTIÇA”