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A fronteira de separação entre o ilícito penal e o ilícito de mera

3. Espécies de infrações tributárias

3.1. Questões prévias

3.1.1. A fronteira de separação entre o ilícito penal e o ilícito de mera

Mesmo antes de avançarmos para o estudo das espécies de infrações tributárias, tal como se encontram divididas pelo artigo 2.º, n.º 2, do RGIT, há uma questão que merece aqui referência: a distinção entre o ilícito penal e o ilícito de mera ordenação social.

E esta não é, de todo, uma questão despida de sentido. Com efeito, se as infrações tributárias se dividem em crimes e contra-ordenações parece-nos recorrente, numa primeira fase, saber qual o critério distintivo de ambos os ilícitos, o que passa, em larga medida, por estudar o conteúdo de cada um deles. O mesmo será dizer, o bem jurídico protegido. Só uma vez feito este trabalho prévio poderemos avançar para o estudo propriamente dito das espécies de infrações tributárias. Realce-se que não se trata aqui de um desvio discursivo inconsequente, mas antes de uma indispensabilidade metodológica que irá permitir um correto enquadramento do direito sancionatório tributário, sem falar do suporte e das ferramentas cognoscitivas que certamente nos fornecerá aquando do estudo da natureza jurídica da infração tributária, adiante tratada.

Pois bem, que quisermos estabelecer aqui um marco delimitativo na procura da fronteira de separação entre o ilícito penal e o ilícito de mera ordenação social, este bem poderá ser fixado no dealbar do século XX, altura em que começam a ser conhecidas as primeiras doutrinas sobre o assunto (144-

145).

(144) Em bom rigor, a primeira doutrina relativa à distinção entre direito penal e direito de mera ordenação

social, na altura, direito penal de polícia, surgiu um século antes, pela mão de FEUERBACH. O autor tentou efetivamente uma distinção qualitativa entre o direito penal e o direito penal de polícia. Porém, esta doutrina não viria a lograr muito interesse pelos estudiosos do problema. Segundo MANUEL DA COSTA ANDRADE, “Contributo para o

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De facto, foi em 1902, pelas mãos de GOLDSCHMIDT, com a obra

Verwaltungsstrafrecht, que o mundo jurídico conheceu a primeira tentativa

louvável de uma distinção entre ilícito penal e ilícito de mera ordenação s ocial, assente precisamente numa distinção qualitativa entre ambos os ilícitos, cuja diferença – escreve COSTA ANDRADE - se projetava no plano da ilicitude (146)

. Seria, pois, a diferença entre a antijuridicidade – a ilicitude própria do direito penal – e a antiadministratividade – a ilicitude própria do direito penal administrativo: a primeira das ilicitudes seria representativa da lesão de bens jurídicos individuais e equivaleria a um damnum emergens; a segunda, porque representativa da omissão duma conduta necessária à realização de um resultado, valia unicamente como um lucrum cessans (147).

A lesão ou perigo de lesão de um bem jurídico foi, assim, o critério eleito por GOLDSCHMIDT para identificar o direito penal – uma distinção teleológica, portanto – assente numa dogmática exclusivamente objetiva. Mais tarde, veio considerar os interesses do Estado confiados à Administração como o bem jurídico protegido pelo direito penal administrativo. Consequentemente, os termos da distinção entre ambos os ilícitos passaram a ser deslocados para a natureza das normas dos respetivos ramos do direito ( 148 ). Direito penal administrativo surge assim definido como “«o conjunto dos preceitos através dos quais a Administração do Estado, a que se confiou a promoção do bem

conceito de contra-ordenação (a experiência alemã)”, in AAVV, Direito Penal Económico e Europeu: Textos

Doutrinários, Vol. I, Problemas Gerais, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, pág. 85, “[n]uma visão do conjunto, o século XIX assistiu ao progressivo apagamento do Direito Penal de Polícia, tanto no plano legislativo como no plano doutrinal. Os poucos continuadores da teorização de FEUERBACH (v.g. KÖSTLIN e LUDEN) foram sendo silenciados por um número cada vez maior de opositores e críticos. Isto em consonância com as transformações entretanto registadas no horizonte político-cultural que retiravam todo o fundamento à dicotomia Direito Criminal-Direito Penal de Polícia”.

(145)

Para um estudo do quadro histórico-cultural que tornou possível a autonomização de um direito das contra-ordenações face ao direito penal, vejam-se, MANUEL DA COSTA ANDRADE, “Contributo para o…”, op. cit., págs. 79 e ss; JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, “O movimento da descriminalização e o ilícito de mera ordenação social”, in AAVV, Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, Vol. I, Problemas Gerais, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, págs. 21 e ss; EDUARDO CORREIA, “Direito penal e direito de mera ordenação social”, in AAVV, Direito

Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, Vol. I, Problemas Gerais, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, págs. 3 e

ss; JOSÉ LOBO MOUTINHO, Direito das Contra-Ordenações – Ensinar e Investigar, Lisboa, Universidade Católica

Portuguesa, 2008, págs. 17 e ss; e MIGUEL PEDROSA MACHADO, “Elementos para o estudo da legislação portuguesa sobre contra-ordenações”, in AAVV, Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, Vol. I,

Problemas Gerais, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, págs. 150 e ss.

(146) Cf. MANUEL DA COSTA ANDRADE, “Contributo para o…”, op. cit., pág. 87.

(147) Cf. neste sentido, idem. (148) Cf. Ibidem, op. cit., pág. 88.

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público ou estadual, prescreve, dentro da esfera de autorização jurídico- estadual, na forma de preceitos jurídicos, uma pena como sanção administrativa para a contravenção de um preceito administrativo típico»” (149)

. Esta teorização de GOLDSCHMIDT, não obstante ter conhecido sucesso e ter sido fortemente apoiada por autores como V. LISZT e KAHL, presidindo mesmo a tentativas de levar à prática uma codificação separada entre o direito penal e o direito penal administrativo, não tardou a ser criticada por BELING, FRANK, TROPS, entre tantos outros autores (150), razão pela qual acabara praticamente sem apoiantes. Coube a ERIK W OLF, cerca de trinta anos depois, retomar a distinção qualitativa entre direito penal e direito penal administrativo efetuada por GOLDSCHMIDT, defendendo, na sua esteira, a respetiva autonomização codificada deste último. No entanto, fá-lo com uma nota distintiva. Com efeito, a par do critério do bem jurídico, WOLF apela também a um plano de transcendente referência a valores e a sentidos. Para o autor, seria o bem jurídico tutelado pela norma juntamente com a valoração dos danos causados pela sua violação quem permitiria verdadeiramente uma distinção qualitativa entre ambos os ilícitos. A este respeito escreve COSTA ANDRADE – citando WOLF – que os delitos do direito penal administrativo “«não produzem nenhum dano individual nem qualquer dano cultural significativo, mas apenas específicos danos estaduais ou sociais, invariavelmente de dimensão reduzida». São estes danos – que não têm qualquer referência individual ou objectivo-material – que definem, segundo WOLF, a ilicitude material própria do Direito penal Administrativo»” (151)

. Não obstante os esforços de WOLF no sentido de uma nova tentativa de codificação autonomizada do direito penal e do direito penal administrativo, também a sua teoria não atingiu grande êxito. A tão esperada autonomização só teve lugar em 1949, no período pós-guerra, com a promulgação da

Wirtschaftsstrafgesetz, lei que criou a figura jurídica das contra-ordenações, por

influência dos estudos e recomendações de SCHMIDT (152).

(149 ) Cf. GOLDSCHMIDT, apud MANUEL DA COSTA ANDRADE, “Contributo para o…”, op. cit., pág. 88

(aspas no original).

(150) Cf. MANUEL DA COSTA ANDRADE, “Contributo para o…”, op. cit., págs. 89 e 90.

(151) Cf. Idem, op. cit., pág. 91 (aspas no original).

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Também SCHMIDT se mostrou no plano teórico um fervoroso defensor da teoria de GOLDSCHMIDT e da sua distinção qualitativa entre direito penal e direito penal administrativo (153). Com efeito, também este doutrinador sustentou que o que distingue os crimes das contra-ordenações é, desde logo, o próprio conteúdo material da respetiva ilicitude (154). Neste sentido, o crime seria a configuração de toda a lesão ou perigo de lesão de bens jurídicos ocorrida dentro do espaço dos interesses sociais vitais. Pelo contrário, as contra- ordenações não teriam qualquer efeito lesivo de bens jurídicos. A querer falar- se aqui de bens jurídicos – escreve COSTA ANDRADE com referência a SCHMIDT – seria apenas no sentido dos interesses da própria Administração, relacionados com o bom funcionamento da sua actividade (155). A par deste critério distintivo eminentemente objetivo, SCHMIDT lança mão de um outro critério, dito subjetivo – e é aqui, com base neste critério, que o autor verdadeiramente inova, contribuindo de forma definitiva para a referida autonomização do ilícito de mera ordenação social – para diferenciar os crimes das contra-ordenações. Este critério subjetivo, porque relacionado com a diferente atitude do agente e com a distinta dignidade ética dos valores em causa (156), permitiu que o crime apareça como a manifestação de uma atitude de indiferença ou inimizade para com o direito. A contra-ordenação, por sua vez, tem a sua relevância esgotada na mera desobediência a imposições ou proibições eticamente indiferentes ou neutras. Em consequência da diferença que medeia entre ambos os ilícitos, é também diferente a medida da culpa e a sanção que à violação de um e de outro corresponde.

Após SCHMIDT, a controvérsia em torno da vexata questio da fronteira de separação entre o ilícito penal e o ilícito de mera ordenação social parece ter encontrado finalmente algum sossego. Estava assim determinado o critério que presidiria àquela diferenciação: o critério quantitativo, assente nas

(153) Segundo MANUEL DA COSTA ANDRADE, “Contributo para o…”, op. cit., pág. 93, nota de rodapé n.º 72,

– a propósito de um comentário efetuado por JESCHECK ao diploma de 1949 – “a doutrina de GOLDSCHMIDT viu «chegada a sua hora» de descer do campo teórico e de se converter em lei” (aspas no original).

(154) Cf. Idem, op. cit., pág. 94. (155) Cf. Ibidem.

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vertentes objetiva e subjetiva da ilicitude, ou seja, na regra do bem jurídico, por um lado, e na regra da ressonância ético-jurídica, por outro lado.

Desde o século passado até aos nossos dias tem sido comumente aceite que enquanto o crime lesa ou coloca em perigo de lesão bens jurídicos, sejam estes bens individuais ou supra-individuais tutelados pelo direito penal comum e pelo direito penal secundário, respetivamente, as contra-ordenações apenas traduzem uma desobediência, uma frustração de interesses encabeçados pelas autoridades administrativas; enquanto o ilícito penal assume ressonância ética, o ilícito de mera ordenação social surge eticamente neutro ou indiferente (157). A propósito, escreve NUNO B. M. LUMBRALES que “[d]eve, assim, considerar-se que a infracção administrativa consiste num acto socialmente inaceitável, na medida em que lesa ou põe em perigo interesse fundamentais da sociedade, constitucionalmente consagrados e protegidos, mas que não o faz com a intensidade necessária para justificar a intervenção do direito penal, o que em regra sucede pelo facto de a conduta que lhe está subjacente apenas provocar uma lesão ou perigo de lesão indirectos ou de diminuta relevância para o bem jurídico em causa” (158)

.

(157)

Não obstante o critério qualitativo ser aquele que, via de regra, é aceite pela generalidade da doutrina, importa referir que, entre nós, há quem prefira um critério quantitativo, assente numa diferença de gravidade das condutas. Preferindo o critério quantitativo por oposição ao critério qualitativo, veja-se, por todos, J. BELEZA DOS SANTOS, “Ilícito Penal Administrativo e Ilícito criminal”, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 5, 1945, pág. 46, texto disponível em http://www.oa.pt/upt/%7B9652BFD6-6F35-4E23-936D-56250122184B%7D.pdf [10-05-2015]. Em sentido oposto, defendendo o critério qualitativo em detrimento do critério quantitativo, veja-se, por todos, AUGUSTO SILVA DIAS, “Crimes e Contra-Ordenações Fiscais”, in AAVV, Direito Penal Económico e Europeu: Textos

Doutrinários, Vol. II, Problemas Especiais, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, pág. 441. Segundo o autor, “[o] critério qualitativo de distinção é o único racionalmente defensável”.

(158) Cf. NUNO B.M. LUMBRALES, Sobre o conceito material de contra-ordenações, Lisboa, Universidade

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3.1.2. O bem jurídico protegido (em especial pelos crimes