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A gênese da psicologia clínica

No documento Sartre e a psicologia clínica (páginas 35-38)

A psicologia clínica é herdeira direta da psiquiatria e de seu horizonte teórico-metodológico. No século XVIII as ideias psicológicas começaram a germinar no seio da psiquiatria, num primeiro momento sob influência do Romantismo (Victor Hugo, Stendhal, Baudelaire, etc.), que ressaltava o valor da individualidade, ao implementar o culto do eu, imprimindo uma perspectiva subjetivista à área que tinha, até então, uma ótica puramente mecanicista e organicista na compreensão dos “distúrbios nervosos”. Depois, o encontro da medicina com a filosofia, como ocorreu na obra de Maine de Biran (1766-1824) e Victor Cousin (1792-1967), que propiciou uma visão mais unitária e psicossomática do homem, tendo clara influência na interpretação mais psicológica da psicopatologia. John H. Jackson, já em 1875, na Inglaterra, formulou um dos primeiros esquemas descritivos sobre o sistema nervoso, oferecendo bases para uma reflexão psicológica que irá influenciar Pierre Janet, Henry Ey e Freud. Por outro lado, Pinel, em 1793, no hospital Bicêtre, e dois anos mais tarde na Salpêtrière, produziu uma revolução no tratamento dos loucos, ao libertá-los das correntes nas quais eram trancafiados como animais, para possibilitar-lhes um “tratamento moral”. Esse novo modelo de Pinel acabou por significar uma ênfase nos aspectos psicológicos e relacionais da loucura, inaugurando uma nova ordem terapêutica, por mais que, efetivamente, tenha representado um novo aprisionamento do louco, agora nas regras da razão ou nas normas morais (FOUCAULT, 1991). “Pinel deixa claro que, de um modo geral, a causa da loucura é a ‘imoralidade’, entendida como excesso ou exagero. Daí a terapia ser chamada tratamento moral de ‘afecções morais’ ou ‘paixões morais’. A loucura é excesso e desvio, a ser corrigido pela mudança de costumes, mudança de hábitos” (PESSOTI, 1996, p. 91, grifo nosso). Essas e outras variáveis contribuirão na crescente importância da perspectiva psicológica no seio da psiquiatria, resultando, no final do século XIX, na consolidação de uma área específica: a psicologia clínica.

A nova área tem uma relação direta com a psicopatologia, na medida em que esta sempre foi o carro-chefe da psiquiatria. A psicologia clínica lhe deve, assim, muito de sua conformação, ainda que procure dela se diferenciar. Poderíamos reiterar a posição explicitada por Pedinielli (1994, p. ?) de que entre as duas existe uma diferença de “natureza”: “a psicopatologia é um domínio, já a psicologia clínica é um método ou uma

demarche”. Existiria, assim, uma psicologia clínica aplicada à psicopatologia, mas também aplicada a outros domínios (grupos, instituições, social); portanto, não se pode restringir à primeira.

A origem da psicopatologia enquanto campo de conhecimento se confunde com o nascimento da clínica psiquiátrica francesa no final do século XIX. Ela começou como neuropatologia, já que os primeiros sistemas de classificação tinham uma perspectiva fortemente neurológica e organicista: acreditava-se que a loucura fosse uma enfermidade do cérebro. Os avanços da microbiologia e da neurologia, no início daquele século, ajudaram a consolidar tal visão e contribuíram para que a psiquiatria se firmasse, definitivamente, como especialidade médica. Benedict Morel (1809-1873) e Emil Kraepelin (1856-1925) são nosólogos dessa corrente.

Por outro lado, a influência do Romantismo literário (como já vimos acima − Stendhal, Flaubert, Balzac, Dostoiévsky, etc.) que passou a descrever com bastante profundidade aspectos psicológicos que a psiquiatria até então negligenciara, bem como as discussões de cunho mais psicológico que dominarão o cenário filosófico do final daquele século, como é o caso da filosofia de Johann Herbart (que introduziu a noção de inconsciente), além da de Schopenhauer e Nietzsche, (que, através de suas discussões sobre a “vontade”, abrem caminho, igualmente, para a noção de inconsciente), entre outros, influenciarão na constituição de uma abordagem mais psicológica na descrição e no tratamento da loucura.

Charcot (1825-1893), eminente neurologista, médico chefe da Escola de Salpêtrière, no final do século XIX, tornou-se uma celebridade e adquiriu muito poder no meio médico de sua época. Era considerado pelos historiadores da psiquistria como o “César da Salpêtriere”, tal a autoridade que exercia sobre seus assistentes e pacientes (SZASZ, 1979). Voltou seus interesses para os males de pacientes que não conseguiam ser incluídos em qualquer das categorias nosológicas tradicionais da medicina, pois não apresentavam lesões orgânicas passíveis de comprovação, considerados, por isso, falsas pacientes, apesar de terem uma sintomatologia psicofísica característica, que levou Charcot a classificá-las de histéricas, promovendo uma distinção entre os quadros epilépticos, antes confundidos. Deu início, assim, aos trabalhos que seguirão uma abordagem mais psicológica na psiquiatria, apesar de sua preocupação central nunca ter sido a psicologia e ele ainda se manter em uma concepção bastante organicista (ALEXANDER; SELESNICK, 1968).

Charcot, apoiado em seu prestígio, propôs como método de tratamento para a histeria a hipnose, totalmente desacreditado no meio médico (BERTOLINO, 2004c). Ele considerava que a sugestão hipnótica durante o transe propiciava a cura dos sintomas, na medida em que ela agia no nível dos “conceitos mentais” que causavam a doença, os quais a pessoa em estado normal de consciência não deixava aflorar. Esse método, apesar de bastante questionável, foi um dos primeiros de cunho eminentemente psicológico empregado no tratamento da loucura. O hipnotismo unificou os procedimentos da psiquiatria dos anos 1880, tanto na França, com Charcot e Bernheim, quanto em Viena, com Breuer; ajudou a definir, também, os primeiros passos da construção do método psicanalítico, por Freud, como veremos adiante. No entanto, a história tem provado que Charcot fazia de suas demonstrações “experimentais” de hipnose um verdadeiro teatro, sendo que as pacientes eram treinadas a simular o transe e outros sintomas. Quando desmascarado o embuste, Charcot partiu para patologizar a encenação dos acessos por ele estimulados, considerandos-os, então, como sintomas da doença, pois tais pacientes eram tidos como “portadores de distúrbios mentais inconscientes, determinantes do fenômeno histérico”, conseguindo com isso forjar o conceito de “doença mental” no meio científico, bem como autenticar a prática psiquiátrica no seio da medicina científica (BERTOLINO, 2004c).

Os trabalhos de Charcot inseriram-se no horizonte do racionalismo cartesiano predominante na cultura francesa. Dessa forma, os conflitos vividos pelas histéricas foram entendidos como da ordem dos “conceitos”, ou das “ideias”, ou seja, conflitos de “ordemmental”, inaugurando, com isso, uma nova fase na psicopatologia que, de agora em diante, conceberá a loucura definitivamente como “doença mental”. O famoso psiquiatra criou, para justificar suas concepções e métodos, o conceito de “mentira histérica”, ao afirmar que a acusação de abuso sexual, frequentemente apresentada pelas histéricas ao narrarem sua história, não passava de uma mentira inventada pelas doentes para enfrentar distúrbios de ordem sexual.5 Foi ele, portanto, que sugeriu que os impulsos sexuais tinham

5 É importante refletir sobre a problemática social relacionada à violência sexual do

final do século XIX, início do XX, que foi denunciada pela Medicina Legal da época, ao lidar com as inumeráveis vítimas dos abusos sexuais, geralmente ocorridos no seio das famílias. Esse enfoque foi completamente alterado pela teoria da mentira histérica, de Charcot e, mais tarde, pelo abandono da teoria da sedução e substituição pela noção de

um papel determinante na origem dos sintomas histéricos, tese que irá influenciar fortemente a construção dos princípios fundamentais da teoria psicanalítica.6

Seu trabalho teve grande relevância na época devido à nova perspectiva clínica que implementou, tanto em suas atividades na Salpêtrière, quanto em seu consultório particular. Acabou, com isso, por atrair eminentes pesquisadores, como é o caso de Pierre Janet e Sigmund Freud, acima citados, que serão fundadores, entre outros, da nova área definida como psicologia clínica.

Pierre Janet (1851-1947) é autor fundamental no cenário da psicologia clínica. Filósofo, foi trabalhar com Charcot na Salpêtrière, produzindo a partir dessa experiência uma série de estudos sobre psicopatologia, de cunho acentuadamente psicológico. Foi o primeiro a mencionar a expressão “psicologia clínica” em seu livro Névroses et idées fixes (1887), em que concebeu um novo modelo de patologia, o de neurose, que subsidiará Freud na teorização psicanalítica que realizou a partir de seus casos clínicos. Mais tarde estudará medicina e dirigirá o Laboratório de Psicologia da Clínica de Salpêtrière, em torno de 1890, afirmando que a psicologia clínica é destinada aos médicos, mas cabe aos filósofos construí- la (Prévost, 1988). Autor de uma obra bastante significativa na psiquiatria do final do século XIX, início do século XX, acabou sendo interlocutor de todos os que se aventuraram, naquele momento, nessa área, fosse para ser por eles criticado, fosse para servir de embasamento em novas pesquisas.

No documento Sartre e a psicologia clínica (páginas 35-38)