• Nenhum resultado encontrado

1.2. O conceito legal: o artigo 2.º, n.º 1, do RGIT

1.2.1. Elementos da infração tributária: exposição sumária

1.2.1.1. O conceito geral de ação (ação lato sensu)

Toda a infração – seja ela própria do direito penal ou do direito das contra-ordenações – é constitutiva em si mesma de um facto jurídico e este, por sua vez, é todo o evento relevante para o mundo do Direito.

A ação, como comportamento exteriormente observável suscetível de ser controlado pelo agente, tem um papel condicionante na construção do conceito de facto punível. É condição ou pressuposto da sua existência, posto que é sobre ela que se vão moldar as predicações posteriores da ação típica, ilícita, culposa e punível, que, no todo, dão forma à infração tributária, ou seja, ao facto punível. Porém, importa precisar, neste momento, que o conceito geral de ação, com caráter prévio e autónomo como é aqui apresentado, não obstante ter a seu favor um adequado procedimento prático de análise dos casos infracionais, não é, do ponto de vista de uma perspetiva científico- dogmática, o mais correto. Num sistema teleológico-funcional e racional do facto punível, a ação surge apenas e tão-só como uma antecipação da tipicidade. Como tal, não logra autonomia (75). A ação só é jurídico-penalmente relevante quando típica, ou seja, como ação típica, como realização do tipo de ilícito (76). Realce-se que com isto não se quer dizer que o conceito geral de ação não tenha interesse. Simplesmente “perde autonomia e, deste modo,

(74) Por razões de ordem prática não pretendemos – nem podemos – fazer aqui uma exposição exaustiva

sobre todos os elementos do conceito de facto punível, posto que todos eles, individualmente considerados, são suficientemente densos para justificarem um estudo autónomo. Por isso, limitar -nos-emos a abordar, dentro do nosso atual contexto – o conceito legal de infração tributária – os pontos que nos parecem mais pertinentes ao seu estudo. De qualquer forma, para um estudo exaustivo do facto punível, com plena aplicação à infração tributária, vejam-se, por todos, JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal – Parte Geral, tomo I, Questões Fundamentais: A Doutrina Geral do Crime, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, págs. 235 e ss; e MANUEL CAVALEIRO DE FERREIRA, Lições de Direito Penal, I – A Teoria do Crime no Código Penal de 1982, Lisboa/São Paulo, Editorial Verbo, 1985, págs. 35 e

ss.

(75) Cf. neste sentido, JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal…, op. cit., pág. 260.

(76) Sobre o significado do “tipo de ilícito”, veja-se, infra, subponto 1.2.1.2.1.2, deste Capítulo II da nossa Parte

47

capacidade para se arvorar em pedra-base do sistema” (77)

. O conceito de ação encontra-se prejudicado a priori pelo tipo, que é precisamente quem se apresenta como decisivo para traçar a fronteira entre o permitido e o proibido. E é por isso mesmo que tem vindo a ser reconhecido, entre os estudiosos do problema, que é à ação típica – ou o que é o mesmo, ao conceito de realização típica do ilícito ( 78 ) – que deve ser dada a primazia dentro do sistema teleológico-funcional do facto punível, ficando o conceito geral de ação apenas com um papel secundário, essencialmente correspondente à função negativa de excluir da tipicidade comportamentos jurídicos irrelevantes (79).

A infração tributária é, como já referimos oportunamente, um facto, um facto jurídico. Princípio hoje indiscutivelmente aceite em matéria de dogmática jurídico-penal e contra-ordenacional de construção do conceito de infração é o de que todo o direito sancionatório é direito sancionatório do facto. Os factos jurídicos podem ser classificados, segundo uma divisão bipartida, em factos voluntários (ou atos jurídicos) e factos jurídicos involuntários ou naturais (80). Os primeiros são, por definição, uma atuação de vontade, condutas humanas dirigidas pela vontade que tanto se podem traduzir numa ação como numa omissão. Os segundos, por sua vez, traduzem condutas desprovidas de qualquer vontade humana, nascem de causas naturais, exteriores a qualquer processo volitivo. Ainda quanto aos factos voluntários, estes podem ser lícitos ou ilícitos. São lícitos aqueles factos que se mostram conformes ao direito, que o cumprem estritamente e que, por isso, são por ele sancionados e admitidos. São ilícitos aqueles factos que se mostram contrários ao direito e, por isso, não consentidos. Podem ser penais ou extrapenais. A infração tributária, porque tem natureza dualista, isto é, penal e administrativa (rectius: contra- ordenacional), tem a particularidade de reunir estas duas caraterísticas. É um

(77) Cf. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal…, op. cit., pág. 260. Para o autor (op. cit., págs. 260 e

261), esta teorização sobre o conceito de ação não significa uma renúncia ao pensamento categorial-classificatório da construção do conceito de facto punível, mas antes, e em todo o caso, uma renúncia ao conceito geral de ação como elemento básico do conceito de facto punível. É por esta razão que o autor defende – na nossa opinião corretamente - uma construção quadripartida do conceito de facto punível.

(78) Cf. Idem, op. cit., págs. 259-261. (79) Assim, idem, ibidem, op. cit., pág. 261.

(80 ) Cf. CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO et al., Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição, Coimbra,

48

facto ilícito penal se traduzida num crime tributário; é um facto ilícito extrapenal se traduzida numa contra-ordenação tributária.

Em termos metódicos, a ação relevante para a dogmática penal tributária será então a ação voluntária, a ação passível de ser dominada pela

vontade humana, traduzida numa conduta positiva (ação em sentido estrito), ou negativa (omissão) (81). Numa palavra, própria da construção da doutrina do conceito de facto punível, a “ação típica”. Nesta fase do discurso cabe-nos precisar que quando falamos aqui em “conduta positiva”, referimo-nos a ação “em sentido estrito” porque, em bom rigor, uma conduta já é, por si só, uma ação (em sentido amplo). Assim, o facto será uma conduta, uma ação humana (em sentido amplo) e esta, por sua vez, será então um comportamento humano – excecionalmente também um comportamento coletivo – artigo 7.º do RGIT –, constituído por um agir (ação em sentido estrito) consistente num facere, ou por um omitir, consistente num non facere (82). Portanto, com a ação (em sentido estrito) viola-se uma proibição, fazendo-se exatamente aquilo que a lei proíbe, e com a omissão viola-se uma norma que impõe um comportamento positivo, não se fazendo o que a norma determina. A omissão corresponderá então à inércia do agente. “[S]erá a abstenção de actuar, isto é, o não fazer ou

deixar de fazer” (83).

Diante deste quadro dual do facto: ação-omissão, as infrações tributárias tanto podem ser o resultado duma ação como duma omissão. E assim ser-nos- á permitida a distinção entre infrações tributárias comissivas e infrações tributárias omissivas (84).

(81) Cf. JORGE LOPES DE SOUSA e MANUEL SIMAS SANTOS, Regime Geral das Infracções Tributárias

Anotado, 3.ª edição, Lisboa, Áreas Editora, 2008, pág. 39

( 82 ) Cf. GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Penal Português – Parte Geral II: Teoria do crime,

Lisboa/São Paulo, Editorial Verbo, 2005, págs. 46-48.

(83) Cf. JORGE LOPES DE SOUSA e MANUEL SIMAS SANTOS, Regime Geral…, op. cit., pág. 40 (itálico no

original).

49

1.2.1.1.1. Infrações tributárias comissivas e infrações tributárias omissivas

Uma distinção bastante frequente que decorre do conceito de infração tributária enquanto “facto jurídico”, isto é, enquanto ação (em sentido estrito) ou omissão, tem que ver precisamente com a diferenciação entre as infrações tributárias praticadas por meio de ação – infrações tributárias comissivas – e as infrações tributárias praticadas por meio de omissão - infrações tributárias omissivas (85).

As infrações tributárias comissivas resultam de um comportamento ativo do seu autor, comportamento esse que está especialmente dirigido a fazer exatamente o que a norma primária proíbe. É assim exemplo de uma infração tributária comissiva a violação de segredo, onde o facto ou ação – entenda-se “ação” no sentido estrito do termo – tipicamente ilícito consiste na revelação de informações abrangidas pelo segredo fiscal – artigo 91.º do RGIT.

Por sua vez, e ao contrário das primeiras, as infrações tributárias omissivas são o resultado do não comportamento do seu autor. Na lição de ARIEL DOTTI, são “ a abstenção da atividade juridicamente exigida. [Constituem] uma atitude psicológica e física de não-atendimento da ação esperada, que deveria e podia ser praticada” (86)

.

Hodiernamente, o abuso de confiança fiscal constitui a infração tributária omissiva por excelência, na medida em que o facto tipicamente ilícito reside aqui na não entrega da prestação tributária deduzida (por conta ou a título definitivo), à qual o agente estava legalmente obrigado – artigo 105.º do RGIT

(87-88)

.

(67) Quanto a esta distinção, embora referente ao crime, mas aplicável, mutatis mutandis, às infrações

tributárias, veja-se, GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Penal… – Parte Geral II…, op. cit., págs. 30 e 31.

( 86 ) Cf. RENÉ ARIEL DOTTI, Curso de Direito Penal – Parte Geral, 2.ª edição, Rio de Janeiro, Editora

Forense, 2004, pág. 304.

(87) Neste sentido, vejam-se, SUSANA AIRES DE SOUSA, Os Crimes Fiscais…, op. cit., pág. 123; e NUNO

B.M. LUMBRALES, “O abuso de confiança fiscal no Regime Geral das Infracções Tributárias”, in Fiscalidade, n.os

13/14, Jan-abr, 2003, págs. 86 e 87.

(88) De acordo com o n.º 2 do artigo 5.º do RGIT, o crime de abuso de confiança fiscal considera-se praticado

50

Ainda a propósito desta distinção, importa referir que algumas infrações tributárias são de difícil enquadramento nesta classificação. Desde logo porque os meios pelos quais se pode praticar uma infração tanto podem respeitar a uma ação do seu agente com a uma sua omissão. Exemplo paradigmático desta situação é a infração tributária de fraude fiscal – artigo 103.º do RGIT. Com efeito, nos termos das diversas alíneas do artigo em questão, a fraude fiscal tanto pode ocorrer pela ocultação ou alteração de factos ou valores declarados ou que devam ser declarados (porque sujeitos a tributação), como pela celebração de negócio simulado. Portanto, objetivamente, a fraude fiscal tanto pode ser uma infração tributária comissiva como omissiva ( 89 ). Tudo depende de saber em qual das condutas enunciadas no preceito se enquadra a atuação fraudulenta do agente. Perante um tertium genus como este, só uma indagação casuística permitirá revelar se a conduta do agente se subsume ao molde de uma infração tributária comissiva ou ao molde de uma infração tributária omissiva.