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A relação com o tempo

No documento Sartre e a psicologia clínica (páginas 123-130)

4.2 Ciência e psicologia

5.1.3 A relação com o tempo

A temporalidade é outra relação fundamental do homem com o mundo. O em-si está no tempo, mas não é temporal. Entendamos melhor! Por exemplo, uma cadeira em-si mesma pode ter duzentos anos ou ter sido fabricada ontem, mas isto não é questão para a própria cadeira. É para o homem que a cadeira será velha ou nova, moderna ou clássica. Uma roupa pode ter sido costurada há trinta anos; em-si mesma ela não é moderna, nem está na moda ou é démodé. É na relação com os padrões estéticos estabelecidos por uma certa lógica de consumo, por uma dada sociedade, que se define a pertinência da roupa para certas ocasiões, sua modernidade. Portanto, quem dita a temporalidade das coisas é o homem, já que é através dele que a temporalidade vem ao mundo.

Havíamos visto, na primeira parte deste trabalho, que o homem é uma totalização em curso. Cabe-nos, agora, começar a especificar melhor o significado dessa afirmação. Totalizar-se significa temporalizar-se, ou seja, produzir uma síntese dialética das experiências passadas, presentes e futuras que definem os contornos de quem é o sujeito, produzindo-o. Ser, para o homem, é estar localizado no tempo, é ter realizado certas coisas, fugido de outras, aprendido algo que não se sabia, ter amado alguém, sofrido em certas circunstâncias, enfim, ter sido determinada pessoa; também é planejar fazer certas coisas, projetar ser alguém.

Sendo assim, a humanidade do sujeito constrói-se pela sua temporalidade. O homem só existe para o homem em circunstâncias e em condições sociais dadas; isso significa que toda relação humana é demarcada temporalmente, é histórica. Sartre concorda com Marx quando este afirma que “o homem faz a história na exata medida em que esta o faz”. O existencialista, no entanto, chama a atenção dos marxistas, que

acabaram por valorizar sobremaneira o papel da história em detrimento

do papel do homem. Essa frase só tem valor se a compreendermos dialeticamente (SARTRE, 1960). O homem, com sua práxis individual cotidiana, é que faz com que os acontecimentos ocorram em determinada

direção, engendrando a história. A relação sado-masoquista, por exemplo, só se mantém enquanto prática social porque indivíduos a utilizam, adotam posturas sádicas ou masoquistas em relação uns aos outros, compram objetos de uso sádico, fazem filmes enfocando a temática, escrevem livros sobre ela, etc. Sendo assim, definem certo perfil para a experiência sexual, existencial, de nossos tempos. Ao mesmo tempo, é o conjunto de determinações históricas (relações de produção capitalista, que engendram lógicas culturais nas quais o individualismo, a falta de reciprocidade são marcantes) que fazem com que indivíduos adotem o sadomasoquismo. A dialética histórica não pode ser deixada de lado.

Definimos, assim, a dimensão antropológica da temporalidade. Mas como se dá a dinâmica temporal? Vamos, antes, precisar alguns conceitos. A temporalidade não é um todo caótico; ao contrário, é uma estrutura organizada nos três elementos “ek-státicos” do tempo: passado, presente, futuro, que não existem isolados, não se dão como uma soma de dados, mas sim como momentos de uma síntese original. É preciso compreender, portanto, o que são esses três elementos e como se produz essa síntese.

O processo de temporalização antropológica, ou seja, a temporalização real, como ocorre efetivamente a constituição do tempo, se dá através da ocorrência de forças reais advindas de um futuro que vão realizando a história e, portanto, ativando o passado e suas forças virtuais. Ou seja, a temporalização real se dá do futuro para o passado (BERTOLINO, 2005).

No entanto, a experimentação concreta que o sujeito tem de seu movimento no mundo, levando à sua temporalização psíquica, que acaba por estabelecer-lhe o cogito psicológico, é como se as forças virtuais do passado fossem as que forjacem o seu ser, definissem suas atitudes, emoções e pensamentos e fizessem seu futuro. Daí ser considerada como uma temporalização aparente, pois, na realidade, como vimos acima, a temporalização se dá do futuro para o passado (BERTOLINO, 2005). O sujeito concreto, absorvido em suas experimentações psicofísicas cotidianas, tem a certeza de ser determinado pelo passado, assim como um observador leigo, ao olhar para o movimento no céu, percebe como se o sol girasse ao redor da terra. Não é um engano dos sentidos, nem um equívoco, mas sim uma condição de constatação do fenômeno tomada a partir dos elementos empíricos, sem produzir uma abstração da situação, sem levar em consideração o conjunto de fatores que ali estão atuando. Daí a certeza do sujeitode ser determinado pelo passado, sem que tenha

condições de verificar que, na realidade, essas situações passadas ganham força em função de sua correlação noemática com acontecimentos futuros, que levam à afetação do sujeito. Por exemplo, um paciente com agorafobia, ou seja, com fobia de situações públicas, de situações em que está exposto a muitas pessoas (como ônibus, sala de esperas, etc.), tem a certeza de que seu medo advém de seu passado de doença, de ter sido sempre medroso, antecipando que não conseguirá modificar essa situação. Ele não consegue verificar o conjunto dos elementos que o remetem a essas experimentações psicofísicas de medo, não consegue ver, por exemplo, que o desejo (futuro) de “ficar normal”, de ser uma pessoa comum, com condições de ir a vir aos lugares como qualquer outro, é tão forte, que cada vez que ele entra em um ônibus começa a prestar atenção sobre como estão os outros e como ele está, o que vai deixando-o desconfortável na comparação, já que tem a certeza de ser diferente, gerando seus sintomas psicofísicos. Foi o futuro (desejo de ficar bom) que injetou forças na sua história da doença e lhe potencializa a propriedade noemática de afetar o paciente.

Dessa forma, o passado versa sobre os fatos já acontecidos, que devem ser apropriados pelo sujeito e, nesse movimento, ganha a propriedade de afetar o sujeito (relação noemático-noética). Sendo assim, só têm passado seres que em seu ser esteja em questão seu ser, ou seja, seres que possam pôr em questão seu passado. Portanto, só o homem tem passado. O passado já foi, o que indica um modo de ser: eu era assim ou assado, eu fiz isto ou aquilo. É preciso compreender que na experiência cotidiana eu não tenho passado, mas sim, sou meu passado. Ele me impregna de todos os lados, eu o experimento psicofisicamente de maneira permanente e não posicional. Ele não é, portanto, uma representação que faço da minha história, não está na ordem das ideias; ele sou eu, não se desgruda de mim. Sendo assim, nós temos-de-ser-nosso-passado.

Na medida em que ele já aconteceu, ele é um dado, um fato. Dessa forma, torna-se um em-si. O passado é o em-si que somos. Mas, mais do que isso, é o em-si que temos-de-ser. Não tenho nenhuma possibilidade de não o ser. O passado que eu era é o que é. Somente no passado, portanto, sou o que sou. Meu passado é minha história. Por outro lado, paradoxalmente, não sou meu passado, já que já o fui, posso estabelecer uma distância do que eu era, posso buscar ser diferente do que fui, meu futuro me abre essa possibilidade.

Não posso modificar o conteúdo do passado, posto que ele é o que é, é dado; no entanto, posso modificar a função que o passado exerce sobre o meu ser. Alterando a função, modifico a inteligibilidade32 que tenho de mim mesmo, já que a forma como “me sei sendo quem sou” passa pela implicação objetiva que as situações anteriores têm sobre o meu ser. Aqui reside uma das condições para que o processo psicoterapêutico tenha eficácia: é preciso descrever com detalhes as situações passadas, como elas ocorreram em sua dimensão temporal, material, antropológico, sociológica e psicológica para que, ao constatar efetivamente o ocorrido, possa desconstruir a função noemática (de afetação do sujeito) de certas situações e objetos e, com isso, retomar a relação originária com seu projeto.

Segundo Sartre, o presente é uma passagem entre aquilo que já não é mais (passado) e aquilo que ainda não é (futuro). O presente, portanto, não passa de um instante infinitesimal, um nada, pois ele não é; quando ele se concretiza já é passado, não é mais presente.

Da mesma forma, como vimos em relação com o passado, o em-si não tem presente, pois ele é o que é, não se transforma de algo que já era em algo que será, pois está fora do tempo. O presente é, também, uma característica do para-si, ou ainda, do homem. O presente tem o caráter de presença, conceito tipicamente heideggeriano, o que significa que o para-si existe fora de si junto às coisas, faz-se presente junto ao mundo.

A psicologia existencialista de Sartre, por compreender o presente como uma passagem, não o toma como eixo central de sua análise, como ocorre em outras psicologias de base fenomenológica (como por exemplo, a Gestalt e o Psicodrama), que trabalham com a noção do “aqui e agora”, ou seja, com a noção de que o essencial é o passado recolocado pelo presente. No existencialismo trata-se de descrever o passado como ele realmente ocorreu, por entendê-lo como fundamental na definição do que sou; faz-se necessário, portanto, remontar o passado, em suas diferentes dimensões, diferenciando aí o que aconteceu de fato e o função noemática (poder de afetação do objeto sobre o sujeito) constituída no contexto da situação passada e sua função no presente, buscando totalizar sua compreensão.

O futuro, assim como o passado e o presente, não pertence ao ser em-si, pois como vimos, ele não se temporaliza. A lua cheia não é o futuro

32 Quando falamos de inteligibilidade não estamos falando de representação de mim

mesmo, estamos descrevendo o saber de ser que tenho de mim mesmo; portanto, não se distingue do que sou. Esse conceito será precisado mais adiante.

da lua crescente, o gelo não é o futuro da água colocado no congelador; essas são somente transformações de propriedades materiais da realidade dos objetos, que quando apreendidas por uma consciência-testemunho adquirem temporalidade. Sendo assim, o futuro é uma peculiaridade do ser do homem na sua característica específica de “ser o ser que põe em questão o seu ser” (SARTRE, 1997).

Como vimos anteriormente, o homem é presença, caracteriza-se, assim, como fuga do para-si rumo às suas próprias possibilidades, rumo ao que lhe falta. Dessa forma, a presença lança-se em direção às suas possibilidades de ser, que nada mais são do que seu futuro. Este é, então, aquilo que tenho-de-ser na medida em que posso não o ser. O devir “há de vir”, é aquilo que persigo, que eu projeto, mas posso não alcançar, posso desviar seu rumo, posto que ele ainda não é. O futuro é, assim, um nada que define o ser do homem. O futuro é o que ainda não sou na busca de ser. Sartre (1997) assinala, novamente, que não devemos compreender a consciência com base no idealismo; portanto, o futuro também não pode ser entendido como uma representação minha; “ele sou eu, na medida em que ainda não o sou”, é o que gera a força do meu ser.

No entanto, ocorre uma decepção ontológica cada vez que a realidade humana desemboca no futuro, pois ele não se deixa alcançar; quando nele chegamos já é passado. É o fracasso ontológico do homem, sua paixão inútil. Esse futuro não se realiza. O que se realiza é um para-si designado pelo futuro e que se constitui em relação com esse futuro. Isto quer dizer que o homem não se totaliza, não se completa, ele é sempre uma totalização em curso, uma busca incessante de realização, um vir-a-ser. O ser do homem é, assim, um eu-no-horizonte, ou seja, um sujeito inscrito em um campo de possibilidades de ser.

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A dimensão psicológica do homem caracteriza-se por ser resultante da síntese das três dimensões “ek-státicas” da temporalidade, totalizando-se na dinâmica temporal, que se concretiza enquanto dinâmica psicológica. Assim, sou meu passado (que é o que é) e meu futuro (que não é ainda) enquanto presença no mundo. A dinâmica temporal desenvolve-se como processo de totalização perpétua da minha experiência nessas três dimensões. Vejamos melhor: o passado é implicado constantemente pelo futuro, na medida em que quando lá, em outro momento da minha

história, eu já desejava ser alguém assim ou assado, já tinha um projeto definido ou em constituição. Ou seja, a força do passado advem do futuro. É a antecipação que faço da publicação do meu livro, por exemplo, que faz com que eu valorize o tempo que passo escrevendo, que me realize por ter escolhido trabalhar com esse autor, com este tema. Não é o passado que empurra o presente; é, na verdade, o futuro que move a história, que lhe imprime forças de realização. É o acontecimento futuro que produz certas implicações materiais, sociológicas, objetivas que ativam as forças do passado e afetam o sujeito.

Outrossim, o futuro é também encravado de passado, pois quando desejo certa coisa x ou y sou remetido ao passado para verificar como antes eu a queria, o que modificou, o que permaneceu; quer dizer, o meu futuro, ou ainda melhor, o meu projeto é construído ao longo da minha história. Mas é preciso estar atento: a força do meu ser me é dada pelo futuro e não pelo passado.

Sendo assim, a minha experiência cotidiana sustenta-se em antecipações (futuro) e recordações (passado), bem como em antecipações baseadas em recordações (meu futuro como era experimentado no passado) e em recordações baseadas em antecipações (meu passado visto a partir da perspectiva de meu futuro), para usar expressões caras ao psiquiatra fenomenológico Ernest Keen (1979), gerando minha dinâmica psicológica.

Dessa forma, o indivíduo é produto e produtor dessa dinâmica temporal. É preciso que se totalize em sua história, que se inclua na temporalidade antropológica, para que se experimente como sujeito de sua vida. Muitas pessoas “negam-se a ser históricas” (apesar de o serem, inelutavelmente, por estarem inseridas na história social e seu passado e futuro serem fenômenos incontestáveis de suas vidas); quer dizer, vivem presas ao passado, sem olhar para o futuro, ou negam a sua história e sobrevivem no “aqui e agora”. Sartre afirma que

[...] para que um homem tenha uma história é necessário que evolua, que o curso do mundo o modifique ao modificar-se e que ele se modifique modificando o mundo. [...] Uma vida histórica está cheia de acasos, de encontros. [...] O futuro é incerto, somos o nosso próprio risco, o mundo é nosso perigo. Não poderíamos existir em nenhum momento para nós mesmos como uma totalidade. (SARTRE, 2002, p. 296).

É importante ressaltar uma noção que já apareceu várias vezes em nossas reflexões e que é central na psicologia de Sartre: o projeto. Ele se caracteriza por essa busca do sujeito em realizar plenamente o seu ser, já que o homem está sempre indo em direção ao seu futuro. Não existe sujeito sem projeto. Mesmo não ter projeto é ainda um projeto; quer dizer, o homem, ao lançar-se no mundo, persegue um fim, mesmo que não tenha clareza de qual é ele. Em cada posicionamento, em cada comportamento do sujeito existe uma significação que o transcende; cada escolha concreta e empírica designa uma escolha fundamental, ou seja, a realização do projeto de ser. Exemplifica : “tais ciúmes datados e singulares, nos quais o sujeito se historiariza em relação a determinada mulher, significam, para quem souber interpretá-los, a relação global com o mundo, pela qual o sujeito se constitui como um si-mesmo” (SARTRE, 1997, p. 690). Cada ato exprime uma escolha original em circunstâncias particulares. Mas é preciso destacar que cada escolha particular é já a própria escolha fundamental; quer dizer, a definição do ser passa por escolher isto ou aquilo. Não adianta pretender ser corajoso, mas realizar uma miríade de atos, de atitudes de covardia; através deles o indivíduo está se constituindo em um ser covarde. Assim, o que define o ser de cada um são as escolhas cotidianas, que lançam o sujeito na ação, nas atitudes, nas afetações e que concretizam sua escolha fundamental de ser. O homem se constitui, dessa forma, em uma livre unificação das diversas escolhas empíricas em direção a um projeto fundamental. O projeto se caracteriza, assim, pela totalização em curso que é o homem.

O projeto é concretizado pelo desejo de ser. Todo homem realiza seu projeto fundamental através de seu desejo de ser. É esse desejo de ser que o move, que o lança em direção ao mundo em suas características particulares. O desejo de ser é o “combustível” da dinâmica psicológica. Sendo expressão concreta do projeto, o desejo de ser também não é um a priori da realidade humana, constitui-se na própria escolha cotidiana. O desejo de ser só existe e se manifesta pelas ações, atitudes, afetações concretas do sujeito, como são exemplos o ciúme, a avareza, o amor à arte, a covardia, a coragem.

Sartre elabora a noção de desejo, essencial na filosofia e na psicologia moderna na medida em que é considerado aquilo que move o homem − em termos radicalmente distintos dos até então elaborados. O desejo não é um atributo inconsciente; nem mesmo é inacessível; não é uma força que

move o homem sem que ele o saiba, quando seria, então, definido por um saber que não se sabe; também não se reduz à ordem da sexualidade, daí projetando-se a outras esferas. Não! O desejo de ser é constituído pelo homem na sua práxis cotidiana; realiza-se em cada experiência relacional, emocional, intelectual, etc.; define o homem na justa medida em que o homem se define. O desejo é, antes de tudo, desejo de ser, para então se especificar em diferentes desejos empíricos, concretos. Sendo assim, a sexualidade é somente mais uma de suas inúmeras possibilidades, é uma das formas de se realizar o desejo de ser, mas não é o que o define.

Vimos até aqui que o homem está, irremediavelmente, tecido com o mundo e realiza sua mundaneidade ao estabelecer relações das mais variadas ordens (com as coisas, com o corpo, com o tempo, etc.). Descreveremos, agora, os distintos níveis e tipos de consciência, que são as bases dessas relações e, dessa forma, representam as diferentes possibilidades de ligação do homem com o mundo. Veremos que o processo resultante desse circuito de relações experimentado em diferentes níveis de consciência desembocará na constituição do “eu” ou da personalidade.

No documento Sartre e a psicologia clínica (páginas 123-130)