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Relação indivíduo/sociedade – dimensão antropológica

No documento Sartre e a psicologia clínica (páginas 152-158)

Questão de método, Sartre discute a perspectiva de uma nova antropologia, que considera o homem sob o ponto de vista histórico e dialético. Nesse sentido, analisa os aspectos estruturantes da cultura, da sociedade e sua relação com os indivíduos concretos. Para compreender a realidade humana, portanto, devemos partir do conhecimento de que o homem é “produto de seu produto”, quer dizer, ele faz a história, gera seus produtos, mas, por sua vez, estes o condicionam, ou seja, a história também o faz. Os sujeitos concretos fazem, portanto, eles mesmos, sua história, mas a fazem num meio dado que os condiciona, diz Sartre (1960), citando Marx. Eis aqui a essência da dialética da realidade humana. Explica o existencialista:

Produto de seu produto, modelado por seu trabalho e pelas condições sociais da produção, o homem existe ao mesmo tempo no meio de seus produtos e fornece a substância dos “coletivos” que

o corroem; a cada nível da vida um curto-circuito se estabelece, uma experiência horizontal que contribui para modificá-lo sobre a base de suas condições materiais de partida: a criança “não vive somente” sua família, ela vive também – em parte através dela, em parte sozinha – a paisagem coletiva que a circunda; e é ainda a generalidade de sua classe que lhe é revelada nessa experiência singular. (SARTRE, 1960, p. 56).

O homem produz, assim, uma apropriação individual da realidade coletiva que o cerca, que ele mesmo contribuiu para construir; seu ser é, assim, resultante desse processo de interiorização da exterioridade social e da exteriorização de sua apropriação individual. É o que os psicólogos costumam denominar de processo de socialização.

O sujeito, ao produzir a história, objetiva-se nela, bem como nela se perde (se aliena), pois a história lhe escapa, o transcende, na justa medida em que os outros também a fazem. Dessa forma, a história acaba aparecendo a ele como uma força estranha, pois ela foge ao seu controle, por ser, também, realizada pelos outros, coletiva. É por isso que a realidade social é uma realidade “provida de significações”; quer dizer, ela é compreensível para as pessoas, confere certos significados às suas vidas e, ao mesmo tempo, é “alguma coisa em que ninguém pode reconhecer-se inteiramente, enfim, ‘uma obra humana sem autor’” (SARTRE, 1960, p. 68). Sendo assim, a alienação, ou seja, a situação de nosso ser estar em poder do outro, é uma condição humana. Vimos acima que ou objetificamos o outro ou nos tornamos objetos para o outro. Portanto, nunca seremos plenamente senhores de nosso ser; estaremos sempre, em certa medida, em poder dos outros; a alienção nunca pode ser revogada absolutamente.

Porque somos homens e vivemos no meio dos homens, todos os objetos que nos rodeiam são signos, ou seja, significações que vêm de todos os homens, se inscrevem na ordem das coisas, revelando-se através da estrutura da sociedade. Portanto, não existe nada que seja puramente “natural” para o homem, pois ele sempre atribui um sentido às coisas que o cercam. A sexualidade, por exemplo, no homem, não é da ordem natural, mas um produto da cultura humana. O homem é, dessa forma, produzido por uma sociedade que ele mesmo ajuda a produzir e que, muitas vezes, nela não se reconhece, por dela se alienar. Por isso o objeto do existencialismo é o homem singular no campo social (SARTRE, 1960).

A história é, assim, uma totalização, um processo de produção de uma realidade que está sempre em curso e cujo fundamento único são as práticas individuais e coletivas. Toda dialética histórica descansa sobre a práxis individual. Esta é, portanto, dialética, sendo que a relação com os outros também o é; quer dizer, somos produtos uns dos outros. Dessa forma, podemos verificar que as relações entre os homens não se dão ao acaso, os indivíduos não se chocam como moléculas, são sempre produtos humanos, das relações sociais, culturais, sociológicas. Os homens estão, assim, unidos por laços de interioridade, ou seja, eles têm sempre a possibilidade de compreender (ou julgar, ou condenar, etc.) uns ao outros porque são seres envolvidos num mesmo tecido social, seres que se lançam para suas possibilidades ao serem mediados pelos outros. A realidade humana é costurada, portanto, por laços de reciprocidade, cada um é um meio do outro realizar o seu projeto, cada um depende do outro para ser quem quer ser. No entanto, é preciso estar atento: “a reciprocidade não protege os homens contra a reificação e alienação, ainda que seja fundamentalmente oposta a estas; [...] as relações recíprocas e ternárias são o fundamento de todas as relações entre os homens, qualquer que seja a forma que depois possam vir a tomar” (SARTRE, 1960, p. 191). Mesmo as relações desumanas, de exploração, de submissão, pressupõem o reconhecimento prévio do outro como um homem. Para desumanizar as relações é preciso antes entender que nosso próximo é um homem.

Portanto, a noção de mediação é fundamental para compreender a realidade humana. Somos meios uns para os outros para realizar nosso ser; sem as mediações sociais não nos humanizaríamos, não superaríamos a condição de animais comuns. O sujeito humano é social por condição, ele não se essencializa, não constrói seu ser, se não for ao meio de outros homens. É o processo de sociologização, ou seja, o tecimento afetivo, existencial com os outros que me são significativos e que, por isso mesmo, ajudam a definir o contorno de meu ser (valores, crenças, concepções de vida e de mundo, enfim, racionalidades), delineando meu projeto. É preciso compreender, então, que o outro é mediação para mim na medida exata em que sou mediação para ele.

Aqui é importante distinguir relações sociais (participar de certos grupos, relacionar-se com as mais diversas pessoas) de relações sociológicas, relações de mediação, que comprometem meu ser num projeto de ser, definem meu espaço muito além do social, numa dimensão de mútuas

implicações de ser. As relações meramente sociais fazem parte de nosso cotidiano, são parte constitutivas do sujeito, mas não são as definidoras de nosso ser. Por exemplo, quem já não foi a um enterro somente para marcar presença e cumprir formalidade, o que é radicalmente diferente de ir a um enterro de alguém significativo. Muitas famílias, esfaceladas internamente, vivem relações puramente formais: seus membros almoçam juntos todos os dias, trocam presentes no Natal, conversam banalidades, mas não se colocam efetivamente como mediação, como viabilizadores do ser dos demais.

É preciso compreender, portanto, como a multiplicidade prática (a humanidade) realiza a totalização dessa dispersão de práticas individuais, ou ainda, os fios que conduzem das práticas individuais aos conjuntos humanos – séries, grupos, sociedade − quer dizer, compreender como se produz o tecido social.

Os sujeitos nunca estão isolados, mesmo uma pessoa sozinha está sempre inserida em uma rede de relações humanas, seja para se alimentar, para se vestir, para trabalhar, para pensar seu mundo, enfim, para ser. Por outro lado, nem toda reunião de pessoas significa, necessariamente, um grupo. Há diferentes estruturas nas quais ocorre o agregamento de indivíduos, sendo que estes diversos níveis de tecimento social vão consolidando as estruturas da sociedade.

Os coletivos, simples reunião de pessoas, constituirão o que Sartre designa de série. Ele utiliza o exemplo do ônibus para descrevê-los: um ônibus comporta um coletivo de pessoas, que a princípio têm o mesmo objetivo – chegar a algum destino contemplado pelo itinerário do ônibus. Só que essas pessoas de idades, sexos, classes sociais diferentes, não se conhecem, não se tecem entre si. Desse modo, a forma mais primária de agregamento humano implica em uma “pluralidade de solidões”, quer dizer, as pessoas não se preocupam umas com as outras, não se dirigem a palavra, nem mesmo observam umas às outras. Portanto, é um espaço onde cada um é cada um, os indivíduos tratam de perseguir seu objetivo de forma isolada, o projeto é individual, não há mediação; utiliza-se do mesmo meio de realizar o objetivo, mas não há uma troca entre eles, não há uma ação coletiva. O interesse é, portanto, comum (chegar a algum lugar), mas não há uma identidade entre as pessoas. Elas estão definidas por sua intercambialidade, quer dizer, cada um está unido ao seu vizinho de ônibus por ser idêntico a ele, pois cada um é definido pelo número de

sua poltrona, por realizar os mesmo gestos para parar o ônibus, por pagar a passagem, etc. O ser da pessoa, portanto, está definido de fora, pelos gestos rituais que ele deve fazer, pelo número que ele ocupa, independente de sua história particular, que aqui não interessa. A marca da serialidade é, portanto, a alteridade, ou seja, cada um é o mesmo que os outros enquanto é outro distinto de si; ou seja, como já vimos, cada um é cada um, sem tecer qualquer identidade coletiva, permanecendo na solidão. A racionalidade da alteridade acaba sendo a regra do campo social prático-inerte (no sentido das relações reificadas, que encontram sua unidade fora, determinadas pela exterioridade), na qual os indivíduos experimentam a sensação de impotência diante dos outros (SARTRE, 1960).

Os coletivos, em função de certas situações de escassez externa (falta de comida, por exemplo), ou de algum perigo comum, podem ir aos poucos modificando a forma do tecimento de seus membros, superando sua situação de solidão, constituindo-se, aos poucos, em grupos. Digamos que tenha acontecido um pequeno acidente com o ônibus que acima mencionamos, essa situação nova, ameaçadora até certo ponto, permitirá que as pessoas unam-se em torno do novo problema. Começarão a conversar entre si, buscar solução conjunta, dividirão tarefas, quer dizer, aos pouco aparecerá uma práxis comum e o tecimento entre as pessoas. Começa a acontecer uma efervescência, que levará ao que Sartre designa de grupo em fusão. O grupo em fusão é, assim, o tecimento de pessoas em torno de uma situação específica, que exige uma práxis mais imediata e recíproca. A princípio, a unidade não é intencionada, é espontânea, constituída em função dos acontecimentos. Aos poucos, o grupo em fusão pode desejar e trabalhar na direção de sua unidade, vindo a se constituir, então, em um grupo organizado.

O que vai caracterizar um grupo organizado, diferente de uma série é, portanto, a superação da solidão dos participantes pelo tecimento entre seus membros. Este tecimento, aspecto fundamental dos grupos, se organiza em torno de um projeto comum, constituído a partir da troca entre os projetos individuais. Além disso, estabelece-se uma afetividade, posto que as pessoas passam a ser importantes umas para as outras. Cada um se torna o terceiro em relação aos outros, ou seja, torna-se o mediador entre o projeto individual do outro e o projeto coletivo, estabelecendo relações de reciprocidade. Portanto, para compreender a dialética da realidade humana é fundamental compreender o papel de mediação que o grupo exerce em

relação aos sujeitos concretos. Pela mediação do grupo, o outro se torna um meio para me realizar, assim como eu a ele. Essa estrutura nova, da reciprocidade mediada, caracteriza-se pela experiência de compartilhar ações, pensamentos, sentimentos.

O grupo, aos poucos, busca instrumentos para evitar a sua volta à serialidade, à dispersão individual. Surge, assim, o que Sartre designa de fraternidade/terror. Fraternidade, porque no grupo existem obrigações recíprocas, baseadas na solidariedade de cada um com os outros, mas ao mesmo tempo, existe o terror, que vem a ser a pressão para que as pessoas se dediquem ao grupo, não se dispersem, não o traiam, instaurando-se, dessa forma, um controle sobre o indivíduo para que este permaneça comprometido com o projeto do grupo. A fim de realizar esse controle, o grupo institui o juramento, que nada mais é do que uma invenção prática para a sobrevivência do grupo diante do perigo da dissolução. Pelo juramento, as pessoas reafirmam sua fidelidade ao projeto coletivo; ele é a postulação do direito de todos contra cada um, instalando o terror como algo encravado em cada sujeito. O juramento, no entanto, não é individual, mas social, também não é um discurso, nem é subjetivo, mas uma práxis coletiva, uma modificação real do grupo, é uma atividade coercitiva do grupo consigo mesmo, subjetivamente experimentada no concreto individual.

A família é um dos principais grupos estudados por Sartre, devido à sua função mediadora para os sujeitos concretos, ou melhor, por realizar a mediação entre os indivíduos e a sociedade. Diz ele:

A psicanálise é um método que se preocupa, antes de tudo, em estabelecer a maneira pela qual a criança vive suas relações familiares no interior de uma sociedade dada. [...] O existencialismo acredita poder integrar este método porque ele descobre o ponto de inserção do homem em sua classe, isto é, a família singular como mediação entre a classe universal e o indivíduo. (SARTRE, 1960, p. 47).

Dessa forma, na psicologia sartriana, o papel mediador da família na estruturação do projeto de ser do sujeito é fundamental.

Muitas vezes uma família, em função das relações estabelecidas entre seus membros, é corroída por uma serialidade interna, ou seja, seus membros não conseguem tecer seus projetos individuais em torno de um projeto coletivo, permanecendo uma pluralidade de solidões. A forma como nossa sociedade, nossa cultura ocidental, concebe as relações entre as pessoas, sustentando-se em concepções deterministas, que as lançam em um solipsismo, em um subjetivismo, acabam por forjar estruturas familiares

serializadas. O terror se instala em seu seio, na busca de escapar à dissolução; as relações reduzem-se a cobranças morais, a uma exigência de falsa unidade. Eis aqui uma das fontes da solidão social e, consequentemente, da produção da loucura: as pessoas experimentam-se cada vez mais sozinhas, mais desesperadas, pois desejam uma mediação que está impossibilitada de acontecer em função da maneira como se estabeleceram as relações no interior do seio familiar. Boa parte das famílias hodiernas não são grupos, mas séries. Uma família, quando consegue ser um grupo, estabelece um projeto comum, e se torna um das principais mediações do projeto de ser dos sujeitos.

Portanto, nem vítimas, nem cúmplices da sociedade que nos acolhe e a qual escolhemos, somos a totalização destotalizada dessa engrenagem permanente de mediações sociais e sociológicas. Destacamos, assim, a importância da rede de tecimentos dialéticos entre os indivíduos e os grupos que, através dos processos de mediações positivas (quer dizer, mediações que viabilizam o ser da pessoa, que a incentivam a ser quem ela deseja ser) ou negativas (mediações que inviabilizam o desejo de ser do sujeito, que se pontuam pela condenação, pela opressão), constituem os alicerces da construção da personalidade dos sujeitos, consolidando a realidade humana.38

6.3 A personalidade e as mediações sociais – dimensão psicológica39

No documento Sartre e a psicologia clínica (páginas 152-158)