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Capítulo 3 – Resultados e Discussão: Experts e domínios de expertise

3.1. Infância

3.1.3. A função fraterna

Os três participantes tiveram a infância marcada fortemente por relações fraternas, nas quais os irmãos aparecem com importância fundamental na constituição dos mesmos enquanto sujeitos.

O músico relata que se iniciou muito cedo na arte musical. Tendo vindo de família protestante, na qual o hábito da música é recorrente e tendo a sua mãe como musicista, envolveu-se desde muito cedo com a música. Aos cinco anos de idade já havia entrado para a Escola de Música e posteriormente, sua irmã mais nova também entraria. Mesmo tendo atividades como as do participante advogado, de brincar com os amigos, andar de bicicleta, a música já fora tomando conta de sua vida desde o início. Colocou que seu interesse pela música deu-se aos poucos. Ainda criança, relembra que a sua irmã se destacara por estudar piano e violino, encarando a música como atividade principal desde então. Portanto, o

que assumiu que, de alguma forma, surgiu uma competição, mesmo que não declarada, porque ele queria avançar assim como a irmã havia avançado.

Diferente de mim, ela (irmã do músico) resolveu encarar a questão musical como a bandeira que ela iria empunhar pra vida dela. E eu ainda fiquei naquela coisa muito dividida e tal. Então, quer dizer, com esse enfoque, ela começou a se dedicar muito mais. Como eu tinha mais tempo de instrumento do que ela e ela começou a avançar... Obviamente , você se sente um pouco pra trás e começa a competição. Mas era aquela coisa saudável, de querer avançar também,

entendeu? (músico)

A terceira participante, a acadêmica em química, relembra com intensidade como se sentia sendo a quinta filha de sete irmãos. Chegara a pensar que havia sido adotada, por se encontrar numa posição desprivilegiada em relação ao seu nascimento. Disse que não foi a primeira menina, nem a mais velha e que, portanto, não teria, em sua visão, qualquer destaque diante dos demais irmãos e perante aos seus pais. Foi então que disse que teve que buscar por si própria a saída para aparecer naquela família. Relata que sempre foi extremamente

responsável e estudiosa e que foi assim que foi ganhando o olhar dos outros membros da família. Participante que também tivera uma infância na qual brincara de jogos da época e sempre procurava ter algum tipo de atividade.

Esse é o meu ponto forte e o meu ponto fraco: a minha responsabilidade! Eu sempre fui muito responsável, comprometida. (acadêmica em química)

O advogado teve seu espaço tomado por seu irmão mais novo que, ao nascer, instaurou uma competição pela posse da mãe, como já discutido anteriormente. Ele relatou que a sua família extensa era grande e convivia muito de perto com a sua família nuclear. Chegara até mesmo a estudar em colégios iguais aos dos seus primos. E tendo estudado na mesma turma de um deles, o participante relata o fato de que ficou sabendo, por seu primo, que o mesmo deveria sempre tirar uma nota maior que a dele, que era um bom aluno na época. Caso isso não acontecesse, o primo seria reprimido em casa.

A gente era da mesma sala, então a prova era igualzinha uma do outro. Ele tinha uma obrigação de tirar uma nota mais alta do que eu e ele não conseguia. (advogado)

É possível verificar que a competição fez parte, desde muito cedo, da vida de cada um dos participantes. Com o músico, observa-se que ele gostaria de receber os créditos que a sua irmã havia conseguido, mesmo com menos tempo na música que ele. Com a acadêmica, percebe-se a necessidade de ser vista na numerosa família e os estudos ocuparam um lugar de destaque em sua vida para que ela pudesse se destacar também em seu meio. Com o advogado, viu-se a angústia da separação diante do nascimento do irmão mais novo, bem como as

competições que havia com os seus primos no que tangem às notas escolares. Tais fatos apontam para a necessidade de se fazerem reconhecidos no seio familiar, em ter a atenção da família, ou demarcar seus espaços no ambiente doméstico.

De acordo com Carneiro e Goldsmid (2007), a chegada de um irmão ou do segundo filho na família institui a formação da fratria. A instauração da fratria vem a desequilibrar o ambiente familiar estabelecido até então, apontando para uma necessidade de mudança dos papéis de cada membro da família, bem como das relações estabelecidas entre eles. O filho único que passa a se tornar o mais velho tem a necessidade de reorganização do seu espaço, considerando a existência de um irmão mais novo que nasceu.. Há uma perda, neste

momento, do lugar privilegiado que o filho, antes único, ocupava como o centro das atenções da relação parental. Uma perda, portanto, que traz outras possibilidades à criança, pois esta é introduzida a uma nova rede de relações sociais, quando negociações,

julgamentos, partilhas e leis ganham espaço, e o que vem a ter a sua repercussão na sociedade mais ampla com seus múltiplos relacionamentos.

Assim, é possível verificar a dificuldade do advogado em ter de deixar de ser o alvo das atenções de sua mãe enquanto filho caçula que era até então, a reorganizar-se como separado da mesma e tendo que dividir o espaço com o irmão que acabara de nascer. Angústia que foi amenizada com o tempo.

Seguindo com Carneiro e Goldsmid (2007), momentos de ruptura do equilíbrio familiar, como no caso da chegada do irmão e que leva a perda do espaço que o advogado ocupava antes, pode vir seguido do retorno a momentos mais primitivos do sujeito. No caso, não são relatados regressões em nível de controle dos esfíncteres, em querer dormir com os pais ou outras possibilidades mais infantilizadas da criança.

Quando fala em mãe, a primeira imagem que vem na cabeça foi quando o meu irmão mais novo nasceu e aí eu perdi aquele contato. Ela teve parto cesariana e ele foi prematuro. Ela ficou muito tempo no hospital. Sempre que eu me

lembro da minha mãe quando era muito criança, foi essa falta que eu tive lá quando o meu irmão nasceu. (advogado)

O músico, que por sua vez buscava alcançar o patamar musical que a sua irmã

alcançara mais rapidamente que ele, buscava não somente os créditos musicais, como também as atenções que perdera com a aparição da irmã com o seu sucesso. Então, estudar

aprofundadamente a música o permitiu ser visto com todas as suas credibilidades, na tentativa de ter as atenções voltadas a ele novamente.

Eu entendo que nesse momento não foi uma coisa que eu decidi. E aí, a minha irmã foi também. Então, aí é que se estabelece um pouco daquela

competitividade em casa e você vai um pouco, se interessando por isso. (músico)

A acadêmica em química relata a dificuldade em aparecer diante de seus seis irmãos e que um dia percebera que ela deveria se fazer vista de alguma forma. Como sempre fora muito organizada e estudiosa, percebeu que assim poderia se destacar com suas altas performances no período escolar. Dessa forma, a química conquistou o seu espaço no meio familiar tão grandioso e no qual se sentia até mesmo como não pertencente a ele, como relatara.

Quando era criança, ficava: “Ah, poxa vida, ninguém liga pra mim!” Qual a novidade de ser a quinta filha? Nenhuma. (...) Era a terceira mulher, quer dizer, tinham dois homens, depois vieram mais duas mulheres e eu fui a

terceira mulher. E depois, ainda vieram um homem e uma mulher. Então, eu fiquei literalmente ali no miolo, mas foi bom, porque alguma hora me deu um estalo que eu falei assim: “Gente, se eu não for por mim, eu não apareço aqui!” (acadêmica em qúimica)

Com os depoimentos acima é possível verificar a necessidade de cada um dos

participantes em se fazer notar no seio familiar e diante de irmãos. De acordo com Carneiro e Goldsmid (2007), a relação entre os irmãos, ainda na infância é marcada pela disputa pelo amor dos pais, como também pelo desenvolvimento de si mesmo a partir da diferenciação com os irmãos.

Citando Adler (1957), Carneiro e Goldsmid (2007) pontuam que o segundo filho é considerado privilegiado, pelo fato de necessitar de mais amparo que os irmãos mais velhos por justamente ocupar a posição de ser o filho mais novo. E, por isso, isto lhe traria algumas conseqüências, como sentirem-se estimulados a mostrar que são tão capazes como os irmãos mais velhos que funcionam como modelos para os menores, buscando sempre a sua superação. Por outro lado, existiriam outros que não conseguiriam tal engajamento na busca em se

tornarem melhores, podendo muitas vezes apresentar um senso de inferioridade diante dos demais irmãos. O que pode ser enfatizado pelos próprios pais ao terem o filho caçula como aquele que sempre precisará de cuidados, por ser considerado o mais frágil e desprotegido, enquanto os mais velhos vão conquistando a sua autonomia. Aí, entra uma outra questão: a necessidade do desapego dos pais a dar as possibilidades de crescimento do filho protegido.

Todavia, ao relembrar a história da acadêmica em química que, diante de muitos irmãos, se superou nos estudos e apareceu na família, fazendo-se reconhecida, mostra que a sua posição na escala dos nascimentos dos irmãos não foi impedimento para que se

desenvolvesse, buscasse a sua independência e conquistasse o seu sucesso. Foi justamente no movimento em se mostrar tão boa ou melhor que os irmãos, e que poderia ter o olhar dos pais por isso, que deu a si mesma a possibilidade de se estabelecer enquanto tal.

De outro modo, o músico, apesar de ser o filho mais velho, demonstrou uma

dificuldade inicial em se mostrar diante de uma irmã maior de tanto sucesso. Foi então que, de modo inverso, buscou se aprimorar para aparecer com bravura ao lado da irmã.

Já o advogado, ele apresentou diversas buscas ao longo do seu processo de

desenvolvimento até que viesse a estudar o Direito. Durante o período infantil e adolescente, desafiou as leis demonstrando a sua dificuldade em lidar com elas, seja enfrentando os professores em sala de aula, seja com as inúmeras reprovações escolares por não seguir as regras de disciplina. Após um longo caminho entre estudos de administração e economia, foi justamente no estudo das leis que encontrou o seu sucesso, vindo a se tornar um advogado de renome. Uniu-se ao objeto do Direito para dar conta de sua existência no mundo e a tornar-se um homem de sucesso e que poderia ser desejado pela mãe, ainda mais tendo sido o pai um advogado sem muito destaque. Nesse ponto, tal constatação nos remete ao momento do retorno do édipo, quando o filho quer tomar o lugar do pai, tanto como buscando igualar-se a ele profissionalmente, como quando escolhe as leis para estudar, as leis que são as castradoras das impossibilidades da sociedade. É o que será visto mais adiante.

O nascimento do segundo filho também instaura um subgrupo familiar, ou subsistema fraterno, que pode gerar tanto harmonia como conflitos familiares e que constituem uma forma de ensaio para os relacionamentos extra-familiares. O ciúme com a chegada do irmão mais novo e que requer maiores atenções instaura no mais velho a inveja e, com isso, a disputa pela posse da mãe. Porém, não só de rivalidade vivem os irmãos. As experiências compartilhadas, as características da própria geração, como a união de ambos por uma doença na família,

garante também a construção do vínculo da solidariedade num momento posterior. As relações entre os irmãos são consolidadas no período da infância, muitas vezes apresentam grandes conflitos e transformações no período da adolescência, vindo a ser reestabelecido, comumente, um equilíbrio na idade adulta e na velhice. Equilíbrio esse que foi conquistado pelos

participantes das pesquisa. Cada momento do desenvolvimento, portanto, apresenta novos meios de manutenção e reestruturação da relação fraternal. Somam-se, também, os aspectos particularizados como gênero, idade, intervenções parentais, idiossincrasias de cada um dos membros do sistema familiar e as relações que são estabelecidas com o meio externo. (Carneiro e Goldsmid, 2007).

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