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3. Espécies de infrações tributárias

3.1. Questões prévias

3.1.2. O bem jurídico protegido (em especial pelos crimes

Tendo ficado aqui delimitada, em termos que julgamos compreensíveis, a fronteira de separação entre o ilícito penal e o ilícito de mera ordenação social, importa agora determo-nos um pouco sobre aquele que já foi, em tempo não muito distante, um problema controverso na dogmática do direito penal tributário: a identificação do bem jurídico protegido pelos crimes tributários (159).

O ponto de partida nesse sentido é procurado, desde logo, na chamada eticização do direito penal tributário. Hodiernamente não restam dúvidas sobre a eticização deste ramo de direito, posto que o sistema fiscal não tem apenas como finalidade a arrecadação de receitas, mas também a realização de objetivos de justiça distributiva, tendo em conta as necessidades de financiamento das atividades sociais do Estado, o que, por si só, já é suficiente para conferir um caráter particularmente censurável às condutas evasivas e fraudulentas consideradas mais graves. Com efeito, longe vai o tempo em que a fuga ilegítima ao fisco configurava um crime de pessoas astutas, de elevado estatuto social e profissional, e que mais do que censura social, despertava na opinião pública um sentimento de admiração e respeito, porque olhadas como pessoas argutas e bem-sucedidas. É importante não descurar que é essencialmente através da cobrança dos impostos que o Estado arrecada para os seus cofres a maior parte da “fatia” das receitas com que realiza o bem - estar da população – saúde, educação, cultura, etc. – e, portanto, os objetivos de justiça social que a sua dimensão democrática lhe impõe, no encalço da finalidade extra-fiscal fundamental – a repartição justa dos rendimentos e da riqueza (artigo 103.º, n.º 1, da CRP). Como refere ANABELA MIRANDA RODRIGUES, “[é] sabido que ao Estado hoje cabe assegurar ao cidadão não só a liberdade de ser como a liberdade para o ser" (160). A legitimidade e a

(159) Sobre a delimitação de um possível conceito de bem jurídico, veja-se, por todos, MANUEL DA COSTA

ANDRADE, “A nova lei dos crimes contra a economia (Dec.Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro) à luz do conceito de «bem jurídico» ”, in AAVV, Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, Vol. I, Problemas Gerais, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, págs. 389-398

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necessidade da intervenção penal não estão somente dependentes da existência ou da ausência de sentimentos sociais de repulsa e de indignação face às condutas que podem constituir o seu objeto mas fundamentalmente, da conclusão de que valores fundamentais, constitucionalmente reconhecidos, são lesados ou colocados em perigo de uma forma particularmente intensa por comportamentos de nocividade comprovada (161). Bens jurídicos dignos dessa proteção são “tanto aqueles que surgem como concretização de valores jurídico-constitucionais ligados aos direitos sociais e à organização económica, como os que surgem como concretização de valores ligados aos direitos, liberdades e garantias” (162).

Concretamente, são três os modelos que do ponto de vista comparatístico concorrem na determinação do bem jurídico tutelado pelos crimes tributários. São eles, o modelo patrimonial, o modelo dos deveres de

colaboração e o modelo misto (163).

Segundo o primeiro destes modelos, o bem jurídico protegido por de trás dos crimes tributários tem uma natureza puramente patrimonial, centrada na pretensão do fisco em obter integralmente as receitas tributárias (164).

Considera-se, então, que com o crime tributário se viola ou coloca em perigo de lesão o erário público, isto é, a obtenção de receitas indispensáveis à prossecução por parte do Estado social das funções de que está legalmente incumbido. Deste modo, com o facto típico e ilícito não é apenas o (um) património individual que fica lesado. São, antes, os interesses patrimoniais supra-individuais de que toda a comunidade é titular que saem

(160)Cf. ANABELA MIRANDA RODRIGUES, “Contributo para a fundamentação de um discurso punitivo em

matéria penal fiscal”, in AAVV, Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, Vol. II, Problemas Especiais, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, pág. 481 (itálicos no original).

(161) Cf. AUGUSTO SILVA DIAS, “O novo Direito penal…”, op. cit., pág. 245.

(162) Cf. ANABELA MIRANDA RODRIGUES, “Contributo para a…”, op. cit., pág. 481.

(163)

Estes são, de facto, os principais modelos que se debatem nesta matéria e que podem ser encontrados, de forma muito sumária, na obra de JOSÉ CASALTA NABAIS, Direito…, op. cit., págs. 460 e 461, e no estudo de

AUGUSTO SILVA DIAS, “Crimes e…”, op. cit., pág. 445. No entanto, há autores que a par destes modelos acrescem- lhes um outro: o chamado modelo funcionalista, que agrupa na sua designação teorias muito diferentes sobre o bem jurídico protegido pelo direito penal tributário, a saber, a teoria do crime tributário como ofensa à função tributária, a teoria do crime tributário como ofensa ao poder tributário, a teoria do crime tributário como ofensa ao sistema económico e a teoria do crime tributário como ofensa ao sistema fiscal. Sobre este modelo e cada uma das suas teorias, bem como sobre os restantes modelos, de forma desenvolvida, veja-se, por todos, SUSANA AIRES DE SOUSA, Os Crimes Fiscais…, op. cit., págs. 266 e ss.

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verdadeiramente lesados. Numa conceção deste tipo, marcadamente patrimonial, o crime tributário surge estruturado em torno do dano, já que a sua consumação provoca efetivamente um prejuízo patrimonial nos cofres do Estado, seja por via da não entrega da prestação tributária, seja por via da redução indevida da mesma ou ainda pela obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais.

O bem jurídico protegido pelos crimes tributários é, então, em face deste modelo, o erário público.

No que concerne ao modelo dos deveres de colaboração, este estrutura a relação jurídica tributária em cima duma rigorosa colaboração dos contribuintes com a AT.

O crime tributário aparece, então, como resultado da violação desses mesmos deveres gerais de colaboração, com tradução na violação dos deveres de informação, de lealdade e de verdade fiscal (165). De facto, não há dúvidas de que nos tempos modernos os Estados têm vindo a transformar os sistemas fiscais, compatibilizando-os com a evolução da sociedade e com as suas novas necessidades. Uma dessas transformações conhece concretização na crescente intensificação dos deveres de colaboração do contribuinte com a AT, seja no cumprimento dos deveres preparatórios, seja no cumprimento dos deveres acessórios indispensáveis ao correto apuramento da situação tributária de cada contribuinte. Atualmente, o pagamento dos impostos já não é uma obrigação que depende exclusivamente de uma atividade unilateral da AT. Também os contribuintes e terceiros que com eles mantenham relações especiais estão sujeitos a deveres gerais de colaboração com aquela, razão pela qual se fala, atualmente, de uma crescente privatização da AT ou de uma “administração privada dos impostos”, para usar a expressão de JOSÉ CASALTA NABAIS (166).

Segundo este modelo, o fundamento da incriminação não está tanto na fraude ao erário público mas, antes, no comportamento desleal do contribuinte. Os crimes tributários configuram-se, assim, como autênticos crimes de desobediência.

(165) Cf. Idem, op. cit., pág. 461. (166) Cf. Ibidem, op. cit., pág. 357.

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Quanto ao modelo misto, este surge como resultado da aglutinação dos modelos anteriores. Os crimes tributários protegem, face a este modelo, quer o património fiscal do Estado, quer os valores de lealdade fiscal.

Apresentado este quadro geral, face à nossa lei fundamental qualquer um dos modelos apresentados tem acolhimento: o primeiro dos modelos coloca o assento tónico na satisfação das necessidades financeiras do Estado; o segundo assenta no respeito pelos princípios da colaboração e lealdade fiscal a que os contribuintes estão vinculados no dever fundamental de pagar impostos, no dever de cidadania fiscal ou ainda, e não menos importante, no dever fundamental de suportar financeiramente a comunidade estadual. A este propósito JOSÉ CASALTA NABAIS interroga-se mesmo se o bem jurídico protegido pelos crimes tributários não está também no próprio Estado, ou melhor, na própria “sociedade organizada em Estado fiscal social” (167). A lesão

de um bem jurídico fundamenta o desvalor da conduta e este, por sua vez, será necessariamente um desvalor de resultado (Erfolgsunwert). É o resultado da ação e não a ação em si quem ofende ou ameaça os bens jurídicos.

Independentemente do modelo que se prefira, o legislador do RGIT resolveu adotar na incriminação das infrações tributárias o terceiro dos modelos – o modelo misto (168)

, o que é particularmente visível nos tipos legais de abuso de confiança e fraude fiscais, não fosse neles censurada a não entrega à AT de prestação tributária deduzida legalmente devida e a previsão de um determinado resultado provocado pelo não cumprimento dos deveres de colaboração e de lealdade, respetivamente.

Quanto a nós, consideramos que o bem jurídico tutelado pelos crimes tributários é precisamente o erário público do Estado (169). Isto porque nos parece que os deveres de colaboração do contribuinte com a AT formam apenas a base institucional de proteção do bem jurídico coletivo ou supra- individual e não o próprio bem. Com efeito, não se deve confundir aquele que é o bem jurídico imediato – composto pelo património do Estado – com o motivo

(167) Cf. Idem, ibidem, op. cit., pág. 461.

(168) Cf. neste sentido, AUGUSTO SILVA DIAS, “Crimes e…”, op. cit., pág. 445; e JOSÉ CASALTA NABAIS,

Direito…, op. cit., pág. 461.

(169) Têm a mesma opinião, SUSANA AIRES DE SOUSA, Os Crimes Fiscais…, op. cit., pág. 299; e NUNO

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da incriminação – a falta de colaboração. Os deveres de colaboração do contribuinte são deveres instrumentais da obrigação principal, que a auxiliam mas não a substituem. Ao invés de um modelo misto ou de um modelo isolado de colaboração, os crimes tributários são compagináveis, antes e exclusivamente, com um modelo patrimonial assente na gravidade e no prejuízo causado ao Estado pelo comportamento típico e ilícito do agente. Aqui, o critério que permite aferir esse prejuízo parece assentar num critério quantitativo-monetário. Assim, por exemplo, no caso do crime de fraude fiscal, o artigo 103.º do RGIT só pune as condutas ilegítimas nele tipificadas se a vantagem patrimonial ilegítima for superior a € 15.000,00. Se essa vantagem não atingir ou ultrapassar esse valor, as condutas nele tipificadas simplesmente não irão ser punidas a título de crime. Neste caso, entendeu-se ser suficiente a aplicação de uma coima com fundamento exclusivo numa responsabilidade contra-ordenacional – artigos 113.º, 118.º ou 119.º do RGIT.

Deste modo, parece plausível considerar que é às contra-ordenações tributárias que cabe proteger o cumprimento dos deveres de colaboração preparatórios ou acessórios da obrigação principal da relação de imposto, posto que as condutas que as consubstanciam não colocam diretamente em perigo o bem jurídico “erário público”. São meros deveres instrumentais do dever geral de imposto, o que, segundo AUGUSTO SILVA DIAS, “explica que integrem o ilícito penal fiscal apenas aqueles deveres directamente ligados à obrigação tributária principal e que a violação dos deveres preparatórios ou acessórios dessa obrigação tenha sido tendencialmente considerada pelo legislador português fundamento do ilícito contra-ordenacional” (170)

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