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CAPÍTULO I PRESSUPOSTOS DA TEORIA DA JUSTIÇA COMO EQUIDADE

1.5 Sociedade bem-ordenada

Para Rawls, afirmar que uma sociedade é bem-ordenada, representa três coisas: primeiro, é que se trata de uma sociedade em que cada membro aceita e sabe que todos os outros também aceitam, efetivamente, os mesmos princípios de justiça; segundo, é que se reconhece publicamente que a estrutura básica da sociedade – entendida como as mais importantes instituições políticas e sociais e a forma como se articulam em um sistema único de cooperação – implementa aqueles princípios; e, terceiro, que seus membros possuem um senso de justiça que geralmente é efetivo e, em razão disso, em regra, agem de acordo com as instituições básicas da sociedade, que são consideradas justas por eles. Em uma sociedade assim, um ponto de vista comum é estabelecido pela concepção publicamente reconhecida de justiça, a partir do qual se torna possível estabelecer as demandas feitas pelos cidadãos à sociedade (RAWLS, 2011).

Dizer que uma sociedade bem-ordenada se rege por uma concepção pública de justiça implica que seus integrantes possuem um forte desejo e em regra efetivo de agir segundo o que exigem os princípios da justiça. Uma vez que uma sociedade bem-ordenada resiste ao tempo, deve-se presumir que sua concepção de justiça seja estável, ou, dito de outra forma, que, quando as instituições são justas, os participantes desses arranjos institucionais adquirem o respectivo senso de justiça e pretendem contribuir para sua preservação. A esse respeito, Rawls (2016, p. 151) assevera que “a estabilidade da concepção depende de um equilíbrio de motivações: o senso de justiça que cultiva e os objetivos que incentiva devem normalmente ter preponderância sobre as propensões à injustiça”. Assim, a avaliação da estabilidade de uma concepção de justiça e, consequentemente, da sociedade que define, deve se basear na força relativa dessas tendências antagônicas.

Embora se trate de um conceito extremamente idealizado, qualquer concepção de justiça que não se proponha a ordenar, de modo apropriado, uma democracia constitucional, é imprópria como uma concepção democrática. Isso ocorre geralmente em razão de duas ordens de fatores: a) o conteúdo dessa concepção, ao se tornar publicamente reconhecido, leva-a a derrotar os próprios fins, ou; b) porque uma concepção de justiça não consegue obter o apoio de indivíduos que professam doutrinas abrangentes razoáveis, ou, como veremos mais adiante, não consegue obter o apoio de um consenso sobreposto, o que é essencial para uma concepção política de justiça.

Os motivos do fracasso, segundo supõe Rawls (2011, p. 43-45), é que a cultura política de uma sociedade democrática se caracteriza por três fatos gerais:

O primeiro é que a diversidade de doutrinas religiosas, filosóficas e morais abrangentes não são mera contingência histórica fadada a logo desaparecer, e sim um traço permanente da cultura pública da democracia. Sob as condições políticas e sociais asseguradas pelos direitos e liberdades fundamentais propiciados por instituições livres, a diversidade de doutrinas abrangentes que são conflitantes e irreconciliáveis – e, mais ainda, razoáveis – necessariamente vai se manifestar e persistir, se é que já não se manifesta.

Esse fato do pluralismo razoável tem de ser distinguido do fato do pluralismo como tal. […] O que ocorre, mais precisamente, é que, entre as visões que se desenvolvem, há uma diversidade de doutrinas abrangentes razoáveis. São as doutrinas que cidadãos razoáveis professam e com as quais o liberalismo político tem de lidar. Não são apenas o resultado de interesses pessoais ou de classe, ou da tendência compreensível que as pessoas têm de ver o mundo político de um ponto de vista restrito. Diversamente disso, essas doutrinas são em parte produto da razão prática livre sob uma estrutura de instituições livres. […] Ao articularmos a concepção política de forma que possa, no segundo estágio, conquistar o apoio de doutrinas abrangentes razoáveis, o que fazemos não é tanto ajustar aquela concepção às forças brutas do mundo, e sim ajustá- la àquilo que se produz inevitavelmente da razão humana livre.

Um segundo fato geral, vinculado ao primeiro, é que uma visão compartilhada e persistente que tenha por objeto uma única doutrina religiosa, filosófica ou moral abrangente só pode ser preservada pelo uso opressivo do poder estatal. Se consideramos a sociedade política como uma comunidade que se mantém unida pela afirmação de uma única doutrina abrangente, então o uso opressivo do poder estatal se faz necessário à comunidade política. […] Uma sociedade unificada por uma variante razoável de utilitarismo, ou pelos liberalismos razoáveis de Kant ou de Mill, necessita igualmente das sanções do poder estatal para se manter. Denomino isso “o fato da opressão”.

Por fim, um terceiro fato geral é que um regime democrático duradouro e estável, que não seja dividido por confissões doutrinárias fratricidas e por classes sociais inimigas, tem de ser de modo livre e voluntário apoiado pelo menos por uma maioria de seus cidadãos politicamente ativos. Junto com o primeiro fato geral, isso significa que, para servir de base pública de justificação de um regime constitucional, uma concepção política de justiça deve se constituir em uma concepção que possa ser subscrita por doutrinas abrangentes razoáveis que são muito distintas e conflitantes entre si).

Como não há uma doutrina religiosa, filosófica ou moral razoável professada pela totalidade dos indivíduos, a concepção de justiça adotada por uma sociedade bem-ordenada deve se limitar àquilo que Rawls (2011, p. 45) denominou de “o domínio do político” e seus valores. Para que a ideia de uma sociedade bem-ordenada seja formulada de acordo com essa limitação, o filósofo supõe que as visões globais dos indivíduos são compostas de duas partes: “pode-se entender uma destas partes como a concepção política de justiça publicamente reconhecida, ou como coincidente com ela; a outra parte é uma doutrina (inteira ou parcialmente) abrangente à qual a concepção política se articula de alguma forma” (RALWS, 2011, p. 45).

Uma sociedade pode ser bem-ordenada por uma concepção política de justiça desde que os indivíduos que professam doutrinas abrangentes razoáveis, mas que conflitam entre si, componham um consenso sobreposto, ou em outros termos, que subscrevam aquela concepção de justiça como a que fornece o teor dos seus julgamentos políticos quando relacionados às instituições básicas, e, desde que, também, as doutrinas abrangentes que não sejam razoáveis

não conquistem uma aceitação suficientemente capaz de abalar os fundamentos principais da justiça da sociedade. Tais condições não acarretam a exigência utópica de que todos os indivíduos adotem uma única doutrina abrangente, mas, sim, apenas como proposto pelo liberalismo político, a mesma concepção pública de justiça (RAWLS, 2011).

Rawls faz questão de afirmar que uma sociedade bem-ordenada não é uma comunidade nem, em termos gerais, uma associação. Para ele, uma sociedade bem-ordenada, com sua concepção política de justiça, não pode de forma alguma ser imaginada como uma associação, não tendo o direito, como em regra estas têm, de oferecer termos distintos a seus componentes, como no caso dos seus membros originários, segundo o valor da contribuição de cada um ao total ou para as finalidades daqueles que já a integram.

Se isso é possível no caso das associações, é porque já se assegura, tanto aos futuros integrantes quanto aos já filiados, a condição de membros livres e iguais, e as instituições de fundo proporcionam os meios que asseguram alternativas que lhes sejam permitidas. Tampouco uma sociedade bem-ordenada pode ser considerada uma comunidade, porquanto isso significaria negligenciar o alcance restrito de sua razão pública baseada em uma concepção política de justiça.

Esclarecidos esses pontos, retornamos aos requisitos tratados no primeiro parágrafo, para que, segundo Rawls (2011, p. 52), “a sociedade se torne um sistema equitativo e estável de cooperação entre cidadãos livres e iguais, profundamente divididos pelas doutrinas abrangentes e razoáveis que professam”. Primeiro é que a estrutura básica da sociedade seja regida por uma concepção política de justiça; segundo, que essa concepção possa resultar de um consenso sobreposto de doutrinas abrangentes razoáveis; e, por fim, que o debate público sobre elementos constitucionais fundamentais e questões de justiça básica seja conduzido com amparo na concepção política de justiça. Isso, de maneira bem sucinta, resume o que caracteriza o liberalismo político rawlsiano e o modo pelo qual ele compreende a ideia de democracia constitucional.

CAPÍTULO II - PRINCÍPIO DA DIFERENÇA NA TEORIA DA