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A relação com o corpo

No documento Sartre e a psicologia clínica (páginas 119-123)

4.2 Ciência e psicologia

5.1.2 A relação com o corpo

A relação com o corpo é outra condição existencial primordial. Já vimos anteriormente que o homem é, inelutavelmente, corpo/consciência; portanto, é uma totalização dessas duas dimensões de seu ser. O corpo é, assim, mediação essencial na relação do sujeito com o mundo.

Como entender a relação do homem com seu corpo? Assunto debatido por várias filosofias, transpassado por diferentes perspectivas, foi o modelo cartesiano que predominou até recentemente, consolidando a perspectiva dualista, duramente criticada pela fenomenologia e existencialismo.

Van Den Berg (1981), sustentado em Sartre, demonstra que há duas possibilidades de o sujeito relacionar-se com seu corpo, que levam a concepções diversas: uma é o ponto de vista externo, de fora da experimentação concreta do corpo; é o ponto de vista dos outros ou dos médicos sobre meu corpo, ou até meu próprio ponto de vista quando penso sobre minha vivência corporal. É o corpo tomado em abstrato, reflexivamente, fora de seu contexto, de sua experimentação psicofísica de ser. É o que nosso já conhecido psiquiatra chamaria de “o corpo que tenho” ou o que Sartre chamaria de “corpo como ser-para-o-outro”. Outra ordem é justamente a da experimentação psicofísica concreta, experiência do corpo tomado na espontaneidade, corpo que vivencio todo dia, que é meu instrumento no mundo. É o “corpo que sou” ou o corpo como “ser- par-si”. Sartre alerta que é preciso não confundir esses diferentes níveis; portanto, devemos examinar separadamente o corpo como ser-para-o- outro e o corpo como ser-para-si.

É preciso estar atento, no entanto, em oposição ao cartesianismo, que “[...] o para-si deve ser todo inteiro corpo e todo inteiro consciência: não poderia ser ‘unido’ a um corpo. Similarmente o ser-para-o-outro é todo inteiro corpo; não há aqui ‘fenômenos psíquicos’ a serem unidos a um corpo; nada há detrás do corpo. O corpo é inteiro psíquico” (SARTRE, 1997, p. 388). Podemos, agora, buscar compreender por que o dualismo

cartesiano é uma falsa solução dada a uma questão efetiva que se impõe ao homem. Quando adoto em relação ao corpo uma postura reflexiva, quando penso sobre minha beleza, sobre meus defeitos, sobre minha vergonha, etc., estou tomando uma distância do corpo, tomando-o em abstrato (o corpo que tenho). Dessa forma, ele aparece como outra coisa que eu mesma, como se eu fosse um outro me olhando. Não que ele seja de fato outra coisa que eu, mas é o ponto de vista abstrato que adoto sobre ele. Descartes tomou essa verdade advinda de uma das possibilidades de o sujeito relacionar-se com o corpo − a relação abstrata – que é sempre uma possibilidade humana (nível antropológico), como uma definição de sua estrutura ontológica, quer dizer, uma definição em relação ao ser do corpo e o ser da alma, bem como sobre o que é a relação entre eles. Deduziu daí que o corpo é uma coisa (res extensa), separada, diferente do meu ser ou do meu eu, ou ainda, separado da alma, que é minha essência (mas que também é substância, só que pensante). É preciso estar atento ao fato de que, quando Descartes chegou ao cogito, na quarta parte do Discurso do método, ele estava adotando um ponto de vista reflexivo, ao duvidar das coisas que o cercavam (atitude reflexiva) e, daí, deduzir (atitude reflexiva) seu “penso, logo sou”. A próxima dedução é desdobramento dessa atitude e dessa confusão de níveis ontológicos: “[...] compreendi por aí que era uma substância cuja essência ou natureza consiste apenas no pensar e, que, para ser, não necessita de nenhum lugar, nem depende de qualquer coisa material. De sorte que esse eu, isto é, a alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo” (DESCARTES, 1987, p. 47). O filósofo racionalista ficou o resto dos seus dias debatendo-se para explicar as experimentações concretas com o corpo, a vivência do “corpo que sou” (As paixões da alma), preocupado em estabelecer a relação entre corpo e psique, o que buscou realizar de uma forma “mecânica”, através da glândula pineal. Eis o equívoco cartesiano que se perpetuou na história da filosofia moderna e contemporânea, com claros desdobramentos na constituição do campo da psicologia (BERTOLINO, 1996b).

Voltando a Sartre, passamos a descrever o corpo como ser-para-si. Sabemos que o para-si é-no-mundo, sendo o corpo nossa relação primeira com esse mundo. Dizer que estou no mundo, que vim ao mundo ou que há um mundo e dizer que sou um corpo é uma só e mesma coisa. O corpo é o instrumento e a meta de nossas ações. Nós não empregamos esse instrumento: o corpo, nós o somos, inteiramente. Não é uma relação

de uso, é uma experimentação de ser. O corpo está presente em todas as nossas ações, é a sua condição, só que é tomado espontaneamente e, assim, por isso não é apropriado. Quando acelero meu carro, quando escrevo, quando penso, há um pé que acelera, uma mão que escreve, neurônios que funcionam. Se estivermos absorvidos no que estamos fazendo, não tomamos distância de nosso corpo, simplesmente somos o corpo, eu e ele somos uma e a mesma coisa. Não somos primeiro dotados de um corpo, para depois captar o mundo, ele não é uma tela entre nós e as coisas. Não! O corpo é nossa relação originária com as coisas, é a revelação de nossa relação com o mundo.

Sendo assim, o corpo é a perpétua condição de possibilidade da psique. Todos os fenômenos da psique são psicofísicos. O exemplo mais claro são as emoções: quando está triste ou com uma alegria intensa o sujeito é essa tristeza, essa alegria, enquanto corpo e consciência. Por exemplo, uma pessoa com raiva fica com os músculos tensos, ruborizada, sua fisionomia fica “carregada”, tem uma experimentação como se fosse explodir; uma pessoa alegre fica saltitante, a fisionomia fica leve, sorridente, tem uma experimentação de prazer, de estar bem naquele momento. Dessa forma, as qualidades psicológicas são condições do corpo. A pessoa tímida não gesticula, não se movimenta, como faz uma pessoa expansiva; uma pessoa autoritária geralmente tem uma voz forte, agressiva, e assim por diante. Sartre descreve com detalhes a experimentação psicofísica de ser em seu livro A náusea, em que seu personagem Roquetin, jovem sem raízes, solitário, em tédio com sua vida cotidiana, começa a experimentar, em diferentes situações, uma violenta sensação de náusea. Essa reação toma conta dele frequentemente e nada mais é, ele descobre, do que a expressão de sua relação insípida com o mundo. Argumenta o existencialista: “é o corpo que aparece logo que designamos o psíquico; é o corpo que se acha na base do mecanismo e do quimismo metafóricos a que recorremos para classificar e explicar os acontecimentos da psique; é o corpo que visamos e informamos nas imagens (consciências imaginantes) que produzimos a fim de visar e presentificar sentimentos ausentes” (SARTRE, 1997, p. 425).

Meu corpo não existe só para mim, existe também para o outro, é o corpo-para-outro. É na relação com o outro que o sujeito surje como corpo em situação; quer dizer, sempre como inserido em um contexto. Dessa forma, o corpo de alguém que amamos não é somente os seus braços fortes, o seu peito largo, etc., mas um corpo vivo, de uma pessoa específica,

com sua idiossincrasia no mundo. O que nos atraí não é somente uma parte do corpo, por mais que essa possa chamar a atenção, mas o conjunto da pessoa. Por mais que tentemos reduzir o corpo do outro a uma parte (como a famosa bundinha brasileira, explorada em comerciais e músicas), ainda assim o outro aparece inteiro, definindo os contornos desse objeto de desejo (a garota que rebola na frente da televisão, por exemplo). Isso indica que o corpo do outro é sempre significante, remete a um sentido que o transcende, indica o ser de alguém. Não existe um corpo como puro em-si; se assim fosse não passaria de um cadáver. O cadáver não está em situação, é pura coisa.

O outro é uma transcendência (posto que é um para-si que se lança sempre para além do que é dado, da situação) transcendida (posso fazê- lo de objeto para mim). O corpo é a facticidade dessa transcendência transcendida, na medida em que é através dele que eu estabeleço meu contato mais imediato com o outro, que eu o objetifico.

Existe ainda uma terceira possibilidade de experimentar o meu corpo, que é quando o outro se desvela a mim como um sujeito que me faz de objeto. Sartre descreve essa atitude através da aparição do olhar do outro, através do qual experimento meu ser-objeto, minha transcendência transcendida, minha alienação. Sartre exemplifica essa experiência com a conhecida situação do “buraco da fechadura”: alguém espia, pelo buraco da fechadura, uma cena que se desenrola dentro do quarto; está totalmente absorvido na observação da cena, nem se dá conta de que, por estar agachado já há alguns minutos, seus joelhos e suas pernas doem (experiência do corpo que sou – consciência de primeiro grau). Mas eis que escuta passos de alguém se aproximando. Sua atitude se transforma radicalmente. A cena do quarto deixa de ser seu principal objeto de atenção, volta-se para si mesmo, para a dor nas pernas, para a posição agachada, sabe que o outro o verá nessa posição (experiência do corpo que tenho – consciência de segundo grau), dá-se conta, nesse momento, do ridículo que está fazendo. A vergonha toma conta do seu ser. É a experiência do corpo alienado. O outro me faz de objeto e eu estou em poder do outro. A experiência de minha alienação se dá, geralmente, através de estruturas afetivas: a timidez, a vergonha, a raiva. “Sentir-se enrubescer, sentir-se transpirando, etc., são expressões impróprias que o tímido usa para explicar o seu estado: o que ele quer dizer com isso é que tem consciência viva e constante de seu corpo tal como é, não para si mesmo, mas para o outro” (SARTRE, 1997, p. 443).

A discussão da alienação através do corpo nos remete à relação com os outros e, através dela, com a sociedade. Devido à importância dessa relação para a compreensão da psicologia em Sartre, ela será tema de um capítulo exclusivo. Passemos, então a discutir a temporalidade.

No documento Sartre e a psicologia clínica (páginas 119-123)