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Expertise e pontuações psicanalíticas: alguns casos

Capítulo 1 – Revisão de Literatura

1.2. Expertise e Relações Objetais

1.2.3. Expertise e pontuações psicanalíticas: alguns casos

Freud (1910/1974) postulava a existência de traços diferenciados ao pensar indivíduos como Leonardo da Vinci, da renascença italiana, e considerado um gênio universal já pelos seus contemporâneos. Suas obras-primas em pintura e seus interesses em investigar a

nutrição das plantas, reações e venenos e em dissecar cadáveres de cavalos, despertavam a curiosidade em compreender como o artista e cientista havia se configurado enquanto tal.

De acordo com Freud, observa-se a transformação da força psíquica pulsional de Da Vinci em diversas atividades e, assim, as forças físicas não poderiam ser realizadas sem algum prejuízo. Daí, o adiamento de gratificações da ordem da sexualidade em sua vida. Pode-se considerar o artista como um expert ao retratar o belo de sua época e ao realizar as suas experimentações, o que o fez tornar a sua própria existência esquecida. De outra forma, contradizendo a condição expert de um sujeito que sabe muito sobre um determinado assunto, Da Vinci se dedicava a diversos conteúdos. Possivelmente, antes mesmo que uma atividade beirasse o seu esgotamento, envolvia-se logo com outra, de modo a não lidar com a angústia do vazio que o faria enfrentar o seu desmoronamento enquanto sujeito.

Um outro ponto destacado por Freud (1910/1974) são os detalhes minuciosos de suas obras e pesquisas. Punha-se a serviço das mesmas por tempo indeterminado e a contemplar os pequenos contornos que tinha dado a elas, atendo-se a um caráter quase que obsessivo compulsivo. Apesar de cercado constantemente por muitos amigos e desfilar na alta sociedade, preservava o seu momento contemplativo e solitário.

Freud argumenta que, no recalcamento da expressão sexual, Da Vinci encontrou na ânsia do conhecimento a via para sublimar as suas pulsões. Observa a sua extraordinária capacidade em sublimar o que existe em si de mais primitivo. A sede de conhecimento, investigações do mundo a sua volta, pinturas de quadros melancólicos e enigmáticos, como o da Mona Lisa, projetam a dificuldade pela busca por gratificações amorosas.

Em seu estudo sobre Mozart, Storr (1972) observa que, por volta dos quatro anos de idade, o menino já havia começado a compor. Percebendo a aprovação, interesse e orgulho de

seu pai, também compositor, Leopold, Mozart constituiu forças suficientes para continuar as suas composições. A consciência é colocada por Storr como a motivação para a persistência, prática e aprimoramento da atividade com a qual o sujeito se relaciona.

Remetendo-se aos conhecimentos quanto ao desenvolvimento do sujeito expert, o estudo deliberado pode ser pensado em paralelo à história de Mozart. Houve um momento no qual o pai o incentivou a permanecer na composição das suas músicas, movimento que o fez negociar com a sua melhor forma de expressão criativa, e a se auto-regular diante dela, monitorando e aprimorando a sua arte.

Nannerl, filha de Leopold, também fora incentivada nas práticas musicais pelo mesmo. Mas logo o pai percebera que Mozart desempenhava melhor a função e dedicou-lhe maior atenção. Percorreram diversas localidades da Europa com o próposito de Leopold mostrar as práticas de seus filhos. Mozart foi aperfeiçoando-se no cravo e verificou-se que pelo fato de ser uma criança e tocar as suas composições próprias deixava o grande público impressionado. Ao deixar a filha em um plano secundário, Leopold deu apoio suficiente a Mozart para continuar na sua empreitada (Storr, 1972).

Observa-se, nesse momento da vida de Mozart, que seu grande interesse pela composição ganhou o aval de terceiros que não apenas o pai, o que constitui uma etapa do desenvolvimento do estudo deliberado também, contribuindo para o relacionamento que o compositor veio a estabelecer com a sua arte.

Partindo da psicanálise, a relação com o meio exterior ou com a forma através da qual o pai de Mozart lidou especificamente com as suas produções, propiciou a atualização de sua expressão e a condição para o seu aprimoramento. A constituição do sujeito e o seu

posicionamento subjetivo se tornam fundamentais, seguindo Storr (1972), para pensar os gênios.

Mozart, em seus últimos anos de vida, com a popularidade em baixa, teve problemas financeiros e de saúde, o que contribuiu para a diminuição da sua produção. De todo modo, mesmo dedicando-se intensamente ao longo de sua vida à arte, casou-se, porém manteve-se sempre na dúvida quanto à sinceridade do amor que sua esposa lhe dedicava. Refletindo quanto ao adiamento de gratificações em prol de suas composições, pode residir aí a sua desconfiança com relação à esposa (Storr, 1972).

Outro exemplo, também destacado por Storr (1972), é o de Albert Einstein. A partir da biografia realizada pelo seu filho, Albert Einstein Junior, Storr analisou a infância do gênio da física e verificou algumas características. Einstein fora uma criança considerada bem comportada, tímida e sozinha, e que já se afastava do mundo a sua volta desde muito cedo. Na escola, a sua marca estava na dificuldade de socialização, e na tendência de manter- se envolvido com os seus sonhos, considerados absurdos, a partir dos quais era julgado como um deficiente mental.

Constituindo-se como cientista e consagrado com a criação de um novo modelo de universo com a teoria da relatividade, a história de sua vida foi determinante para a sua condição enquanto sujeito. De acordo com Storr, a sua condição solitária, seu afastamento das relações sociais, lhe propiciaram o seu distanciamento quanto aos posicionamentos que vigoravam à época, de modo a possibilitar a criação de um novo paradigma para o universo. Viver intensamente o seu mundo subjetivo lhe permitiu ser considerado um gênio diante da sua descoberta. O retraimento como uma das características da personalidade esquizóide que lhe era atribuída, na sua constituição enquanto sujeito, parece ter-lhe permitido alçar vôos mais altos que seus contemporâneos.

Verifica-se, mais uma vez, a constituição do sujeito como fundamental para pensar a configuração de um expert, na perspectiva psicanalítica. A condição solitária tornou-se fundamental para a criação de Einstein, ao se distanciar da vida partilhada em sociedade e suas gratificações. Integrou as suas pulsões no interesse em desvendar mistérios do universo.

Storr (1972) diz que a criatividade constitui um modo adaptado de uma potencialidade humana que busca soluções simbólicas para as tensões internas e dissociadas a que todos os seres humanos estão submetidos, mesmo que em níveis diferentes. Os passos da criança até a vida adulta são fundamentais para a constituição do sujeito. Como foi visto com Einstein, a sua genialidade não pode ser separada da sua condição infantil e da sua estrutura de

personalidade esquizóide.

Beethoven é considerado um dos maiores mestres da música, por ter inovado toda a forma musical, tornando-a plástica, verificando a arquitetura de seu movimento e

diversificando modos musicais já cristalizados. O músico teve uma vida pessoal muito tumultuada. A sua vida amorosa é lembrada por um curto relacionamento que não seguiu adiante pela não aprovação da família de Josephine. Teve uma paixão que não pôde ser vivida e não se sabe ao certo o motivo. Seus relacionamentos familiares foram marcados por discórdias. Mudava-se de endereço constantemente e era conhecido pelo tratamento ruim dispensado aos outros. Seus hábitos eram o de vestir roupas sujas, com o que não se

importava. Não teve um círculo de amigos próximos ao longo de sua vida. Sua mãe morreu cedo de turbeculose e, com os problemas de alcoolismo de seu pai, Beethoven teve que cuidar dos seus dois irmãos mais novos (Davies, 2002).

Pela sua história de vida brevemente mencionada, Beethoven se constituiu como um solitário, não se importava com limpeza e nada que possibilitasse a aproximação de outras pessoas. A própria mudança constante de endereço não possibilitava a criação de laços

afetivos mais próximos, o que, de todo modo não constituía o seu interesse. A severidade com que tratava os demais refletia um grande sofrimento que o amargurava. Observa-se que veio a sublimar as suas pulsões vitais em torno de algo que lhe gratificasse, a música. As outras esferas da vida tornaram-se-lhe secundárias.

O primeiro professor de música de Beethoven foi seu pai, um tenor a serviço do Electoral Court at Bonn. Posteriormente, pediu a Tobias Pfeiffer, do mesmo grupo de música de seu pai, que continuasse a ministrar as suas aulas de música. Com ele, praticava a música até o amanhecer. Com pouca idade, já estudava órgão, violino e piano. Tem-se, aí, toda a movimentação de um estudo deliberado. A partir do que aprendeu com o seu pai, foi negociando quais lhe seriam os melhores professores. Depois, passou a se relacionar a seu próprio modo com a música. Beethoven gostaria de ter estudado com Mozart, que havia morrido um ano antes de sua chegada em Vienna. E foi nessa localidade que se estabilizou como um grande pianista.

Matemático americano, filho de um engenheiro elétrico e uma professora, John Nash, aos doze anos, já realizava experimentos científicos em seu próprio quarto, sempre solitário a preferir trabalhar com outras pessoas. Estar consigo próprio e realizar as suas experiências era uma forma organizadora das suas angústias que lhe trazia apaziguamento (Nasar, 1998).

Na escola, era rejeitado pelos colegas de classe, com piadas quanto à sua condição diferenciada e superioridade intelectual, como assim o consideravam. Sua irmã mais nova escreveu certa vez que Nash sempre foi muito diferente das outras crianças e que os próprios pais o percebiam como diferente, mesmo sabendo de seu potencial. Nash sempre quis fazer tudo a seu próprio modo. Sua mãe insistia para que a irmã o incluísse em sua rede de amigos, mas ela não gostava de mostrar o seu irmão. que se apresentava como um estranho aos demais. Nash escreveu em sua autobiografia que seu interesse por matemática surgiu a partir

de seu contato com um livro chamado Men of Mathematics, dado por seu pai e, a partir daí, foi se envolvendo passo a passo com a matemática (Nasar, 1998).

Os primeiros sinais da esquizofrenia de Nash foram através da paranóia, sendo admitido no McLean Hospital, quando diagnosticado como esquizofrênico paranóide, juntamente a um quadro de depressão. A sua vida então passou a ser entre permanências em hospitais e fora deles. Passou a receber a terapia de choque e antipsicotizante como medicamentos. Mas, um tempo depois, decidiu que não mais os tomaria, nem mesmo faria a terapia de choque e, assim, nunca mais os realizou. Fixou-se num trabalho comunitário no qual a sua diferença era então aceita. Tornou-se conhecido no Centro de Matemática de Princeton, local no qual se tornou pesquisador Senior em Matemática, como o “Fantasma do Corredor”, por ser tido como uma figura estranha que deixava esboçadas equações matemáticas em quadros-negros durante a madrugada.

Hamlet e Macbeth foram obras de Shakespeare na qual Freud se debruçou mais intensamente. Dedicou-lhes ensaios e explorou como ambas refletiam a exposição de suas próprias idéias acerca da psicanálise, como diante das estruturas intrapsíquicas. De toda forma, Freud não deixaria escapar o amplo material conflituoso neurótico que povoava o universo shakespeareano (Perestrello, 1996).

Numa tentativa de desvelar o caráter quase autobiográfico das tragédias de Shakeaspeare, Freud pontuou a neurose hamletiana, a loucura de Lear, a ousadia de Macbeth, o caráter de Lady Macbeth e os ciúmes de Ottelo, como reflexos de uma vida interior vivida intensa e ricamente e que forneceu os subsídios para que se tornasse um escritor de tamanho reconhecimento (Perestrello, 1996).

Observa-se que o envolvimento de Shakespeare com as suas obras tem um caráter quase que de catarse, ao passo que deixa que os sentimentos mais primitivos que lhe angustiam e lhe são inconscientes, encontrem um direcionamento para a sua descarga num processo sublimatório. Demonstra uma vida interior rica em sentimentos primários com os quais não sabe lidar, e escrever se torna uma forma de organização de idéias, que do ponto de vista psicanalítico, é constituinte de todo sujeito. Daí o alcance das obras shakespereanas e o modo especial que toca a todos os indivíduos que delas tomam conhecimento. A genialidade de Shakespeare se deu com a sua própria condição enquanto sujeito e que busca uma forma de expressão para as angústias que lhe são constituintes. E, mais uma vez, o contato interior, consigo próprio, se mostrou o caminho para o desenvolvimento de um domínio, no caso, a literatura.

Freud (1928/1974) argumenta que não é difícil para um psicanalista descobrir algo que já não se saiba sobre algum escritor, diante da coerência e consistência de seus escritos, como foi visto com Shakespeare. Ao investir em decifrar o enigma por trás de Dostoiévski e o parricídio, Freud especula que a melancolia do escritor é derivada de desejos parricidas e que nele compareceu sem culpas, dado o caráter inconsciente com que estão vinculados à obra de sua autoria.

Freud se reporta às primeiras crises sofridas por Dostoievski, em seus primeiros anos de vida, relacionadas a um temor da morte que se expressava em estados sonolentos e letárgicos, anteriores mesmo às crises de epilepsia que viria a sofrer. Teve um momento em sua vida, recordado pelo seu amigo Soloviev, em que foi acometido por uma melancolia súbita e sem fundamentos, quando lhe contou que sentira que morreria naquele mesmo momento. Freud faz referência a essa crise como uma identificação com uma pessoa morta, seja alguém que esteja realmente morto, ou com alguém que está vivo, porém que o sujeito

deseja que morra. De acordo com Freud, para estudar Dostoiévski , o último caso é mais significativo.

De acordo com Freud (1928/1974), a crise do escritor tem um caráter punitivo, de modo que, ao querer que outra pessoa morra, esta condição retorna a si, com os sintomas acima mencionados. Nessa outra pessoa, é geralmente encontrada a figura paterna, e a crise histérica sofrida por ele constitui uma auto-punição pelo desejo de morte do pai por ele odiado. Assim, esses desejos o constituíram como um sujeito melancólico pela culpa diante de querer a morte do pai, fazendo-o voltar-se a si mesmo e encontrar na literatura a forma de sublimar o que lhe causava tanto sofrimento inconsciente.

Nas obras de Salvador Dalí, renomado pintor espanhol e conhecido pelo seu trabalho surrealista, encontram-se combinações estranhas, como imagens que fazem remeter aos sonhos. O desenvolvimento de sua obra apontava a sua rica imaginação, a sua paixão pelo que fosse extravagante, diferente e chamasse a atenção, bem como o modo teatral através do qual se portava (Infopédia, 2007).

A partir de uma leitura minuciosa de Freud e sua técnica, Dalí colocou-se a serviço de uma imaginação transbordante, com imagens oníricas e símbolos sexuais, a partir de um método por ele mesmo criado, o crítico paranóico, que lhe deu o aval para associações delirantes em sua obra (Infopédia, 2007).

Observa-se que as artes foram pouco a pouco tomando conta da vida de Dalí, passando de estudos em escola de artes, para se aprofundar de modo muito peculiar em estudos outros e constituir a sua própria obra, que veio a ganhar grande repercussão. O contato com a leitura freudiana possibilitou-lhe encarar os seus mais profundos desejos e expressá-los, talvez sem menos culpa, entregando-se à imaginação fértil que lhe imperava.

De todo modo, os anos de análise permitiram-lhe a criação de um método, o crítico

paranóico, a partir do qual lhe era plausível explicar as suas obras, a encará-las de modo

menos angustiante, e a fornecer uma explicação aos olhares atentos de seus críticos. A angústia que a condição histérica lhe impunha encontrava-se refletida nas suas obras, de modo que foi buscar por definições que apaziguassem a culpa oriunda de seu modo de ser e se expressar.

Diferente de casos vistos anteriormente, Dalí convivia socialmente com amigos, teve uma vida sexual intensa e viveu até a sua morte com Gala, uma russa. Porém, a sua própria condição histérica e a forma particular através da qual sublimou as suas pulsões o tornou um grande nome no contexto da arte da pintura.

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