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1.2. O conceito legal: o artigo 2.º, n.º 1, do RGIT

1.2.1. Elementos da infração tributária: exposição sumária

1.2.1.3. O facto culposo

1.2.1.3.1. Culpa e imputabilidade

À semelhança do que acontece com as demais infrações, também a infração tributária assenta num juízo de censura ao seu agente (e também ao facto), não bastando à sua perfeição a verificação da mera materialidade dos factos ao tipo legal. É, pois, também seu pressuposto a culpa, entendida como expressão do juízo de censura dirigido ao agente por ter atuado de forma desconforme ao Direito quando podia e devia agir de acordo com ele. No entanto, a culpa, rectius, juízo de censura, só adquire verdadeiramente relevância jurídica se o facto típico e ilícito, além de praticado com dolo (Vorsatz) ou negligência (Fahrlässigkeit), for imputado (atribuído) a uma vontade humana, a um sujeito de Direito, de forma que se possa afirmar, com toda a propriedade, que a infração (tributária) foi obra sua. Porém – diga-se – nem só a vontade do Homem social é suscetível de culpa. Na realidade são-no também as pessoas ou entes coletivos, embora com algumas especificidades, porquanto se encontra definitivamente afastada a velha máxima societas

delinquere non potest.

E foram, de facto, vários os argumentos apresentados, quer a favor, quer contra a responsabilidade penal das pessoas coletivas e entes fiscalmente equiparados. Aqui, damos destaque a três dos argumentos apresentados a favor, com referência à síntese de NUNO DE SÁ GOMES ( 123 ). Assim defendeu-se:

i) as pessoas singulares limitam-se a agir em nome e no interesse das pessoas coletivas, pelo que,

ii) não são mais do que um agente subordinado a estas últimas. Logo,

(123) Cf. NUNO DE SÁ GOMES, “Evasão Fiscal…”, op. cit., pág. 180. Acerca dos argumentos que procuraram

contrariar a responsabilização penal das pessoas coletivas, veja-se, também, do mesmo autor, “Evasão Fiscal…”, op.

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iii) também elas devem responder penalmente como mandantes, já que não são apenas meras pessoas fictícias mas antes, verdadeiras realidades jurídicas capazes de vontade coletiva, ou seja, de dolo e negligência.

Independentemente das críticas mais ou menos acentuadas que estes argumentos já possam ter suscitado e merecido em tempos não muito distantes, é-nos cometido referir que, em bom rigor, as pessoas coletivas não podem, por si mesmas, cometer infrações tributárias, precisamente por incapacidade natural de ação. Isto não quer dizer, porém, que não possam ser responsabilizadas. De facto, são-no, mas apenas por imputação da responsabilidade de outrem.

A responsabilidade penal (e também contra-ordenacional) há-de derivar

necessariamente dos comportamentos de outrem que lhes sejam imputáveis,

segundo o chamado modelo de imputação, sendo de resto este o modelo que seguramente se encontra consagrado ao nível das infrações tributárias, nomeadamente, no artigo 7.º, n.º 1, do RGIT (124). Com plena validade não só no domínio dos crimes mas também no domínio das contra-ordenações tributárias, este modelo significa tão-somente que à pessoa coletiva são imputáveis a ação e a culpa dos seus órgãos responsáveis. Porém, para que a atuação culposa dos órgãos da pessoa coletiva possa ser imputada a esta última, três pressupostos previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 7.º do RGIT têm de estar reunidos. São eles:

i) a infração tributária ser praticada por um órgão da pessoa coletiva ou seu representante;

ii) sê-lo no em nome e no seu interesse; e

iii) nunca contra ordens ou instruções expressas de quem de direito.

( 124 ) Neste sentido, veja-se, GONÇALO N.C. SOPAS DE MELLO BANDEIRA, “Responsabilidade” Penal

Económica e Fiscal dos Entes Colectivos: À Volta das Sociedades Comerciais e Sociedades Civis sob a forma Comercial, Coimbra, Almedina, 2004, pág. 406, em especial, nota de rodapé n.º 1103. Ainda para uma análise dos

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Uma vez provados estes pressupostos, a responsabilidade penal tributária das pessoas coletivas será uma responsabilidade cumulativa – ou

punição paralela nas palavras de GONÇALO MELLO BANDEIRA (125) – com a

responsabilidade de, pelo menos, uma pessoa física (o agente, órgão ou representante nas palavras do legislador) que cometa a infração tributária em nome e no interesse daquela mesma pessoa coletiva. Neste caso, o agente será punido autonomamente pela sua infração segundo o artigo 6.º do RGIT. Porém, importa referir que esta responsabilidade penal tributária cumulativa da pessoa coletiva e do seu agente só terá lugar quando a infração cometida por este último for um crime tributário. Isto mesmo resulta claro no texto do artigo 7.º, n.º 3, do RGIT. Tratando-se de uma contra-ordenação tributária, apenas a pessoa coletiva é responsável, posto que o artigo 7.º, n.º 4, do RGIT é expresso ao excluir a responsabilidade dos agentes pessoas singulares nas referidas infrações. A propósito deste artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, do RGIT, dois parênteses devem ser feitos. Assim, e no que ao n.º 3 do artigo em questão diz respeito, tratando-se aí de uma responsabilidade penal cumulativa que manda punir dois sujeitos distintos com base num mesmo facto e numa mesma culpa, questões de constitucionalidade poderiam ser suscitadas, nomeadamente, a inconstitucionalidade desse preceito por violação do princípio do ne bis in idem consagrado no n.º 5 do artigo 29.º da CRP. E de facto esta já foi uma questão submetida ao TC. Porém, à invocada inconstitucionalidade respondeu aquele douto Tribunal de forma negativa, argumentando para o efeito que aquilo que o preceito constitucional prevê e impede é que uma mesma pessoa seja julgada duas vezes pelo mesmo facto e não que duas pessoas distintas, no caso uma pessoa singular e uma pessoa coletiva, sejam punidas pela prática do mesmo facto (126)

. Se assim não fosse – rematou o TC – forçoso seria concluir também pela inconstitucionalidade do instituto da comparticipação, previsto nos artigos

(125)

Cf. Idem, op. cit., pág. 410.

(126) Parafraseando outras decisões do mesmo tribunal escreveu concretamente o TC: “O princípio do non bis

in idem contido no n.º 5 do artigo 29.ª da Constituição não obsta a que pelo mesmo facto objectivo venham a ser perseguidas penalmente duas pessoas jurídicas diferentes, sendo também passíveis de sanções diferentes e a consagração legal da responsabilidade individual, ao lado da responsabilidade do ente colectivo, porque não implica um duplo julgamento da mesma pessoa pelo mesmo facto, não viola o artigo 29.º, n.º 5, da Constituição”. Cf. Ac. do TC

n.º 389/2001, de 26 de Setembro, Processo n.º 284/01, disponível em

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26.º e 27.º do CP. Já no que ao n.º 4 do artigo 7.º do RGIT diz respeito, importa ter presente o seu texto: “A responsabilidade contra-ordenacional das entidades referidas no n.º 1 exclui a responsabilidade individual dos respetivos agentes”. Por sua vez, prescreve aquele n.º 1: “As pessoas coletivas (…) são responsáveis pelas infrações previstas na presente lei quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no seu interesse”. Ora, em face do preceituado naquele n.º 4 parece-nos incontestável que ele abandona a regra da responsabilidade cumulativa das pessoas coletivas e dos seus órgãos ou representantes em matéria de contra-ordenações. Porém, já não o poderá fazer com relação ao modelo de imputação previsto no n.º 1 do mesmo artigo, posto que a responsabilidade das pessoas coletivas a que o n.º 4 se refere só existe depois da prática da contra-ordenação pelos seus órgãos ou representantes (n.º 1). Quer isto dizer que antes da imputação da infração contra-ordenacional aos órgãos ou representantes da pessoa coletiva, não há qualquer responsabilidade desta última, já que a sua responsabilização se dá por imputação da responsabilidade daqueles agentes. Além do mais, se não houver esta responsabilização (fictícia) prévia dos agentes, a sua responsabilidade também “não precisa (ou não pode!) ser excluída, [porquanto] não existe. Aliás, essa responsabilidade só é excluída porque existe antes (imputada)” (127)

. Assim, necessário será fazer uma prévia individualização abstrata da imputação da responsabilidade aos respetivos órgãos ou representantes da pessoa coletiva para só depois a poder excluir. Se assim não for, se não houver esta prévia imputação, não se pode responsabilizar a pessoa coletiva, e muito menos, excluir qualquer responsabilidade dos agentes, porque simplesmente, ela não existe.

Feitos estes parênteses, se com o RGIT se passou a estabelecer, para o plano contra-ordenacional, que a responsabilidade do ente coletivo afasta a responsabilidade individual do órgão que praticou a infração tributária, o mesmo já não se poderá dizer com relação ao plano da responsabilidade civil pelas sanções pecuniárias, incluindo, as coimas. Com efeito, o artigo 8.º do RGIT prevê, tout court, a responsabilização subsidiária dos administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções

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de administração em pessoas coletivas ou entidades fiscalmente equiparadas, pelas coimas com que o ente coletivo haja sido sancionado e não tenha pago.

Uma vez que os Capítulos II e III da nossa Parte II estarão especificamente voltados para o estudo deste artigo 8.º do RGIT, ficam aqui dispensadas quaisquer considerações sobre o mesmo.

1.2.1.3.2. Culpa e seu substrato: a voluntariedade da ação (dolo e